O acesso de companhias de menor porte ao mercado de capitais brasileiro sempre representou um desafio, seja pela complexidade regulatória, seja pelos custos envolvidos no cumprimento das exigências tradicionais. Com a edição das resoluções CVM 231 e 232, a CVM - Comissão de Valores Mobiliários inaugura o regime FÁCIL, um novo paradigma regulatório que busca democratizar e simplificar o acesso dessas empresas ao mercado, especialmente no que se refere à realização de ofertas públicas de dívida.
O ponto de partida do regime FÁCIL é a definição de companhia de menor porte, restrita a sociedades anônimas que tenham auferido receita bruta anual consolidada inferior a R$ 500 milhões, apurada com base nas demonstrações financeiras de encerramento do último exercício social.
Conforme detalhado pela resolução CVM 232, a aferição da receita considera o consolidado da companhia, abrangendo suas controladas, mas não se estendendo automaticamente aos seus acionistas ou ao grupo econômico como um todo. Assim, subsidiárias de grandes grupos podem, em tese, acessar o regime, desde que atendam aos requisitos objetivos estabelecidos.
Além disso, o enquadramento é dinâmico, prevendo um "período de cura" de até um ano para casos em que o faturamento ultrapasse temporariamente o limite, o que mitiga o risco de desenquadramento automático em razão de eventos extraordinários ou oscilações pontuais.
Além dos critérios de receita bruta anual consolidada, a resolução CVM 232 detalha, a partir do art. 9º, requisitos adicionais para que a companhia seja formalmente classificada como CMP - Companhia de Menor Porte1 e possa usufruir de determinadas dispensas regulatórias do regime FÁCIL. São exigidos cumulativamente:
(i) o enquadramento como companhia de menor porte, conforme o critério de receita já mencionado;
(ii) a apresentação de receita proveniente de suas operações, comprovada em demonstração financeira auditada por auditor independente registrado na CVM, o que afasta a possibilidade de classificação de companhias meramente pré-operacionais;
(iii) a listagem da companhia em mercado organizado de valores mobiliários, ou seja, a companhia deve estar admitida à negociação em entidade administradora de mercado organizado autorizada pela CVM; e
(iv) para emissores já registrados, a obtenção de anuência prévia dos titulares de títulos de dívida e, a depender da categoria de registro, também dos acionistas, conforme quóruns estabelecidos na regulamentação.
No âmbito das ofertas públicas de dívida, que é o foco deste artigo, o regime FÁCIL prevê três grandes modalidades de oferta, cada uma com diferentes graus de flexibilização regulatória, seguindo as diretrizes da Resolução CVM 160. Cada modalidade possui limites de captação, requisitos procedimentais, informacionais e de governança específicos. Além dessas, o FÁCIL introduz uma modalidade inovadora e adicional, denominada oferta direta, que se destaca por adotar um procedimento mais simples, ágil e desburocratizado, facilitando o acesso das companhias de menor porte ao mercado de capitais.
A primeira modalidade, já amplamente conhecida pelo mercado, corresponde à realização de ofertas públicas de dívida que observam integralmente as resoluções CVM 160 e 161. Nessa hipótese, não há flexibilizações para a oferta pública em si: o emissor deve cumprir as exigências tradicionais, incluindo a elaboração e atualização do formulário de referência, o envio das informações trimestrais (ITR), a observância dos procedimentos de registro (ou dispensa de registro, quando aplicável) perante a CVM ou de registro perante entidade autorreguladora, além da obrigatoriedade de contratação de coordenador da oferta.
Nessa primeira modalidade, tampouco há qualquer limite para o valor da captação. Trata-se, portanto, da via tradicional de captação de dívida no mercado de capitais, incluída no regime FÁCIL para compatibilizar as dispensas de obrigações aplicáveis à obtenção e manutenção do registro de emissor de valores mobiliários como CMP com o regime tradicional da resolução CVM 160. Esse formato é recomendado para emissores que possuem estrutura e capacidade para atender ao conjunto completo de exigências do mercado tradicional.
A segunda modalidade contempla ofertas públicas de dívida realizadas por emissores classificados como CMP com base em dispensas regulatórias parciais, voltadas ao público investidor em geral. Nessa modalidade, a companhia de menor porte pode se beneficiar de flexibilizações importantes, como a possibilidade de substituir o Prospecto da Oferta pelo formulário FÁCIL, um documento mais simplificado e objetivo, que reúne as informações essenciais sobre a oferta, fatores de risco, destinação dos recursos e condições dos valores mobiliários ofertados, além da dispensa da Lâmina de Informações Essenciais.
O procedimento de registro nessa segunda modalidade é simplificado, com possibilidade de análise prévia realizada pela entidade administradora do mercado organizado em que o emissor esteja listado, permitindo usufruir do rito de registro automático perante a CVM nas hipóteses em que isso é aplicável no âmbito da resolução CVM 160, o que confere maior agilidade ao processo.
Apesar das flexibilizações, permanecem exigências relevantes de transparência, como a necessidade de divulgação tempestiva de informações essenciais, atualização do formulário FÁCIL e observância de padrões mínimos de governança.
O público-alvo desta modalidade é amplo, abrangendo investidores em geral, o que reforça a necessidade de manutenção de salvaguardas informacionais. Contudo, a captação fica limitada ao valor global de R$ 300 milhões a cada 12 meses, considerando o somatório das ofertas realizadas sob o regime FÁCIL sujeitas a essa limitação. Essa limitação visa evitar a exposição excessiva do mercado a operações com menor grau de disclosure, equilibrando o acesso facilitado ao mercado com a proteção dos investidores.
A terceira modalidade refere-se às ofertas públicas de dívida com dispensas regulatórias mais amplas, destinadas exclusivamente a investidores profissionais. Essa modalidade abrange, inclusive, companhias de médio porte de forma mais ampla, não necessariamente classificadas como CMP nos termos do art. 9º e seguintes da resolução CVM 232.
Nesse terceiro formato, as flexibilizações são significativamente maiores: o emissor pode dispensar a contratação de coordenador da oferta, assumindo funções típicas desse prestador, inclusive a interação direta com os investidores profissionais. Em determinadas situações, pode ser dispensado de apresentar demonstrações financeiras auditadas, desde que os valores mobiliários não sejam negociados em mercados organizados, restringindo-se, portanto, a operações em que os investidores profissionais mantenham os títulos em carteira até o vencimento ou negociem fora de mercados organizados.
Além disso, o prospecto, que é um documento mais extenso e denso, pode ser substituído pelo formulário FÁCIL, e há maior autonomia para definir os termos e condições da oferta, desde que respeitados os limites e restrições previstos na regulamentação. A responsabilidade pelo preenchimento do formulário eletrônico de requerimento da oferta recai sobre o depositário central ou, alternativamente e mediante acordo, sobre a entidade administradora de mercado organizado em que os valores mobiliários forem admitidos à negociação. A governança é adaptada ao perfil dos investidores profissionais, que possuem maior capacidade de diligência e avaliação de risco, permitindo maior flexibilidade procedimental.
Contudo, nessa modalidade, a captação também está sujeita ao limite global de R$ 300 milhões a cada 12 meses, considerando o somatório das ofertas realizadas sob o regime FÁCIL sujeitas a essa limitação. Importante destacar que, mesmo com as dispensas, permanecem vedadas a distribuição de lote suplementar e a colocação de valores mobiliários a pessoas vinculadas ao emissor, reforçando a integridade do processo. Além disso, determinados investidores institucionais, como regimes próprios de previdência social, entidades fechadas de previdência complementar e fundos que canalizem os recursos desses players, não são elegíveis para participar dessas ofertas, restringindo o público-alvo.
Adicionalmente, no contexto do regime FÁCIL, a oferta direta configura-se como uma modalidade inovadora de oferta pública de distribuição de valores mobiliários, inclusive títulos de dívida, destinada exclusivamente a CMPs devidamente registradas e classificadas conforme os critérios da regulamentação.
Diferenciando-se das ofertas tradicionais regidas pela resolução CVM 160, a oferta direta está prevista no art. 35 e seguintes da resolução CVM 232, sendo caracterizada por um procedimento simplificado e célere, realizado diretamente em sistema administrado por entidade administradora de mercado organizado em que o emissor esteja listado, sem a necessidade de registro prévio da oferta junto à CVM e sem a obrigatoriedade de contratação de coordenador de oferta pública.
O regime informacional exigido na oferta direta também é substancialmente simplificado. Essa modalidade pode ser direcionada ao público investidor em geral, salvo restrições específicas eventualmente estabelecidas pelo ofertante ou pela entidade administradora, e está sujeita a um limite global de captação de R$ 300 milhões a cada 12 meses, considerando o somatório das ofertas realizadas sob o regime FÁCIL sujeitas a essa limitação. A supervisão e o acompanhamento da oferta cabem à entidade administradora de mercado organizado, que detém prerrogativas para interromper, exigir retificações ou adotar medidas corretivas em caso de descumprimento das regras.
Dessa forma, a oferta direta representa um avanço regulatório ao proporcionar acesso desburocratizado e proporcional ao mercado de capitais para CMPs, preservando, contudo, padrões mínimos de transparência, governança e proteção ao investidor.
O regime FÁCIL também introduz importantes simplificações nas obrigações informacionais e de governança das CMP, sem abrir mão de requisitos essenciais para a proteção do investidor. O principal instrumento informacional é o formulário FÁCIL, que pode substituir o formulário de referência e o prospecto nas modalidades com dispensas regulatórias, sendo o documento padrão da nova modalidade de oferta direta. Além disso, o regime permite a substituição do informe trimestral (ITR) pelo informe semestral (ISEM), e a divulgação do relatório de sustentabilidade, bem como de determinadas políticas internas, como política de negociação de ações, são dispensadas.
No tocante à governança, o regime mantém exigências mínimas compatíveis com a realidade das companhias de menor porte, como a necessidade de instalação de conselho fiscal, quando requerido por acionistas, e a observância das regras gerais da lei das S.A. e das normas da CVM. A contratação de agente fiduciário permanece obrigatória para ofertas de debêntures, em consonância com o disposto na lei 6.404 de 1976, não sendo passível de dispensa por ato infralegal.
Nesse contexto, avaliamos que o regime FÁCIL representa um avanço significativo na democratização do acesso ao mercado de capitais por companhias de menor porte, alinhando o país a práticas internacionais de fomento ao empreendedorismo e à inovação. Ao criar um ambiente regulatório mais proporcional ao porte e à realidade dessas empresas, o FÁCIL reduz custos, simplifica procedimentos e amplia as opções de financiamento, preenchendo o espaço entre as ofertas de crowdfunding e as ofertas públicas tradicionais.
A experiência prática com o FÁCIL deverá ser acompanhada de perto por reguladores, advogados especializados e participantes do mercado, a fim de identificar eventuais ajustes necessários para assegurar a efetividade, a segurança e a atratividade do regime. Trata-se de um passo relevante para o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, com potencial para impulsionar o crescimento econômico, fomentar a inovação e promover a inclusão de pequenas e médias empresas no universo do financiamento por meio do mercado de capitais.
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1 A classificação como CMP pode ser concedida de forma concomitante ao registro inicial de emissor de valores mobiliários, quando este for obtido automaticamente após a listagem em mercado organizado, ou posteriormente, mediante o cumprimento dos requisitos e a obtenção da anuência dos investidores e ou acionistas, conforme aplicável. A manutenção da classificação está condicionada à observância contínua desses requisitos, sendo prevista a perda do status de CMP em hipóteses como desenquadramento do critério de receita, deslistagem do mercado organizado, comunicação voluntária do emissor ou, caso a classificação tenha sido obtida de forma concomitante com o seu registro de emissor de valores mobiliários, não realização de oferta pública de valores mobiliários em até 24 meses após a obtenção do registro inicial. Em caso de desenquadramento por excesso de receita, há um período de adaptação de até um ano para eventual readequação. Nesse sentido, a classificação como CMP, nos termos dos arts. 9º e seguintes da resolução CVM 232, é um processo formal, dinâmico e sujeito a controles periódicos.