1. Introdução
A lei 12.846/13 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de celebração de acordos de leniência com pessoas jurídicas responsáveis por atos lesivos à Administração Pública. Tal instrumento negocial tem por finalidade estimular a colaboração com as investigações estatais e promover a responsabilização de outros envolvidos, em troca de benefícios legais à empresa signatária. Apesar de seu caráter negocial, a própria lei impõe no §3º do art. 16 a exigência de que o acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.
No entanto, muito embora órgãos como a CGU - Controladoria-Geral da União tenham desenvolvido metodologias próprias e instrumentos técnicos internos voltados à quantificação do dano, inexiste unificação de parâmetros normativos no ordenamento jurídico nacional. Como resultado, há disparidade de critérios entre instituições, gerando insegurança jurídica e sobreposição de entendimentos quanto ao alcance e à forma da reparação devida.
Diante disso, o presente artigo se propõe a analisar essa obrigação legal à luz da ausência de critérios normativos claros e uniformes para a estimativa do dano. Pretende-se demonstrar que a noção de reparação integral, ainda que revestida de legitimidade constitucional, encontra limitações operacionais, que podem comprometer a efetividade da política pública de leniência.
2. A obrigação de reparar integralmente: fundamentos jurídicos e sua natureza
A obrigação de reparar o dano causado por ato lesivo à Administração Pública encontra respaldo em fundamentos históricos e normativos de natureza civil e administrativa. Trata-se de um dever que não se confunde com sanção, mas decorre diretamente do princípio da restituição do patrimônio indevidamente afetado.1
O art. 37, §5º, da Constituição da República prevê que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”2. Embora não trate diretamente da obrigatoriedade de reparação, o dispositivo evidencia a centralidade do ressarcimento como consequência jurídica permanente dos ilícitos que impliquem dano ao patrimônio público.
Essa lógica remonta à tradição do direito privado, onde a restituição do que foi indevidamente apropriado alheia-se da ideia de punição e aproxima-se da noção de justiça distributiva3. A reparação, portanto, tem natureza compensatória e não punitiva.4
No âmbito da lei 12.846/13, o ressarcimento do dano aparece no art. 16, §3º, como obrigação autônoma imposta à pessoa jurídica celebrante de acordo de leniência. Embora a reparação seja frequentemente tratada como sanção administrativa, a doutrina sustenta que ela não se enquadra tecnicamente nessa categoria. O ressarcimento não é pena, mas consequência jurídica do ilícito com resultado material negativo.5
O perdimento de bens previsto no art. 19, inciso I, da lei 12.846/13, embora constitua uma sanção patrimonial relevante, não é suficiente para assegurar a restituição integral do que foi desviado, nem substitui a obrigação de recomposição do erário. Por isso, a reparação se mantém como instituto próprio, com fundamento autônomo e aplicabilidade tanto na via administrativa quanto judicial, inclusive nos casos em que não se tenha firmado acordo de leniência.6
Contudo, a firmeza jurídica com que se afirma o dever de reparar integralmente o dano não exclui a necessidade de refletir sobre a sua aplicação prática nos acordos de leniência. Surge, assim, o desafio de compatibilizar o dever de ressarcimento com a flexibilidade necessária à efetiva negociação e celebração de acordos viáveis e proporcionais.7
3. Estimativa do dano: Prejuízo ao erário e o enriquecimento ilícito
A obrigação de reparar integralmente o dano exige que se defina o que se entende por “dano” nesse contexto. No entanto, essa tarefa revela-se complexa, tanto do ponto de vista conceitual quanto prático, especialmente quando se considera a diversidade de condutas típicas previstas na lei e as distintas consequências jurídicas e econômicas delas decorrentes.
De modo geral, dois grandes eixos conceituais orientam a noção de dano em matéria de responsabilização por atos ilícitos contra a Administração Pública: o prejuízo efetivo ao erário e o enriquecimento sem causa de terceiros.
O prejuízo ao erário refere-se à saída indevida de recursos públicos ou à frustração de receitas legítimas em decorrência de um ato ilícito. Trata-se de uma categoria de dano que, em regra, admite mensuração contábil ou econômica, embora nem sempre com exatidão. Já o enriquecimento ilícito, por outro lado, ocorre quando o agente se beneficia economicamente à custa da Administração Pública, mesmo que o erário, formalmente, não tenha sofrido uma perda direta e imediata.8
Essa distinção é relevante porque, em certos casos, não há correspondência exata entre os montantes recebidos ilicitamente e os danos efetivamente suportados pela Administração. Além disso, a depender da configuração da vantagem indevida, o enriquecimento sem causa pode ocorrer sem prejuízo mensurável imediato.
Para alguns autores9, o enriquecimento sem causa representa uma violação da própria concepção de justiça, pois quem se locupleta à custa de outrem desrespeita o princípio de dar a cada um o que é seu. É válido reforçar que a obrigação de ressarcir decorre da própria essência do direito como instrumento de equilíbrio social, sendo inaceitável, sob qualquer ótica jurídica, a permanência de vantagens indevidas não devolvidas10.
No campo da responsabilização administrativa de pessoas jurídicas, como destaca a doutrina especializada, o ressarcimento deve abranger tanto os danos emergentes (valores efetivamente subtraídos do patrimônio público) quanto os lucros indevidamente obtidos. Isso amplia o escopo da reparação para além do que seria tradicionalmente compreendido como dano material11.
Essa pluralidade de elementos, entre o que se perde e o que se ganha de forma ilícita, é particularmente importante nos acordos de leniência, pois interfere diretamente na definição dos valores a serem negociados. Não há, todavia, norma legal que delimita quais categorias devem ou não ser incluídas no cálculo, o que gera incertezas para as partes e margem de discricionariedade para os órgãos de controle.
Essa ambiguidade conceitual torna ainda mais relevante a adoção de metodologias transparentes e tecnicamente fundamentadas para a estimativa do dano nos acordos de leniência. Sem parâmetros consistentes, a exigência de reparação integral corre o risco de ser aplicada de forma arbitrária ou excessivamente punitiva, desviando-se de sua natureza reparatória e comprometendo a lógica negocial que sustenta esses instrumentos.12
4. Utilização de critérios econômicos para quantificar o dano
A quantificação do dano nos acordos de leniência permanece como ponto sensível da política anticorrupção brasileira. A ausência de um modelo legal uniforme de cálculo tem levado diferentes órgãos de controle a adotar métodos próprios, com variações substanciais nas premissas técnicas e jurídicas utilizadas. Esse vácuo normativo abre espaço para disputas de poder entre instituições, que podem utilizar os critérios de cálculo não apenas como ferramenta técnica, mas como instrumento político-institucional de afirmação de autoridade e protagonismo no sistema de integridade estatal.
Nesse cenário, a busca por um modelo racional de reparação exige o reconhecimento de que o dano não se esgota no prejuízo material direto ao erário13. Alguns autores sustentam que a colaboração prestada pela empresa deve ser compreendida como um ativo no cálculo da reparação. Isso inclui a valoração econômica das informações estratégicas fornecidas, sua utilidade na responsabilização de outros agentes e o efeito sistêmico gerado pela quebra de pactos de silêncio. Essa colaboração possui valor próprio, não meramente simbólico, e pode ser incorporada como parcela compensatória, sem que isso signifique renúncia indevida ao ressarcimento.14
Além do valor da informação, outros elementos de natureza econômica são igualmente relevantes para a fixação do montante a ser pago no acordo. É necessário considerar o risco de perda judicial, o custo do processo e a duração estimada do litígio. Esses fatores permitem calcular o valor presente líquido da pretensão estatal de reparação, comparando-o com a proposta de acordo apresentada. Um valor aparentemente inferior ao dano teórico pode, na prática, representar maior eficiência, previsibilidade e utilidade pública, evitando anos de litígios incertos e dispendiosos.
Essa abordagem econômica, contudo, não deve ser dissociada do controle jurídico. O LINDB - decreto-lei 4.657/42, em seus arts. 20 e 21, determina que as decisões administrativas devem considerar as consequências práticas de sua aplicação, exigindo motivação clara quanto às alternativas disponíveis. Isso significa que os órgãos de controle não podem ignorar os impactos da rigidez na exigência de reparação, especialmente se ela comprometer a própria celebração de acordos ou a continuidade das atividades empresariais legítimas.
A integração entre direito e economia, nesse contexto, mostra-se necessária e possível. O uso de modelos da teoria dos jogos, por exemplo, permite compreender os incentivos e estratégias envolvidas na decisão empresarial de colaborar, ou não, com o Estado15. A AJPE - Análise Jurídica da Política Econômica16, por sua vez, oferece arcabouço teórico para que a interpretação das normas se alinhe aos objetivos públicos subjacentes, sem abrir mão da legalidade, isonomia e da fruição dos direitos fundamentais. O que se propõe, portanto, não é relativizar o dever de reparação, mas ampliar os critérios de valoração do acordo para refletir, de forma mais precisa, o impacto econômico, institucional e informacional da colaboração prestada.17
Diante disso, a quantificação do dano nos acordos de leniência não deve se limitar a estimativas rígidas ou abstrações jurídicas desconectadas da realidade. Uma abordagem integrada, que reconheça o valor da informação, os riscos da litigância e as finalidades de interesse público envolvidas, oferece maior coerência ao sistema e favorece tanto a efetividade da política anticorrupção quanto a segurança jurídica das empresas colaboradoras.
Portanto, a reparação integral, embora desejável como ideal normativo, não pode ser tratada em absoluto. A racionalidade jurídica exige a formulação de políticas e decisões que reconhecem que a reparação do dano também envolve fomentar a colaboração, recuperar ativos, aprimorar instituições e preservar a estabilidade das relações econômicas legítimas.
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1 Almeida, Karolina Dib de. O dano ao erário in re ipsa e a condenação ao ressarcimento integral do dano nos casos de improbidade administrativa tipificados no art. 10, VIII, da Lei n. 8.429/1992. 2019-07-02. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
2 BRASIL, Constituição Federal (1988).
3 KROETZ, Maria Candida do Amaral. Enriquecimento sem causa no direito civil brasileiro contemporâneo e recomposição patrimonial. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 27 de junho de 2005. Disponível em: . Acesso em: 07 de julho de 2025
5 OLIVEIRA, Gustavo Justino de; JALIL, Mauricio S.; MARTINS, Ricardo M. Lei anticorrupção: comentários à Lei n. 12.846/2013 e temas correlatos. Barueri: Manole, 2025. E-book. ISBN 9788520459959.
6 OLIVEIRA, Gustavo Justino de; JALIL, Mauricio S.; MARTINS, Ricardo M. Lei anticorrupção: comentários à Lei n. 12.846/2013 e temas correlatos. Barueri: Manole, 2025. E-book. ISBN 9788520459959.
7 GALDI, João Manoel Andrade Maciel da Silva Campos. Em direção ao ressarcimento racional do dano: o mito da reparação integral em casos de corrupção. 2025. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2025.
8 Regert, R., Frigotto, S., & Rönnau, F. H. (2021). VALOR JUSTO OU ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO? O regime de transição previsto na lei nº 13.655 frente ao valor do ressarcimento da pessoa jurídica ao erário. Cadernos Zygmunt Bauman, 11(26). Recuperado de https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/bauman/article/view/17102
9 KROETZ, Luiza. O enriquecimento sem causa como fundamento do dever de indenizar. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 42, p. 43-57, 2005.
10 OENNING, João. Reparação de danos no direito brasileiro. Revista Jurídica, Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 22-38, 2018.
11 OLIVEIRA, Gustavo Justino de; JALIL, Mauricio S.; MARTINS, Ricardo M. Lei anticorrupção: comentários à Lei n. 12.846/2013 e temas correlatos. Barueri: Manole, 2025. E-book. ISBN 9788520459959.
12 Regert, R., Frigotto, S., & Rönnau, F. H. (2021). VALOR JUSTO OU ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO? O regime de transição previsto na lei nº 13.655 frente ao valor do ressarcimento da pessoa jurídica ao erário. Cadernos Zygmunt Bauman, 11(26). Recuperado de https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/bauman/article/view/17102
13 GALDI, João Manoel Andrade Maciel da Silva Campos. Em direção ao ressarcimento racional do dano: o mito da reparação integral em casos de corrupção. 2025. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2025.
14 REMÉDIO, José Antônio; SILVA, Marcelo Rodrigues da. Os acordos de leniência da Lei Anticorrupção e o uso da informação como ativo. Revista da AGU, Brasília, v. 17, n. 3, p. 165-184, 2018.
15 NUNES, Luciana Gonçalves. Teoria dos jogos e cartéis: quanto vale um acordo de leniência? Revista do IBRAC, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 140-152, 2016.
16 Castro, Marcus Faro de. “A Dimensão Econômica da Efetividade dos Direitos Fundamentais”. Revista Semestral de Direito Econômico 1, nº 2 (2021): 1–37.
17 NUNES, Luciana Gonçalves. Teoria dos jogos e cartéis: quanto vale um acordo de leniência? Revista do IBRAC, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 140-152, 2016.