No primeiro artigo desta série, traçamos um panorama acerca das mudanças a serem instituídas na legislação ambiental pelo PL 2159, que inaugura o marco legal do licenciamento ambiental e foi aprovado, recentemente, pelo Senado Federal.
O referido PL, que aguarda reanálise pela Câmara dos Deputados, após a elaboração de emendas, pelo Senado Federal, traz uma série de dispositivos que, ao fim e ao cabo, têm como desiderato transformar o licenciamento ambiental em um procedimento mais célere e menos burocrático, sob o pretexto de alcançar uma eventual segurança jurídica às empresas que buscam tal processo.
Nessa linha de raciocínio, o projeto passa a prever novos tipos de licença ambiental, para além daquelas atualmente existentes, quais sejam a licença prévia, a licença de instalação e a licença de operação.
Nos moldes da nova legislação, tem-se como novidades a (i) licença ambiental única; (ii) licença por adesão e compromisso; (iii) licença por operação corretiva; e a (iv) licença ambiental especial.
Como premissa necessária ao desenvolvimento da reflexão proposta por este trabalho, faz-se indispensável uma breve explanação acerca desses novos modelos de licença ambiental.
A Licença Ambiental Única constitui-se por uma única etapa, em que se atesta a viabilidade da instalação, ampliação e operação da atividade ou empreendimento.
Já no caso da Licença por Adesão e Compromisso, o procedimento de licenciamento corre por responsabilidade do requerente, que atestará a viabilidade da operação mediante declaração de adesão e compromisso com os requisitos preestabelecidos pela autoridade licenciadora. Por assim dizer, é uma espécie de licenciamento automático.
De sua vez, a Licença Ambiental Especial, fruto de emenda proposta no Senado Federal, deverá privilegiar atividades ou empreendimentos estratégicos para o governo, sendo concedida no caso em que cumpridos os requisitos, definidos em decreto, por proposta bianual do Conselho de Governo.
Por fim, a Licença de Operação Corretiva terá o objetivo de regularizar a atividade ou empreendimento que esteja operando sem licença ambiental, por meio da fixação de condicionantes que viabilizam sua continuidade em conformidade com as normas ambientais.
Em termos gerais, as novas modalidades de licenças ambientais buscam conferir ao procedimento maior celeridade, permitindo que o empreendedor as obtenha automaticamente, por adesão, ou em processo único, de uma única vez, ainda que o empreendimento seja considerado de médio risco poluidor ao meio ambiente.
Tais previsões não são novidade no ordenamento jurídico brasileiro. Em outras oportunidades, estados e municípios, no âmbito de sua competência concorrente para tratar acerca de questões ambientais, notadamente aquelas de impacto local, previram procedimentos de licenciamento simplificados e, até mesmo, de modo automático.
Nessas oportunidades, o STF foi instado a se manifestar acerca da constitucionalidade de tais medidas, proferindo decisões majoritariamente no sentido protetivo ao meio ambiente, limitando as possibilidades aos casos de baixo impacto ambiental. Na contramão das decisões judiciais, o Poder Legislativo busca introduzir às normas pátrias previsões mais flexíveis, donde surge o questionamento: estar-se-ia diante de verdadeiro backlash normativo?
1. Definição e tipos de efeito backlash
O dicionário Cambridge define backlash como “um forte sentimento entre um grupo de pessoas em reação a uma mudança ou eventos recentes na sociedade ou política”. Para Flávio Martins, seria, em breve síntese, uma forte reação exercida pela sociedade ou por outro Poder a um ato - lei, decisão judicial, ato administrativo etc - do Poder Público.
Em seu trabalho sobre as reações políticas à atuação judicial, “Efeito backlash da jurisdição constitucional”, George Marmelstein explica que “o poder normativo, vale dizer, o poder de estabelecer um parâmetro jurídico para a solução dos conflitos sociais, tem migrado do poder legislativo para o poder judicial, estabelecendo, por sua vez, tensão contínua entre a esfera política e a esfera jurídica”.
Nesse sentido, à atuação judicial na instituição de parâmetros jurídicos sobreleva-se reação dos Poderes Legislativo e Executivo no sentido de mitigar o poder do Judiciário em situações sensíveis e, especialmente, questões polêmicas.
Para o significado sociológico, Marcelo Leonardo Tavares argumenta que, contrariada em seus interesses ou em suas concepções, uma parcela da sociedade oferece resistência ou contra-ataca uma postura política assumida por outro grupo.
Essa reação pode ser alocada em duas circunstâncias: reação institucional ou reação normativa.
A reação institucional ou “contra-ataque orgânico” pode se dar por uma interferência no preenchimento das vagas nas cortes, aplicação de sanções disciplinares ou efetivação de impeachments ou remoções dos membros do Tribunal.
Doutra banda, a reação (backlash) normativo parte da revisão legislativa da decisão, no âmbito do que a teoria dos diálogos institucionais explica ser uma reação ao fato de que o Judiciário pode declarar a nulidade de atos produzidos pelo Executivo e pelo Legislativo.
Cabe o registro de que, no Direito Público, o termo backlash é utilizado para “designar a contraposição aguda a condutas, omissões ou decisões entre autoridades públicas, utilizando mecanismos político-jurídicos disponíveis na Constituição ou mediante a criação de instrumento jurídico novo em legislação extraordinária”.
Isso decorre do fato de que, no atual arranjo institucional, o órgão que é responsável pela jurisdição constitucional passa a ocupar a posição de proteção de minorias ou de temas delicados.
A título de exemplo do fenômeno, George Marmelstein cita a discussão acerca da pena de morte nos Estados Unidos. No caso Furman v. Georgia, a Suprema Corte norte-americana entendeu por bem que a pena de morte seria incompatível com a oitava emenda da Constituição, que proíbe penas cruéis e incomuns. Dessa postura liberal, decorreu reação do grupo conservador que, obtendo, nas eleições posteriores, uma posição sólida no parlamento, utilizou-se do endurecimento das medidas penais como pedra de toque de sua atuação.
Diante das pressões políticas exercidas pelo grupo conservador, a partir de sua atuação, no Parlamento, a Suprema Corte reavaliou sua decisão anterior e pontuou que, em determinados casos, dentro de certas condições, a pena de morte poderia ser compatível com a oitava emenda da Constituição, de modo que os Estados norte-americanos ficaram livres para prever tal punição para crimes considerados graves.
No Brasil, um exemplo cristalino de reação legislativa à posição assumida pela Suprema Corte foi a PEC 33, segundo a qual, as decisões definitivas de mérito proferidas pelo Tribunal, nas ações diretas de inconstitucionalidade, que declarassem a inconstitucionalidade material de emendas à Constituição, não produziriam efeito vinculante imediato, estando condicionadas à análise, pelo Congresso Nacional, que, caso se manifestasse contrariamente, poderia submeter a proposição à consulta pública. Tal proposta foi arquivada.
Trasladando essas concepções para o caso em análise, qual seja a modificação nos parâmetros para o licenciamento ambiental, no Brasil, tem-se que uma ala política contrária às medidas de recrudescimento ambiental busca, por meio de alterações legislativas, a modificação dos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Suprema Corte brasileira, como será mais bem demonstrado no tópico seguinte.
2. Decisões do STF em matéria ambiental
Realizando-se um cotejo analítico das decisões do STF em matéria de licenciamento ambiental, chega-se à conclusão de que, muitas vezes intentada pelos Estados, a simplificação do licenciamento ambiental foi mitigada, para fins de atender às políticas de proteção ao meio ambiente e coadunar-se à Constituição Federal.
Dando um passo atrás, faz bem rememorar que a licença ambiental é o alicerce principal da Política Nacional do Meio Ambiente, constituindo, para Talden Farias, um ato administrativo sui generis, com natureza própria, que, mediante condições previamente estabelecidas, autoriza a instalação de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidoras.
À luz dessa concepção, Eduardo Fortunato Bim defende que o licenciamento ambiental envolve juízo técnico especializado, do que decorre a discricionariedade técnica da decisão, ainda quando são preenchidos requisitos legais.
Com base nesse entendimento e partindo do pressuposto de que a licença ambiental deve obedecer a parâmetros técnicos casuísticos, o STF pontuou, em uma série de oportunidades, que é inconstitucional a concessão automática de licença ambiental para funcionamento de empresas que exercem atividades de risco médio, como no caso da ADI 6808.
Na ocasião, a relatora, ministra Cármen Lúcia, concluiu que a simplificação, em relação às empresas consideradas de risco médio, ofenderia as normas de proteção ambiental (princípio da precaução), especialmente em se prevendo que a licença fosse concedida e fiscalizada somente depois. Salientou, ainda, que a base do licenciamento ambiental é constitucional, não sendo dado à lei esvaziá-la, prevendo controle posterior precário.
A decisão partiu da jurisprudência consolidada pelo Tribunal, no sentido de que a dispensa de licenciamento ambiental somente seria possível por decisão tecnicamente fundamentada do órgão ambiental.
No mesmo sentido, na ADI 6672, de relatoria do min. Alexandre de Moraes, ficou sedimentado que o Estado-Membro, a despeito de sua competência concorrente, não poderia esvaziar o procedimento de licenciamento previsto em legislação nacional, simplificando o processo para atividades de lavra garimpeira.
Na ADI 6650, também relatada pela ministra Cármen Lúcia, destacou-se a inconstitucionalidade formal na inserção da possibilidade de simplificação do licenciamento para atividades de lavra a céu aberto:
É formalmente inconstitucional a subversão da lógica sistêmica das normas gerais nacionais pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina ao instituir dispensa e licenciamento simplificado ambiental para atividades de lavra a céu aberto. 3. A dispensa e simplificação de licenciamento ambiental às atividades de mineração pelo legislador estadual esvaziou o procedimento de licenciamento ambiental estabelecido na legislação nacional, em ofensa ao art. 24 da Constituição da República. 4. O estabelecimento de procedimento de licenciamento ambiental estadual que torne menos eficiente a proteção do meio ambiente equilibrado quanto às atividades de mineração afronta o caput do art. 225 da Constituição da República por inobservar o princípio da prevenção. 5. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar inconstitucionais os §§ 1º, 2º e 3º do art. 29 da lei 14.675/2009 de Santa Catarina.
(ADI 6650, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 27/4/21, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 4/5/21 PUBLIC 5/5/21)
Em que pese as decisões do Tribunal no sentido de mitigar a simplificação do procedimento, nos casos de atividade de médio risco poluidor, houve também momento em que a Corte sinalizou no sentido de permitir a criação de novas modalidades de licenças ambientais, como no caso da ADI 5014. O relator, ministro Dias Toffoli, destacou a possibilidade de complementação da legislação federal sobre procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental.
Como se vê, a jurisprudência constitucional estabeleceu-se para impedir as ações legislativas que visassem, a nível estadual, diminuir a proteção ambiental por meio da previsão de procedimentos simplificados de licenciamento, nos casos de empreendimentos de médio risco. Da mesma forma, a licença automática também já fora analisada e rechaçada pela corte, notadamente em vista do princípio da precaução.
Ao revés disso, o Poder Legislativo busca, por intermédio da aprovação do PL 2159, inserir mudanças que flexibilizem o procedimento, em evidente reação ao poder judicialmente estabelecido.
3. Conclusão
Decerto que o setor produtivo anseia - e necessita - por mudanças que tornem mais célere e menos burocrático o procedimento de licenciamento ambiental. A despeito disso, a previsão de normas que afrontam a jurisprudência constitucional e todo o sistema de proteção ao meio ambiente equilibrado, na qualidade de direito fundamental, pode ocasionar mais discussões judiciais e o enfraquecimento da tão almejada segurança jurídica, não parecendo o caminho mais adequado, ao menos em um primeiro momento, para suprir o setor produtivo.
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Flávio Martins, Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., p.77;
George Marmelstein Lima. Efeito Blacklash da jurisdição constitucional: reações políticas à atuação judicial, 2015;
Constitucionalismo democrático e o efeito blacklash> o caso da execução provisória da pena. SOARES, Rafael Junior. In:Jus Scriptum’s International Journal of Law. Revista Internacional de Direito do Núcleo de Estudo Luso-Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ano 18. Vol. 8. Nº 3-4, Julho-Dezembro 2023.
O backlash institucional e normativo no Brasil e sua ocorrência no Direito Previdenciário e Assistencial. Marcelo Leonardo Tavares. RIL Brasília a., n. 233, p.11-33, jan/mar. 202O backlash institucional e normativo no Brasil e sua ocorrência no Direito Previdenciário e Assistencial. Marcelo Leonardo Tavares. RIL Brasília a., n. 233, p.11-33, jan/mar. 2022.
Efeito Backlash da Jurisdição Constitucional: reações políticas ao ativismo judicial1 Por George Marmelstein;
FARIAS, Talden. Licenciamento ambiental: teoria e prática. 10. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022;
CERQUEIRA, Homero de Giorge. LICENÇA AMBIENTAL POR ADERÊNCIA E COMPROMISSO: RISCOS, PRINCÍPIOS E (DE)CONSTRUÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA. ARACÊ , [S. l.], v. 7, n. 5, p. 27651–27669, 2025. DOI: 10.56238/arev7n5-384. Disponível em: https://periodicos.newsciencepubl.com/arace/article/view/5429. Acesso em: 3 jul. 2025.