A classificação do dolo é uma das construções mais persistentes - e ao mesmo tempo mais equivocadas - da dogmática penal tradicional. Sob o pretexto de refinar a análise da culpabilidade, o que se fez, ao longo da história, foi diluir a essência do dolo, transformando a vontade em um espectro graduável, maleável, e, por isso mesmo, manipulável. Este artigo resgata as origens dessa tendência e aponta suas consequências teóricas e políticas.
Na origem do Direito Penal, não havia gradações. A imputação se baseava em dois critérios simples: a conduta era dolosa, quando oriunda da vontade livre, ou imprudente, quando resultante de falta de cuidado. Essa bipartição, presente tanto no Direito grego quanto no romano, era suficiente para compreender os fenômenos relevantes à justiça penal. Os romanos, por exemplo, não distinguiam graus de intenção: ou havia animus nocendi, ou não havia imputação dolosa.
A ruptura começa quando, influenciado por fatores sociopolíticos, o Estado passa a mitigar o significado do dolo, especialmente em delitos cuja gravidade exigia repressão, ainda que ausente uma vontade claramente demonstrada. Essa estratégia se manifestou, sobretudo, nas decisões sobre homicídio, onde o elemento volitivo passou a ser interpretado com menor rigor, a depender da vítima, do contexto e da conveniência estatal.
A jurisprudência romana do século II d.C., especialmente os reescritos da chancelaria de Adriano, revela esse movimento. O texto D. 48.8.1.3 do Digesto, ao afirmar que “cometeu um homicídio mais por causalidade que por vontade”, inaugura a tendência de relativizar a intenção e introduzir, ainda que de forma implícita, a noção de gradação do dolo. Nesse momento, a vontade deixa de ser um dado absoluto e passa a ser examinada segundo um critério de intensidade.
Com isso, inicia-se uma lenta, mas contínua, erosão do conceito de dolo. O que antes era entendido como vontade de violar a norma se fragmenta em várias expressões linguísticas: dolus, fraus, culpa, voluntas, mens, animus, adfectus. A diversidade terminológica encobre, na verdade, um processo político de esvaziamento do núcleo da imputação penal.
A lógica do talião - “olho por olho, dente por dente” - foi substituída, gradualmente, por critérios mais sofisticados de responsabilização, é verdade. Mas a sofisticação dogmática não veio acompanhada de rigor conceitual. Ao contrário, criou-se uma dogmática que transforma em espécies aquilo que deveria ser compreendido como manifestações unitárias da vontade livre de delinquir. É o que ocorre, por exemplo, quando se tenta distinguir o dolo de propósito do dolo de ímpeto, ou o dolo pleno do dolo menos pleno. Tudo isso são formas de relativizar o absoluto: a vontade.
Classificar o dolo significa, em termos concretos, minar sua legitimidade como critério de imputação. E o efeito mais nocivo desse movimento é a criação da figura do “dolo eventual”, que se apresenta como categoria intermediária entre dolo e imprudência, mas que, na prática, funciona como instrumento de presunção: presume-se a aceitação do risco, mesmo sem demonstração inequívoca da vontade. A consequência disso é gravíssima para o Estado Democrático de Direito, pois substitui a prova pela hipótese, o fato pelo juízo moral, a vontade pela ficção.
Ao classificar o dolo, abre-se caminho para decisões que não se baseiam mais na conduta do agente, mas em interpretações convenientes de seu “grau de intenção”. Cria-se, assim, um Direito Penal volátil, onde a imputação deixa de ser um juízo técnico sobre a ação e passa a ser um juízo político sobre o sujeito. É nesse terreno que se constrói a doutrina do dolo eventual - uma doutrina que não respeita o princípio da legalidade estrita nem a exigência de certeza na responsabilização penal.
Esse processo não é recente. Já os compiladores de Justiniano distinguem três formas de cometimento de delitos: por propósito (dolo), impulsivamente (ímpetu) ou por acaso (imprudência). Embora pareça um avanço na sofisticação conceitual, essa tripartição inaugura uma confusão que perdura até hoje. A categoria intermediária - o ímpeto - é ambígua o suficiente para permitir tanto a imputação dolosa quanto a imprudente, dependendo do olhar do intérprete. Essa flexibilidade é o que torna a classificação do dolo um terreno fértil para arbitrariedades.
É nesse contexto que se torna indispensável recuperar a crítica de Romagnosi, para quem o dolo é indivisível. Para o autor italiano, a vontade não admite gradação: ou há vontade, ou não há. Afirmar o contrário seria tão absurdo quanto postular a existência de uma “meia sede” ou de uma “vontade eventual”. Essa linha de pensamento foi posteriormente reforçada por Mezger, que também denunciou o caráter confuso e anticientífico das classificações do dolo.
A classificação do dolo, portanto, não é apenas um erro conceitual. É uma operação ideológica que atinge o coração da imputação penal. Ela compromete a previsibilidade das decisões judiciais, permite a ampliação indevida do poder punitivo e dissolve as garantias do devido processo legal. Mais do que uma construção teórica, é uma ameaça prática à racionalidade penal e à justiça democrática.
Recuperar a unidade do dolo como expressão da vontade livre de violar um bem jurídico é uma tarefa inadiável. É preciso abandonar as categorias que servem mais à vaidade dogmática do que à justiça, e retomar um modelo de imputação baseado na objetividade da ação e na clareza da intenção. Apenas assim será possível reconstruir a imputação penal como instrumento legítimo de controle social, e não como ferramenta de arbítrio.
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).