No início de julho, as águas da diplomacia internacional ficaram mais agitadas com a divulgação da declaração conjunta do BRICS sobre governança global da inteligência artificial. O bloco - formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - lançou ao mundo uma espécie de carta náutica para quem deseja navegar no vasto oceano digital da IA, propondo rotas comuns para temas que até então dividiam opiniões em portos distantes.
A primeira grande onda a ser enfrentada é a do acesso à tecnologia. Os países do BRICS defenderam abertamente o fomento ao desenvolvimento e uso de IA em código aberto, sugerindo que a inovação precisa ser uma maré que eleve todos os barcos, e não apenas os transatlânticos do Norte Global. O código aberto, nessa perspectiva, funciona como um mapa compartilhado - ao invés de rotas secretas, todos têm a chance de conhecer e colaborar nos caminhos para a transformação digital.
Aqui, cabe uma reflexão: se o oceano é de todos, não seria ideal pensarmos em mecanismos de fomento que estimulem tanto o desenvolvimento aberto quanto o privado? Incentivos, sejam fiscais ou regulatórios, poderiam ser a bússola para garantir que mais países - especialmente os em desenvolvimento - não fiquem à deriva nessa nova era.
A governança internacional da IA, por sua vez, aparece como um farol guiando a travessia. O documento propõe uma governança global sob a liderança da ONU, com protocolos e padrões interoperáveis criados em processos inclusivos, transparentes e baseados em consenso. A participação ativa dos países do Sul Global é colocada como crucial, numa tentativa de evitar que apenas algumas nações tenham o timão em mãos.
Mas será que um farol único consegue iluminar todos os recifes e correntes? Fica a provocação: não deveríamos discutir, mais profundamente, como compatibilizar essa governança global com as particularidades de cada legislação nacional? O oceano digital não é homogêneo - há mares revoltos e águas tranquilas, e a soberania dos Estados pode ser um tema central quando se pensa em portos tão diferentes.
Navegar pelo tema da propriedade intelectual é enfrentar tempestades que já se anunciam no horizonte. Os componentes do BRICS destacaram a necessidade de proteger direitos autorais e garantir mecanismos de remuneração justa no uso de conteúdos por sistemas de IA - uma resposta direta ao risco de exploração abusiva de dados e à violação da privacidade.
O documento sugere que é preciso evitar que grandes navios naveguem livremente explorando todos os recursos, enquanto pequenos barcos ficam à mercê das ondas. Mas até onde deve ir a proteção do direito autoral e onde começa o interesse público pelo acesso à tecnologia e à informação? Como equilibrar a proteção dos criadores e o incentivo à inovação? Aqui, talvez, esteja o maior desafio desse oceano: evitar que redes de proteção se tornem armadilhas para a criatividade e a colaboração internacional.
Além disso, a declaração do BRICS ancora temas como a proteção de dados pessoais, o combate à extração abusiva de informações, a mitigação de vieses discriminatórios e a promoção da sustentabilidade ambiental. Há ainda menção à necessidade de uma competição de mercado mais justa e a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores afetados pela digitalização - como se o bloco buscasse garantir que ninguém seja deixado para trás nessa travessia coletiva.
Em última análise, a declaração do BRICS é mais do que uma simples carta de intenções - é um convite à reflexão sobre os rumos da navegação digital. Em um oceano onde as rotas ainda estão sendo traçadas, surge a pergunta: que tipo de bússola vamos escolher? Vamos buscar um equilíbrio entre colaboração e proteção, entre inovação e segurança, entre o global e o local? Ou corremos o risco de ver nossos barcos à deriva, navegando sem mapa em águas cada vez mais profundas e desconhecidas?
O futuro da inteligência artificial, assim como as grandes navegações, será escrito por aqueles que ousarem pensar para além do horizonte. E, no cenário do BRICS, nunca foi tão urgente debater - e provocar - sobre qual oceano digital queremos atravessar.