Em tempos de polarização, censura algorítmica e silenciamento digital, cresce o debate sobre os limites da liberdade de expressão nas plataformas controladas por big techs. Operadores do Direito se veem diante de um dilema: como defender direitos fundamentais em um espaço digital onde os donos das chaves também decidem quem entra e quem é banido? Nesse contexto, surge o Nostr como um protocolo disruptivo, que devolve ao indivíduo o controle da sua voz na rede.
O que é o Nostr?
Ao contrário do que muitos imaginam, o Nostr não é uma nova rede social concorrente do X ou do Instagram. É, na verdade, um protocolo aberto que permite a publicação e leitura de mensagens assinadas digitalmente. Ele funciona de forma descentralizada, sem um servidor central que controle o fluxo de informações. Cada pessoa detém duas chaves criptográficas: uma privada, que serve para assinar os conteúdos, e uma pública, que funciona como identidade digital.
Essa estrutura, inspirada nos princípios do bitcoin, garante que as mensagens publicadas sejam verificáveis, autênticas e imutáveis. Os dados trafegam por servidores chamados "relays", e qualquer pessoa pode hospedar um desses relays. Em analogia simples, imagine que cada relay é como um quadro de avisos público e você pode escolher em quais deseja afixar suas mensagens. Se um relay decidir ignorá-lo, há outros onde sua voz poderá ecoar.
Outro ponto essencial: a identidade no Nostr não depende de telefone, e-mail ou qualquer dado pessoal. Basta a chave pública. É como ter uma identidade digital que ninguém pode revogar.
A reviravolta da arquitetura descentralizada
Nas redes sociais convencionais, grandes empresas concentram o poder de moderação. Perfis são removidos, conteúdos são ocultados, algoritmos priorizam ou abafam mensagens. Tudo isso sem necessidade de ordem judicial. Essa centralização tem implicações profundas: basta uma diretriz interna ou um erro algorítmico para calar uma opinião.
O Nostr rompe com essa lógica. Como não há um centro de controle, ninguém pode apertar um botão e silenciar um usuário globalmente, nem mesmo decisões judiciais. Isso representa uma revolução na forma como a liberdade de expressão pode se manifestar no meio digital.
Mais ainda: o Nostr integra a rede lightning do bitcoin, permitindo que usuários enviem pequenas quantias - chamadas satoshis - diretamente entre si. Imagine a possibilidade de apoiar um autor, jurista ou pesquisador com um pagamento instantâneo, sem depender de plataformas de monetização ou anúncios invasivos. Esse modelo transforma o incentivo: quem gera valor, recebe valor, sem intermediários.
Tensões jurídicas e a busca por equilíbrio
Esse novo modelo traz desafios para o Direito. Quem responde por um conteúdo ofensivo ou difamatório em uma rede onde não há empresa gestora? Como compatibilizar o anonimato técnico com o dever de responsabilização por danos?
Além disso, a legislação brasileira, especialmente após as recentes decisões do STF sobre o marco civil da internet, passou a exigir das plataformas um dever de cuidado proativo. Em casos de racismo, homofobia ou discursos de ódio, por exemplo, as empresas devem remover o conteúdo após simples notificação, sob pena de responsabilização. Mas como cumprir tal exigência se não há um responsável técnico central?
Outro ponto delicado envolve a proteção de dados. O Nostr, por padrão, não coleta dados pessoais. Ainda assim, relays podem registrar metadados - como horários de publicação e endereços IP. Esses dados estariam sujeitos à LGPD? E quem seria o controlador ou operador?
Propostas de abordagem regulatória
O cenário impõe a necessidade de criatividade jurídica. Algumas propostas vêm ganhando força. Uma delas seria a autorregulação por camadas, em que grupos de relays adotam códigos mínimos de conduta - como rejeição a conteúdos criminosos - sem comprometer a lógica descentralizada. Outra ideia é o chamado direito de réplica algorítmico: em vez de remover uma postagem, o sistema permite que se anexe uma contranarrativa, de forma transparente. Há ainda a possibilidade de sinalização descentralizada: usuários e organizações confiáveis poderiam marcar conteúdos questionáveis, deixando para os leitores a escolha de visualizar ou ocultar.
No plano técnico, os desafios também são relevantes. Ataques Sybil, com criação massiva de perfis falsos, podem ser mitigados com exigência de micropagamentos ou provas de trabalho computacional leve para cada publicação. É um modo de dificultar o spam sem restringir o acesso legítimo.
Cenários de aplicação no campo jurídico
O Nostr não é apenas uma ferramenta de resistência à censura. Ele pode ser uma plataforma poderosa para o Direito. Juristas podem publicar pareceres, manifestações públicas ou denúncias em ambiente imutável, registrando cronologicamente seus posicionamentos. Escritórios podem criar logs técnicos e jurídicos auditáveis. Advogados e peritos podem usar a estrutura como meio de difusão ética e transparente de informações. Podem ser salvos mensagens ou hashes de arquivos para prova de anterioridade em direitos autorais.
Com os zaps em lightning, também é possível criar sistemas de doação, pagamento por acesso a conteúdos ou incentivo direto à produção acadêmica e jurídica. Isso descentraliza não só a informação, mas o próprio financiamento do conhecimento.
O paradoxo do marco civil e a fuga para a descentralização
A decisão do STF de 2025, que ampliou a responsabilidade das big techs por conteúdos de terceiros, representou uma inflexão jurídica importante. Plataformas agora devem agir com maior rapidez e rigor na moderação de conteúdos ofensivos, especialmente quando impulsionados por publicidade ou bots. O objetivo é legítimo: combater abusos e proteger direitos fundamentais. Mas os efeitos colaterais já se fazem notar.
Ao tornarem-se mais rígidas, muitas plataformas passaram a remover conteúdos de forma preventiva, ainda que lícitos, para evitar riscos. Isso gerou o fenômeno conhecido como censura silenciosa ou chilling effect. A consequência? Uma crescente migração para redes onde o conteúdo não pode ser retirado do ar.
O Nostr, por sua arquitetura, oferece exatamente isso: imutabilidade, permanência e ausência de controle central. Porém, essa liberdade absoluta também é terreno fértil para abusos. O desafio, portanto, não é apenas técnico ou normativo. É ético.
Como equilibrar liberdade com responsabilidade em um ambiente que, por design, não admite vigilância centralizada?
Durante períodos eleitorais, por exemplo, redes como o Nostr podem ser usadas para difundir conteúdos enganosos sem que haja qualquer mecanismo efetivo de remoção. Isso acende o alerta para operadores do Direito, legisladores e desenvolvedores. A descentralização é poderosa, mas exige novas formas de pactuação social.
Horizontes e reflexões finais
O futuro da comunicação digital passa, inevitavelmente, pelo debate sobre redes descentralizadas. Elas representam um retorno à ideia original da internet: um espaço livre, interoperável, colaborativo. Mas liberdade sem estrutura é fragilidade. E controle excessivo, por outro lado, é silenciamento.
Caberá aos operadores do Direito, em parceria com desenvolvedores e instituições acadêmicas, construir pontes entre técnica e norma. Isso inclui a criação de células de estudo interdisciplinares, a adoção experimental de relays éticos por universidades e o desenvolvimento de ferramentas que ampliem a transparência sem comprometer a autonomia dos usuários.
Talvez, mais do que regular o Nostr, seja hora de aprender com ele. E repensar as estruturas de comunicação, de poder e de verdade que definem nossa vida digital.
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Alden, Lyn. Implications of Open Monetary and Information Networks. LynAlden.com, 2023. Disponível em: https://www.lynalden.com/open-networks/
Alden, Lyn. The Power of Nostr: Decentralized Social Media and More. LynAlden.com, 2024. Disponível em: https://www.lynalden.com/the-power-of-nostr/
Wei, Yiluo; Tyson, Gareth. Exploring the Nostr Ecosystem: A Study of Decentralization and Resilience. arXiv, 2024. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2402.05709
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CNN Brasil. Entenda quais são as mudanças sobre a responsabilização das big techs. 26 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entenda-quais-sao-as-mudancas-sobre-a-responsabilizacao-das-big-techs/