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A inteligência artificial como suporte à decisão judicial no século XXI

A metáfora do juiz Hércules ganha nova dimensão com a IA, que, sem substituir o juízo humano, amplia a capacidade decisória com mais coerência e integridade.

18/7/2025

A metáfora do juiz Hércules, idealizada por Ronald Dworkin em sua teoria do Direito como integridade, projeta um modelo de magistrado dotado de capacidades sobre-humanas: memória ilimitada, conhecimento exaustivo do ordenamento jurídico e compromisso incondicional com a coerência e a moralidade do sistema.

Trata-se de uma figura ficcional que, ao decidir casos difíceis, seria capaz de consultar a totalidade das normas, princípios, precedentes e valores constitucionais, emitindo decisões que melhor preservem a integridade da prática jurídica como um todo. Esse ideal interpretativo, embora inalcançável na experiência concreta, serve como parâmetro teórico para decisões judiciais que dialoguem com o passado do Direito e preservem sua racionalidade interna.

No contexto contemporâneo, entretanto, os avanços da tecnologia, especialmente da inteligência artificial, oferecem novos contornos a essa figura. O que antes era concebido como um exercício puramente imaginativo ganha concretude com o desenvolvimento de sistemas algorítmicos capazes de processar grandes volumes de dados normativos, jurisprudenciais e doutrinários.

A IA não possui discernimento moral, tampouco substitui o juízo de valor humano, mas apresenta-se como instrumento poderoso de apoio à atividade jurisdicional, permitindo decisões mais rápidas, coerentes, baseadas em ampla consulta a precedentes e padrões jurisprudenciais.

No Brasil, o uso da inteligência artificial no Judiciário já é realidade. O STF conta com o Projeto Victor, que realiza a triagem automatizada de recursos extraordinários com base em temas de repercussão geral. Além dele, ferramentas como o RAFA, que classifica processos conforme os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, o VitórIA, que agrupa processos por similaridade temática, e o MARIA, que oferece apoio redacional automatizado, já demonstram a capacidade da tecnologia em estruturar e otimizar o processo decisório. No âmbito regional, destacam-se iniciativas como o sistema ALEI-1G, que atua na triagem de processos e elaboração de minutas no TRF da 1ª região, por meio do NIAJus - Núcleo de Inteligência Artificial Judiciária, no Distrito Federal.

Essas tecnologias não proferem julgamentos autônomos, mas funcionam como assistentes digitais que otimizam o trabalho dos magistrados, ampliando sua capacidade de analisar informações relevantes de forma sistêmica. O art. 926 do CPC, ao determinar que a jurisprudência deve ser estável, íntegra e coerente, estabelece um compromisso normativo que se aproxima significativamente da teoria da integridade de Dworkin.

A IA, ao identificar padrões decisórios e inconsistências, pode contribuir diretamente para a realização desse dever, fornecendo subsídios para que o julgador mantenha a racionalidade e a previsibilidade das decisões.

Contudo, essa integração entre tecnologia e jurisdição impõe novos desafios, especialmente quanto à transparência e à possibilidade de impugnação de decisões parcialmente construídas com base em algoritmos. O art. 489, §1º, do CPC exige fundamentação clara, enfrentando todos os argumentos relevantes trazidos pelas partes.

Se o magistrado se vale de sugestões oferecidas por IA, é essencial que se compreenda como essas sugestões foram formadas, com base em quais dados, padrões e margens de confiabilidade. A opacidade algorítmica representa risco à ampla defesa e ao contraditório, razão pela qual se exige o desenvolvimento de sistemas explicáveis, auditáveis e transparentes, que permitam o controle jurisdicional e democrático.

Nesse cenário, o papel dos procuradores das partes também sofre transformação. Advogados, membros do Ministério Público e procuradores em geral, devem desenvolver competências técnicas que lhes permitam compreender o funcionamento básico dos algoritmos utilizados, a fim de exercer adequadamente o direito de impugnação.

Não basta mais apenas conhecer a legislação e a jurisprudência: é preciso identificar possíveis falhas na interpretação algorítmica, viéses de dados e fundamentos decisórios incompatíveis com o ordenamento jurídico. Mais que isso, as partes também podem utilizar a IA como instrumento proativo de atuação processual, empregando sistemas que sugerem precedentes relevantes, simulam probabilidades de êxito, identificam linhas decisórias dominantes e contribuem para a elaboração de peças processuais mais persuasivas.

Esse movimento de simetria tecnológica reforça o contraditório e a paridade de armas, ampliando o potencial argumentativo das partes diante de um Judiciário cada vez mais informatizado. Se o juiz pode, com auxílio da IA, se aproximar das capacidades do juiz Hércules, os procuradores também devem se tornar operadores jurídicos mais sofisticados, conjugando o saber jurídico tradicional com competências digitais e analíticas. A IA não deve ser vista como substituta da jurisdição, mas como ferramenta que potencializa a capacidade decisória humana, garantindo maior racionalidade, previsibilidade e coerência às decisões judiciais.

Em suma, a figura do juiz Hércules deixa de ser apenas uma utopia filosófica e passa a representar um horizonte possível com o uso consciente e ético da inteligência artificial. A tecnologia, quando bem empregada, não julga, mas amplia a capacidade de julgamento.

Essa transformação, no entanto, deve ser conduzida com prudência, com respeito aos princípios constitucionais, às garantias processuais e aos direitos fundamentais. O desafio do presente não é substituir o juiz humano, mas oferecer-lhe melhores instrumentos para que julgue com mais tempo, mais dados e, sobretudo, com mais integridade.

Marco Aurélio Franqueira Yamada
Advogado do escritório Mandaliti Advogados. Mestre em Direito. Especializações em Direito Civil e Processual Civil (ITE), Direito Empresarial (FGV-SP) e Direito Digital.

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