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Justiça climática é justiça social: Opinião consultiva da Corte IDH corrobora campanha da ANADEP e reforça o dever dos Estados de proteger os mais vulneráveis da crise climática

A OC-32/25 da Corte IDH consagra o direito a um clima saudável e fortalece o papel da Defensoria na proteção dos mais vulneráveis à crise climática.

9/7/2025

O ano de 2025 está se consagrando como um marco indelével na história da defesa dos direitos humanos e do meio ambiente na América Latina. Isso porque enquanto o mundo volta seus olhos para Belém e o Brasil se posiciona para liderar a COP 30, em novembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos apresenta a mais relevante resposta jurídica da região à crise climática mundial: a opinião consultiva 32/25, divulgada em 29 de maio.

Nesse contexto, o grito potente e necessário da Campanha Nacional da ANADEP - Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos do ano de 2025, com o tema "Justiça Climática é Justiça Social: Defensoria Pública por um Brasil mais sustentável, justo e igualitário", apresenta-se ainda mais atual e premente, principalmente com o objetivo de se consolidar o paradigma de que a crise climática é, em sua essência, uma crise de direitos humanos e de desigualdade social, a exigir a atuação de todo o Poder Público e, em particular, da Defensoria Pública.

Não há dúvidas de que a OC-32/25 sobre “Emergência Climática e Direitos Humanos” deve ser lida como um verdadeiro divisor de águas no debate sobre mudanças no clima e seus efeitos sobre as populações vulnerabilizadas. Solicitada por Chile e Colômbia, a opinião estabelece um roteiro claro e contundente sobre as obrigações dos Estados para enfrentar a questão.

Dentre os pontos mais impactantes e inovadores da decisão, a Corte IDH reconhece, pela primeira vez, o "direito a um clima são" como um direito humano autônomo, derivado do direito a um meio ambiente sadio, o que eleva a proteção climática a um novo patamar jurídico. Dessa forma, os Estados não devem apenas reagir aos efeitos das mudanças climáticas, mas agir proativamente. A Corte IDH estabelece, então, um padrão de "devida diligência reforçada", exigindo que os Estados atuem com base na melhor ciência disponível para prevenir e mitigar as causas e os impactos da mudança climática. Em uma de suas conclusões mais fortes, a Corte IDH afirma que a proibição de causar danos graves e irreversíveis ao sistema climático e ao meio ambiente constitui uma norma de jus cogens - uma norma imperativa do direito internacional que se sobrepõe a qualquer outra e que nenhum Estado pode deixar de cumprir.

Alinhando-se às tendências constitucionais mais progressistas da região, a Corte reconhece a importância de tratar a Natureza e seus componentes como sujeitos de direitos, reforçando a necessidade de proteger a integridade dos ecossistemas. Além disso, o documento é expresso em determinar que os Estados devem regular, supervisionar e fiscalizar as atividades das empresas para garantir que elas não violem os direitos humanos no contexto da crise climática, incluindo a obrigação de mitigar suas emissões de gases de efeito estufa.

Portanto, a Corte IDH consolidou, de modo salutar e irrevogável, que a construção de políticas públicas de proteção e prevenção, inclusive com a participação da Defensoria Pública, é uma imposição legal da contemporaneidade a partir de uma visão fundada no Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Contudo, a partir do documento, talvez um dos temas mais levantes para a Defensoria Pública seja a necessidade de garantir proteção especial para grupos vulneráveis. A Opinião enfatiza o impacto desproporcional da crise sobre diversos grupos, como crianças e adolescentes, povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres, população LGBTI+ e pessoas em situação de pobreza, determinando que os Estados adotem medidas de proteção diferenciada. Assim, a opinião consultiva vai muito além de uma declaração genérica de proteção. Ela disseca a vulnerabilidade e estabelece um verdadeiro catálogo de deveres estatais, o que permite o estabelecimento de estratégicas específicas para exigir o cumprimento de cada um deles.

É aqui que a campanha e a Opinião Consultiva convergem de maneira poderosa. Enquanto a ANADEP busca dar rosto e voz a essa realidade, a Corte IDH lhe confere a base jurídica mais sólida possível, estabelecendo um conjunto de obrigações estatais e fornecendo à Defensoria Pública e à sociedade civil uma ferramenta legal de poder sem precedentes para cobrar ação.

Por exemplo, para as crianças e adolescentes, a Corte determina que o Estado deve ir além da mera garantia de educação. É seu dever assegurar a continuidade do aprendizado em cenários de desastre e fortalecer a resiliência da infraestrutura escolar Além disso, reconhece o impacto na saúde mental, como a "ecoansiedade", e consagra o direito à participação efetiva da juventude nos processos de tomada de decisão sobre o clima. Na prática, isso é um mandato direto para a atuação da Defensoria, que pode judicializar a falta de planos de contingência em escolas, exigir a criação de conselhos juvenis de política climática em municípios ou mesmo pleitear a inclusão de saúde mental climática nos serviços públicos.

No que tange aos povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas e camponesas, a Corte reforça a proteção de seus territórios como um pilar da ação climática. A decisão determina que a consulta prévia, livre e informada - e, em casos de grande impacto, o consentimento - é obrigatória não apenas para projetos de exploração, mas também para políticas e medidas climáticas que possam afetar seus modos de vida. A Opinião também eleva os saberes tradicionais e ancestrais, determinando que eles devem ser integrados ao lado da "melhor ciência disponível". Isso instrumentaliza a Defensoria para contestar grandes projetos de infraestrutura ou de energia que ignorem esses saberes ou que não tenham realizado a consulta adequada, defendendo a integridade territorial e cultural como parte essencial da solução climática.

Indo além, a Corte adota uma visão profundamente interseccional ao tratar da proteção de mulheres e da população LGBTIQ+. Ela reconhece que, em contextos de desastres, as mulheres (especialmente as chefes de família) arcam com um fardo desproporcional de cuidado e são mais vulneráveis à violência de gênero. Dessa forma, o documento permite não apenas lutar por abrigos seguros e com protocolos de gênero, mas também exigir que os programas de recuperação econômica e de realocação priorizem as mulheres chefes de família. Além disso, a Corte estabelece que todas as ações empreendidas no marco da emergência climática devem incluir a perspectiva de gênero e interseccional.

De modo mais inovador ainda, a Corte estabelece a obrigação específica de garantir que os abrigos temporários sejam espaços seguros para a população LGBTIQ+, exigindo que o pessoal de atendimento receba formação sobre diversidade e inclusão para prevenir assédio e discriminação. Para a Defensoria, isso significa poder fiscalizar os planos de emergência e os abrigos, exigindo protocolos específicos de proteção e garantindo que a resposta a desastres seja verdadeiramente inclusiva e não replique as violências estruturais da sociedade.

Por fim, para as pessoas em situação de pobreza, a opinião consultiva opera uma mudança fundamental ao reconhecer a pobreza não apenas como uma condição preexistente, mas como um fator estrutural de vulnerabilidade que o Estado tem o dever de combater no contexto da ação climática, dialogando com o conceito de racismo ambiental, o qual refere-se à existência de desigualdades na distribuição de impactos ambientais negativos.

A Corte adota o conceito de pobreza multidimensional, que transcende a mera falta de renda para abranger a carência de acesso a serviços essenciais como saúde, educação, moradia e saneamento. Nesse sentido, a OC deixa claro que os impactos climáticos - como a perda de colheitas, a destruição de moradias precárias ou o aumento do preço dos alimentos - não apenas afetam mais intensamente quem já é pobre, mas criam novos bolsões de pobreza, em um ciclo vicioso que o Estado é obrigado a romper. Tal previsão fortalece imensamente o mandato da Defensoria Pública. A instituição pode, a partir desse documento, argumentar que uma política de adaptação que não inclua programas de proteção social e transferência de renda é, por si só, uma violação de direitos humanos. Da mesma forma, pode contestar medidas de mitigação que imponham um fardo desproporcional aos mais pobres, como a eliminação de subsídios sem a criação de alternativas, defendendo uma transição energética que seja genuinamente justa. A luta contra a pobreza, portanto, deixa de ser uma política social paralela e se torna um componente central e indispensável da ação climática estatal.

Assim, o que torna este momento singular é a convergência histórica entre o clamor social, a legitimação jurídica e o palco político. A Campanha Nacional da ANADEP, ao dar rosto e voz aos mais vulneráveis, capturou a essência da crise. A opinião consultiva da Corte IDH, por sua vez, transformou essa voz em um dever legal, em uma obrigação internacionalmente exigível. Agora, a COP 30 em Belém se apresenta como a arena onde esse novo e avançado paradigma de direitos humanos será posto à prova, e onde o Brasil terá sua liderança verdadeiramente testada.

A liderança que o Brasil almeja em Belém não será medida apenas pela capacidade de organizar um evento global ou por discursos eloquentes sobre a floresta. Será medida, fundamentalmente, pela sua disposição em honrar a mais progressista interpretação de direitos humanos produzida em seu próprio "quintal" interamericano. Nesse cenário, a Defensoria Pública transcende seu papel tradicional e busca assumir o protagonismo de guardiã dessa nova fronteira do direito.

Nesse cenário, a defensoria, armada com a OC-32/25 e impulsionada pelo chamado social de sua campanha, é um ator central para garantir que o legado da COP 30 não seja apenas uma carta de intenções, mas um compromisso real, fiscalizável e judicializável com as vidas que mais importam. O que está em jogo não é apenas o futuro do clima. A questão fundamental é se a justiça climática será o verdadeiro legado de nosso tempo ou apenas mais uma promessa adiada.

Douglas Admiral Louzada
Defensor Público do Espírito Santo. Diretor Coordenador da Região Sudeste da ANADEP. Membro das Comissões para Assuntos Internacionais e de Diversidade Sexual da ANADEP. Mestrando em Direito na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

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