Em um cenário institucional marcado pela hipertrofia do aparato sancionador e pela banalização da instauração de procedimentos1, torna-se essencial revisitar a noção de justa causa como núcleo de racionalidade e contenção no exercício da jurisdição. A dúvida que emerge é inevitável: quando uma apuração é juridicamente legítima e quando se converte em um expediente retórico de punição simbólica e exposição pública? Essa indistinção tem corroído silenciosamente os fundamentos do Estado de Direito e alimentado um modelo de persecução que opera mais por efeitos performativos do que por responsabilidade argumentativa. Parte-se, portanto, da premissa de que a justa causa não pode ser compreendida como simples requisito formal do processo, mas como cláusula substantiva de proteção institucional e de contenção da arbitrariedade punitiva.
O Estado brasileiro, historicamente marcado por práticas autoritárias2, tem experimentado um recrudescimento de procedimentos investigativos que operam à margem dos parâmetros constitucionais de legitimidade, configurando um padrão sistêmico de instrumentalização do processo como ferramenta de coerção social e política. Nesse contexto, a revisão crítica do conceito de justa causa emerge como imperativo de resistência democrática contra a perpetuação do caráter autoritário do processo penal brasileiro.
Tradicionalmente, a justa causa é entendida como a presença de elementos mínimos de materialidade e indícios razoáveis de autoria de um fato possivelmente típico que legitimam a instauração de um processo3. No processo penal, essa exigência encontra previsão no art. 395, III, do CPP, que determina a rejeição liminar da denúncia quando faltar justa causa para a ação. No campo do processo administrativo disciplinar, o art. 144 da lei 8.112/1990 estabelece a necessidade de motivação e de base probatória mínima para a instauração do PAD. No direito eleitoral, embora com menor densidade normativa, a jurisprudência do TSE reconhece a inadmissibilidade de investigações fundadas exclusivamente em conjecturas genéricas ou em denúncias desprovidas de substância probatória4.
Contudo, verifica-se uma redução preocupante do conceito de justa causa a fórmulas vagas e a ilações sem robustez empírica. Tal esvaziamento não apenas compromete a legalidade estrita, mas afeta a credibilidade da função jurisdicional e da própria função acusatória. Nesta linha, esta deterioração conceitual da justa causa reflete uma transformação mais ampla na cultura jurídica brasileira, na qual a urgência política e a pressão midiática têm substituído progressivamente a prudência jurídica e o rigor metodológico como critérios de decisão. O resultado é a proliferação de procedimentos que, embora formalmente regulares, carecem de substância probatória e finalidade cognitiva legítima.
A simples instauração de um processo já acarreta danos significativos à imagem, à integridade moral e à estabilidade profissional do acusado. Esses efeitos são muitas vezes irreversíveis, mesmo que o processo resulte, ao final, em absolvição ou arquivamento. Trata-se de uma forma de violência institucional simbólica, mas devastadora. Não por outro motivo, este desvio revela uma instrumentalização do processo que se afasta de sua finalidade cognitiva e se aproxima de uma lógica de exposição, desgaste e coerção social. A denúncia, o inquérito ou a sindicância deixam de ser mecanismos de apuração de responsabilidade e convertem-se em rituais de condenação pública, alheios à verificação rigorosa dos fatos imputados.
A perversão do processo como punição em si encontra terreno fértil na sociedade contemporânea, caracterizada pela aceleração dos fluxos informacionais e pela cultura do imediatismo5. A velocidade das redes sociais e a pressão por respostas institucionais imediatas criam um ambiente no qual a instauração de um procedimento é frequentemente percebida como evidência de culpabilidade. Nesse contexto, o processo deixa de ser um instrumento de garantia para converter-se em um mecanismo de satisfação de demandas sociais por punição - e essa disparidade de tratamento não apenas viola o princípio da isonomia, mas corrói a legitimidade do sistema de Justiça como um todo, alimentando a percepção social de que a lei opera de forma discriminatória e parcial6.
A ausência de padronização dos critérios de justa causa também facilita a manipulação política do sistema de Justiça. Em contextos de polarização social e disputa pelo poder, a flexibilidade interpretativa dos requisitos para instauração processual pode ser explorada para fins de perseguição política ou neutralização de adversários. O resultado é a transformação do sistema de justiça em arena de disputa política, na qual as decisões processuais passam a ser percebidas não como aplicação imparcial da lei, mas como manifestações de alinhamento ideológico ou partidário atendendo a interesses que fogem aos fins legítimos7.
A partir disto, impõe-se uma releitura da justa causa como cláusula de contenção institucional do poder sancionador. Mais do que um requisito de admissibilidade, a justa causa deve ser compreendida como expressão de um compromisso com a racionalidade democrática. Acusar é um ato de poder - e todo poder, em um Estado de Direito, requer justificação. Ao condicionar a legitimidade da acusação à existência de indícios concretos e verificáveis, a justa causa reafirma os limites do agir estatal e protege o processo contra sua conversão em instrumento de arbitrariedade8. A sua observância não se destina a garantir impunidade, mas a preservar a integridade da função jurisdicional, evitando que o processo se converta em arena de perseguição simbólica e política. Nesse sentido, a justa causa atua como cláusula de racionalidade institucional e de integridade democrática.
A erosão do princípio da justa causa compromete os fundamentos do devido processo legal e legitima o uso estratégico da jurisdição como ferramenta de desgaste, punição e controle. Processar alguém sem motivo fundado é, em si, um exercício ilegítimo do poder. A banalização da imputação formal transforma o processo em retórica acusatória e esvazia a função garantista do direito. É preciso reafirmar, com contundência, que a justa causa não é obstáculo à persecução legítima, mas condição de sua legitimidade.
Tribunais, Ministérios Públicos, corregedorias e órgãos disciplinares devem operar como guardiões desse princípio, rechaçando qualquer denúncia ou procedimento que não esteja amparado por substrato probatório concreto. E, nesta seara, defender a justa causa é defender o próprio processo como instrumento de Justiça - e não como fachada de legalidade para práticas de exceção disfarçadas de normalidade institucional.
A reconquista da justa causa como cláusula efetiva de contenção do poder punitivo representa mais do que uma questão técnica de Direito Processual: constitui um imperativo de preservação da democracia brasileira. Em um momento histórico no qual as instituições democráticas enfrentam ataques sistemáticos e a confiança na Justiça é crescentemente questionada, a consolidação de mecanismos efetivos de controle da arbitrariedade torna-se fundamental para a manutenção do Estado de Direito. A justa causa, compreendida em sua dimensão substancial e não meramente formal, oferece um instrumento importante para a tarefa contínua de preservação institucional.
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1 “A explosão do número de processos não é um fenômeno jurídico, mas social. Tem a sua origem numa depressão social que se exprime e se reforça através da expansão do direito. A promoção contemporânea do juiz não se deve tanto a uma escolha deliberada, mas antes a uma reação de defesa perante o quádruplo desmoronamento: político, simbólico, psíquico e normativo. Após a embriaguez da libertação, descobre-se que toda a nossa identidade corre risco de vacilar: a do indivíduo, a da vida social e a do político” (GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas: Justiça e Democracia. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 1996, p. 22-23).
2 Cf. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e Processo Penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro, volume 1. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 133.
3 “(...) em decorrência do cânone da legalidade, o ordenamento jurídico processual penal não suporta também que a acusação se faça sem que encontre lastro na prova colhida no inquérito policial ou nas peças de informação. Tanto faz a denúncia narrar fato em tese atípico, como descrever fato que não guarde ressonância para com a prova colhida. Em ambos os casos, haverá ilicitude e, mais do que isso, imoralidade. (...) É que, para que alguém seja acusado em juízo, faz-se imprescindível que a ocorrência do fato típico esteja evidenciada; que haja, no mínimo, probabilidade (e não mera possibilidade) de que o sujeito incriminado seja seu autor e um mínimo de culpabilidade” (MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal: doutrina e jurisprudência. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 222).
4 Exemplificativamente: BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso em habeas corpus nº 060023621. Relator: Min. Carlos Horbach. Brasília, 02 ago. 2022. Disponível em: https://sjur-servicos.tse.jus.br/sjur-servicos/rest/download/pdf/2957579. Acesso em: 16 jun. 2025.
5 “A conexão digital facilita a aquisição de informação de tal modo que a confiança, como práxis social, perde cada vez mais em significado. Ela dá lugar ao controle. Assim, a sociedade da transparência tem uma proximidade estrutural à sociedade de vigilância. Onde se pode adquirir muito rápido e facilmente informações, o sistema social muda da confiança para o controle e para a transparência. Ele segue a lógica da eficiência. Todo clique que eu faço é salvo. Todo passo que eu faço é rastreável. Deixamos rastros digitais em todo lugar. Nossa vida digital se forma de modo exato na rede. A possibilidade de um protocolamento total da vida substitui a confiança inteiramente pelo controle. No lugar do Big Brother, entra o Big Data. O protocolamento total e sem lacunas da vida é a consumação da sociedade da transparência” (HAN, Byung-Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p. 121-122).
6 Cf. ASSOCIAÇÃO dos Magistrados Brasileiros (AMB); FUNDAÇÃO Getúlio Vargas (FGV); INSTITUTO de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE). Estudo da Imagem do Judiciário Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: IPESPE, 2019. Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/uploads/2020/04/ESTUDO_DA_IMAGEM_.pdf. Acesso em: 16 jun. 2025.
7 “Não se pode esquecer que os meios de comunicação de massa conseguem fixar sentidos e produzir ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social. Assim, o ‘bom juiz’, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais empecilhos à eficiência do Estado, ou do mercado. Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático, outros por compromisso com posturas autoritárias, o ‘bom juiz’ é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a concepção material de democracia – democracia não só como participação popular na tomada de decisões, mas também como concretização dos direitos e das garantias fundamentais” (CASARA, Rubens R. R. Estado Pós-Democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. E-book, n.p.).
8 No ponto: “(...) o Direito Penal e o Direito Processual Penal sofrem um completo desvirtuamento, perdendo sua vocação garantista em prol da mera legitimação das pretensões autoritárias do Estado. A persecução penal se torna um jogo de cartas marcadas, com um absoluto desprezo do direito de defesa” (VALIM, Rafael. Estado de Exceção: a forma jurídica do neoliberalismo. São Paulo: Contracorrente, 2017. E-book, n.p.).