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Justiça inteligente: O que o Brasil pode aprender com Xangai

IA no Judiciário: Lições de Xangai mostram como algoritmos podem trazer agilidade, coerência e justiça, sem abrir mão da ética e dos direitos fundamentais.

1/8/2025

O termo "inteligência artificial" tornou-se um dos mais populares no campo da tecnologia em 2017, ganhando destaque mundial após o programa AlphaGo derrotar mestres humanos no jogo de Go.

Hoje, a IA já está presente em smartphones, bancos, indústrias e, cada vez mais, no sistema judicial. A China, por meio de seus tribunais superiores, especialmente em Xangai, tem liderado a aplicação concreta de IA para aumentar a eficiência e a justiça dos julgamentos.

Enquanto no Brasil o debate sobre IA no Judiciário ainda gira em torno da automação processual e do julgamento de causas repetitivas, a China está aplicando IA na investigação criminal, análise probatória e produção de sentenças sugeridas, com apoio integral de dados públicos e de instituições como Ministério Público, polícia e Defensoria Pública.

Fundamentos teóricos para a aplicação da IA na Justiça

O formalismo jurídico vê o Direito como um sistema lógico fechado. A sentença decorre da aplicação de normas jurídicas (premissa maior) a fatos específicos (premissa menor). Essa estrutura silogística é ideal para ser replicada por máquinas.

A IA, portanto, encontra um ambiente fértil onde a previsibilidade e a repetição são valorizadas, especialmente em casos padronizados, como demandas de massa no Brasil (ex: plano de saúde, bancos, INSS).

Por outro lado, o realismo jurídico valoriza o julgamento como atividade humana, influenciada por valores sociais, contexto e experiência. A IA pode, nessa linha, aprender com milhares de decisões humanas anteriores, extraindo padrões complexos que não cabem em uma lógica simples.

Além disso, a "textura aberta", conceito de Herbert Hart, representa o equilíbrio entre as abordagens. O Direito possui zonas claras e outras cinzentas.

A IA pode atuar em ambas: automatizando o que é padronizável e auxiliando o juiz humano naquilo que exige interpretação, sensibilidade e valores. Essa integração é a base da proposta chinesa e pode ser o caminho ideal para o Brasil.

Xangai na vanguarda: O sistema judicial inteligente em ação

Em fevereiro de 2017, o governo chinês incumbiu oficialmente o Tribunal Popular de Xangai da missão de desenvolver um sistema que integrasse a IA à reforma judicial penal. Nascia o Projeto 206, uma das mais avançadas iniciativas de Justiça inteligente no mundo.

1. Estrutura do sistema

O sistema, denominado "Sistema Inteligente de Auxílio à Tramitação de Casos Criminais", baseia-se em três pilares:

  1. Big data jurídico: Milhões de decisões, pareceres, normas e documentos alimentam os algoritmos;
  2. Aprendizado de máquina (machine learning): Com uso de OCR, NLP e redes neurais profundas;
  3. Infraestrutura computacional robusta: Uso de GPUs e chips dedicados à IA (como o TPU do Google) permitiram o processamento em larga escala e em tempo real.

Além disso, o sistema atua desde a fase de investigação até o julgamento, oferecendo:

2. Cooperação interinstitucional

Um dos grandes diferenciais foi a integração entre Judiciário, Ministério Público e polícia. As barreiras informacionais foram removidas com compartilhamento seguro de dados e procedimentos unificados.

Isso permitiu consistência nas decisões e maior controle sobre desvios processuais.

Os números impressionantes do Projeto 206

Entre maio e outubro de 2017, o sistema foi testado em 25 órgãos (tribunais, procuradorias e departamentos policiais). Os resultados foram expressivos:

Os crimes abrangidos incluíram homicídio, estelionato, furto e crimes financeiros. Além disso, foi criado um repositório nacional de dados, que contou com:

O sistema também incorporou guias objetivos para a coleta, fixação e análise de provas, conforme cada tipo penal e fase processual. O uso desses padrões promoveu segurança jurídica e diminuição da subjetividade.

O software tornou-se uma plataforma unificada de tramitação penal, substituindo planilhas, ofícios e despachos por um fluxo digital único, auditável e transparente.

O que o Brasil pode aprender (e aplicar) com a Justiça Inteligente de Xangai

As oportunidades trazidas pelo uso da inteligência artificial no Judiciário são significativas. Sistemas como o do Projeto 206 contribuem para a redução de erros judiciais ao identificar falhas de coerência e a ausência de provas, prevenindo condenações injustas.

Além disso, promovem celeridade com qualidade, possibilitando decisões mais rápidas sem perda de precisão. A transparência também é favorecida, uma vez que algoritmos podem gerar relatórios detalhados de justificativas, fortalecendo o controle social e a accountability. Outro benefício importante é o apoio à defensoria e à advocacia, que passam a contar com acesso facilitado à jurisprudência orientada e provas organizadas com o auxílio da IA.

Por outro lado, existem desafios a serem enfrentados para a implementação efetiva e ética dessas tecnologias. A regulamentação específica ainda está em desenvolvimento, com o CNJ estudando diretrizes éticas e técnicas para o uso da IA no Judiciário.

As garantias processuais precisam ser preservadas, assegurando o contraditório e a ampla defesa, inclusive diante de eventuais erros dos sistemas automatizados. A transparência algorítmica é essencial, sendo necessário que os sistemas sejam auditáveis e explicáveis, já que o conceito de "caixa preta" não é compatível com o devido processo legal.

Por fim, a inclusão digital dos operadores do Direito é fundamental, exigindo formação técnica adequada para que juízes, advogados e demais profissionais possam lidar com essas novas ferramentas de forma eficaz e consciente.

Justiça inteligente com rigor ético e democrático

O Projeto 206 não é apenas uma demonstração de inovação tecnológica, mas de estratégia pública, governança digital e modernização institucional. Para o Brasil, a mensagem é clara: a IA no Judiciário não deve ser vista como ameaça, mas como instrumento de aprimoramento da função jurisdicional.

Mais do que celeridade, a IA pode trazer coerência, integridade e transparência às decisões judiciais. Desde que respeite os princípios constitucionais, a tecnologia pode, sim, ajudar a tornar o Judiciário brasileiro mais acessível, confiável e eficaz.

Eduardo Koetz
Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.

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