No campo da imputação penal, poucas ideias se mostraram tão sedutoras - e ao mesmo tempo tão equivocadas - quanto a da gradação do dolo. Ao sugerir que a vontade pode ser graduada conforme a intensidade com que o sujeito a exerce, a dogmática tradicional criou uma série de categorias que, ao invés de esclarecer, confundem. Dolo direto de segundo grau, dolo indireto, dolo eventual, dolo de ímpeto, dolo de propósito, dolo determinado, dolo indeterminado - todas essas figuras compartilham um erro de origem: pressupõem que a vontade pode ser parcial.
Mas a vontade não admite frações. Ou ela existe, ou não existe. Essa é a premissa inegociável sobre a qual repousa qualquer sistema de imputação minimamente coerente com a racionalidade jurídica e com os princípios de um Estado Democrático de Direito. A tentativa de estabelecer “meias vontades” ou “intenções enfraquecidas” - como sugere a doutrina ao tratar do dolo eventual - compromete não apenas a consistência do conceito de dolo, mas a própria legitimidade da imputação penal.
A crítica a essa gradação não é nova. Romagnosi, ainda no século XIX, já afirmava que o dolo não pode ser fracionado. Sua essência está na conjugação da liberdade e da consciência: o sujeito sabe o que faz e age livremente. É isso que basta para caracterizar a imputação dolosa. Romagnosi via com desconfiança a tendência de dividir o dolo em graus, espécies ou intensidades, pois isso abriria margem para um subjetivismo perigoso, em que o julgador decidiria não com base na conduta, mas a partir de percepções morais sobre o agente.
A dogmática penal, no entanto, ignorou esse alerta e mergulhou em classificações infindáveis. O dolo passou a ser analisado sob o prisma da intensidade volitiva, como se fosse possível medir o quanto o sujeito “queria” o resultado. A comparação com fenômenos fisiológicos ajuda a ilustrar o absurdo da ideia: ninguém tem “meia sede” ou “meia fome” - esses são estados absolutos. Da mesma forma, não existe meia vontade de matar, de incendiar, de subtrair - ou há vontade, ou não há. O que varia não é a vontade, mas a forma como ela se manifesta na ação, o que pode influenciar a pena, mas não o tipo de imputação.
Essa distinção é fundamental. A imputação penal deve incidir sobre o fato praticado com vontade livre de violar a norma. O dolo, nesse sentido, é uma categoria binária: presente ou ausente. Toda tentativa de graduá-lo resulta em ficções jurídicas que mais servem ao expansionismo do jus puniendi do que à racionalidade do Direito Penal. O exemplo paradigmático dessa construção é o dolo eventual, que imputa vontade a partir da previsibilidade do resultado. Mas prever não é querer. E aceitar o risco, sem desejá-lo, não transforma uma conduta imprudente em dolosa.
A doutrina tradicional tenta justificar essa confusão apelando a categorias intermediárias. Cria o dolo eventual como um espaço cinzento entre o dolo e a imprudência consciente. Mas esse espaço não existe. Ele é uma invenção dogmática, criada para preencher lacunas de imputação em casos socialmente sensíveis, como homicídios no trânsito ou crimes de multidão. Trata-se de uma resposta emocional - e não jurídica - a situações trágicas, onde a sociedade exige punição severa mesmo sem que haja prova de intenção.
Sob o ponto de vista filosófico, classificar o dolo é ainda mais problemático. A liberdade, condição essencial para o dolo, não admite gradação no plano normativo. Ou o agente é livre para agir - e pode ser responsabilizado - ou não é, e deve ser absolvido. A ideia de uma liberdade parcial é incompatível com a estrutura lógica da imputação penal. Como já dizia Romagnosi, “não se pode admitir nem meia imputação, nem um quanto de imputação.” A imputação é um ato integral: ou se imputa, ou não se imputa.
A classificação do dolo, portanto, é uma operação equivocada tanto no plano jurídico quanto no filosófico. Sua permanência na dogmática penal se deve menos à sua coerência interna e mais à sua utilidade prática para o sistema punitivo. Ao admitir graus de dolo, o Estado amplia sua margem de imputação e flexibiliza a prova da intenção. Isso fragiliza a segurança jurídica e compromete o princípio da legalidade, pois permite que o julgador substitua a prova do fato por presunções subjetivas.
A Teoria Significativa da Imputação, que venho desenvolvendo nos últimos anos, propõe um rompimento definitivo com esse modelo. Em lugar de gradações subjetivas da vontade, propõe-se uma análise objetiva da conduta, baseada nos “caracteres significativos” da ação. O dolo, nesse modelo, é a manifestação clara da vontade de realizar o tipo penal. Nada além disso. Quando essa vontade está ausente - ainda que o resultado tenha sido previsível - o fato deve ser tratado como imprudente, e a imputação feita com base na previsibilidade e nos deveres de cuidado violados.
A reconstrução da imputação penal exige que se abandone a ideia de que a vontade pode ser medida em graus. Isso implica rejeitar a classificação do dolo como espécie e reconhecer que apenas a imprudência consciente é passível de gradação. Afinal, o que se classifica na imprudência não é a ausência de vontade, mas o nível de descuido, a indiferença, a gravidade da omissão, a intensidade do risco assumido. É isso que permite distinguir entre imprudência consciente gravíssima, grave e leve - como proponho na Teoria Significativa.
Em suma, a classificação do dolo é um erro histórico que deve ser superado. Ela fragiliza o conceito de imputação, compromete a previsibilidade das decisões judiciais e abre espaço para arbitrariedades inaceitáveis. Ao reconhecer o dolo como manifestação indivisível da vontade livre, resgatamos a seriedade da imputação penal e protegemos os fundamentos do Estado de Direito. Essa não é apenas uma escolha teórica. É uma exigência constitucional.
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).