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O que o experimento de Shenzhen pode ensinar ao Brasil

Shenzhen lança IA que apoia juízes sem substituí-los. Brasil pode se inspirar para aliviar a sobrecarga do Judiciário com ética, dados estruturados e foco no acesso à justiça.

29/7/2025

Em 28 de junho de 2024, o Tribunal Popular Intermediário de Shenzhen, na Província de Guangdong, na China, colocou em operação a versão 1.0 de seu sistema de julgamento assistido por inteligência artificial. 

A inovação faz parte do plano nacional chinês de transformar Shenzhen em uma cidade-modelo do Estado de Direito Digital, em que a tecnologia da informação é aliada central na eficiência e modernização dos processos administrativos e judiciais.

O sistema, desenvolvido de forma autônoma pelo próprio tribunal, atua de ponta a ponta no trâmite judicial: ajuizamento, triagem, instrução, análise de provas, elaboração de minutas e geração de documentos. Ele abrange 85 subprocessos judiciais e extrai 212 dados-chave por processo para oferecer aos magistrados diagnósticos, padrões e sugestões, sempre mantendo o controle final da decisão sob responsabilidade humana.

Desde seu lançamento em fase experimental, em janeiro de 2024, o sistema já auxiliou na protocolização de mais de 291 mil ações e gerou 11.600 minutas de sentenças, otimizando significativamente a velocidade e a consistência na prestação jurisdicional.

O Judiciário brasileiro: sobrecarga, assimetrias e desafios

O Relatório Justiça em Números 2024, do CNJ, revela a dimensão do desafio nacional: mais de 77,9 milhões de processos em tramitação, sendo 27 milhões apenas na Justiça Estadual. 

Em média, um processo leva 4 anos e 7 meses para ser solucionado na primeira instância e a taxa de congestionamento na fase de execução ultrapassa os 75% em algumas regiões, comprometendo a efetividade da tutela jurisdicional.

Além disso, os números também revelam uma realidade de profunda assimetria no acesso à justiça. 

Enquanto grandes empresas têm equipes jurídicas e departamentos internos capazes de acionar ou defender-se com grande eficiência, cidadãos comuns enfrentam obstáculos técnicos, econômicos e logísticos.

É neste ambiente de complexidade que a Inteligência Artificial pode deixar de ser apenas uma ferramenta de automação processual para se tornar um instrumento estratégico de transformação judicial e social.

O modelo de Shenzhen: IA como coadjuvante da decisão judicial

Diferente da ideia distópica de que a IA substituiria juízes, o sistema adotado em Shenzhen respeita integralmente o princípio do julgamento humano. A IA atua como ferramenta auxiliar, oferecendo subsídios para que o juiz decida com maior rapidez, profundidade e coerência.

O sistema extrai de forma inteligente os dados-chave do processo e analisa profundamente os elementos do caso, incluindo as características das partes, da disputa e os interesses envolvidos, fornecendo um retrato preciso para a governança da fonte, tornando as medidas de prevenção e resolução de disputas mais direcionadas. 

Ele prevê as dificuldades da mediação para 208 disputas típicas, como contratos, infrações, casamentos e famílias, e impulsiona, de forma inteligente, a disseminação do conhecimento jurídico e os casos típicos para equipar os mediadores com "dicas inteligentes" para promover a resolução de disputas sem litígios. Além disso, o sistema também pode identificar dimensões como a vida das pessoas, economia, finanças e empresas.

Um dos recursos mais sofisticados é o mapeamento das características dos litígios. A IA realiza um “retrato” das partes, identifica interesses envolvidos, sugere caminhos de mediação e prevê dificuldades com base em dados históricos. Trata-se de uma justiça que deixa de ser reativa para ser proativa e inteligente, conectada com a lógica da prevenção de conflitos, como defendido por Daniel Pink e Frederic Laloux em suas obras sobre inovação organizacional.

Os entraves para a adoção da IA no Judiciário brasileiro

Embora o Brasil tenha avançado na digitalização de processos, especialmente com o PJe (Processo Judicial Eletrônico) e o E-Proc, ainda há entraves que explicam nossa distância do modelo de Shenzhen.

Apesar do Judiciário brasileiro operar com diversos sistemas digitais e os tribunais adotarem soluções tecnológicas, o Brasil ainda não dispõe de uma regulação específica para a aplicação de IA no Judiciário. 

O Marco Legal da Inteligência Artificial (PL 21/20) ainda tramita no Congresso Nacional e embora o CNJ tenha lançado algumas diretrizes éticas em 2023, elas ainda não têm força vinculante nem abrangência prática.

Caminhos para uma inteligência judicial brasileira

A experiência chinesa não é diretamente transplantável ao Brasil, que é uma democracia constitucional com forte tradição garantista. No entanto, inspira a construção de uma solução nacional, respeitosa aos princípios da legalidade, da ampla defesa e do contraditório.

A seguir, algumas sugestões para viabilizar um projeto nacional de IA aplicada ao Judiciário.

1. Construção de uma base nacional de dados jurídicos estruturados

É urgente integrar todos os sistemas judiciais brasileiros em uma base comum de dados anonimizados, capaz de alimentar modelos de IA com qualidade, consistência e diversidade regional.

2. Implementação de sistemas de triagem inteligente

A IA pode atuar na triagem inicial de ações, agrupando demandas semelhantes, sugerindo precedentes vinculantes e evitando retrabalho. Isso já é feito parcialmente no STF, que analisa a existência de repercussão geral.

O desafio é escalar para todas as instâncias.

3. Fortalecimento da governança ética

As decisões assistidas por IA devem ser rastreáveis, auditáveis e transparentes. É necessário garantir que os algoritmos não reproduzam vieses sociais, raciais ou econômicos. 

A autonomia do juiz deve ser absoluta. A IA serve como apoio, nunca como substituição.

4. Criação de observatórios judiciais de IA

Tribunais podem criar comissões multidisciplinares com magistrados, cientistas de dados, engenheiros, advogados e representantes da sociedade civil para supervisionar a implementação de IA no sistema judicial.

IA não é ameaça: é instrumento de ampliação do acesso à justiça

Não se trata de automatizar sentenças. Trata-se de libertar juízes da burocracia para que possam julgar com mais tempo, profundidade e humanidade. Hoje, um juiz brasileiro analisa cerca de 7.000 processos por ano, o que compromete seriamente a qualidade da análise individual.

Gastar horas em tarefas repetitivas e mecânicas, como organização de documentos ou pesquisa de jurisprudência, é um custo elevado para a sociedade. A IA pode realizar essas tarefas e liberar o capital intelectual do Judiciário.

A proposta não é copiar o modelo chinês, mas sim aprender com sua ousadia técnica e sua abordagem sistêmica. Shenzhen transformou seu tribunal em um laboratório de inovação pública. 

No Brasil, precisamos de algo semelhante. 

O futuro da justiça não é 100% digital, é híbrido, inteligente e centrado no ser humano. A Inteligência Artificial, aplicada com ética e governança, pode ser a ponte entre a justiça possível e a justiça desejável.

E, como bons brasileiros, sabemos que se tiver uma fila, um carimbo e uma espera de dois anos... é um sinal de que ainda estamos distantes da chamada Justiça do Futuro. 

Eduardo Koetz
Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.

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