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Art. 67 do Código Florestal: O cálculo do módulo fiscal pela área aproveitável

Área total ou aproveitável? A interpretação correta do art. 67 do Código Florestal define quem tem direito à anistia da Reserva Legal. STJ pacifica: vale a área útil, não a área total do imóvel.

6/8/2025
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Código Florestal (lei 12.651/12) estabeleceu, em seu art. 67, regime especial de anistia para propriedades rurais que apresentavam déficit de Reserva Legal em 22 de julho de 2008. O dispositivo beneficia imóveis que "detinham, em 22 de julho de 2008, área de até 4 (quatro) módulos fiscais", dispensando-os integralmente da obrigação de recomposição, regeneração ou compensação do passivo ambiental.

A aplicação desta norma suscita questão jurídica fundamental: o limite de 4 módulos fiscais deve ser calculado com base na área total (matrícula) do imóvel ou em sua área aproveitável, isto é, aquela efetivamente passível de exploração econômica? A resposta a esta indagação define o universo de beneficiários da anistia e determina a extensão da regularização ambiental promovida pela lei.

O presente trabalho sustenta a tese de que uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico brasileiro impõe a adoção do critério da área aproveitável, em consonância com a definição técnica originária do módulo fiscal e com a jurisprudência pacificada do STJ.

A natureza técnica do módulo fiscal e sua definição no Estatuto da Terra

O ponto de partida para a correta exegese do art. 67 reside na compreensão de que o "módulo fiscal" não constitui conceito criado pela legislação ambiental, mas instituto importado do microssistema do Direito Agrário. Sua definição e metodologia de cálculo foram estabelecidas pela lei 4.504/1964 (Estatuto da Terra), com as alterações promovidas pela lei 6.746/1979.

O Estatuto da Terra é inequívoco ao estabelecer o método de cálculo. O art. 50, § 3º, determina que "o número de módulos fiscais de um imóvel rural será obtido dividindo-se sua área aproveitável total pelo módulo fiscal do Município"1. A própria lei define o objeto desta divisão, estabelecendo no § 4º que "constitui área aproveitável do imóvel rural a que for passível de exploração agrícola, pecuária ou florestal", excluindo expressamente "a área ocupada por floresta ou mata de efetiva preservação permanente"2.

Esta definição legal revela que, desde sua gênese normativa, o módulo fiscal foi concebido como unidade de medida da capacidade produtiva da terra, refletindo a viabilidade econômica de uma propriedade rural. O instituto nasceu atrelado ao conceito de "propriedade familiar", definida pelo próprio Estatuto como aquela "diretamente explorada pelo agricultor e sua família" e "que lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico"3.

A lei 8.629/1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, adota esta mesma lógica conceitual. Em seu art. 4º, II, 'a', define a pequena propriedade como o imóvel rural "de área até quatro módulos fiscais". Adicionalmente, o art. 10, IV, da mesma lei considera como não aproveitáveis "as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente"4.

A consolidação jurisprudencial no STJ

A tese da área aproveitável encontra respaldo definitivo na jurisprudência recente do STJ, que pacificou a questão ao analisar casos de impenhorabilidade da pequena propriedade rural. Embora tratando de matéria conexa, a Corte Superior estabeleceu precedente inequívoco sobre o critério correto para classificação do porte de imóveis rurais.

Em decisão paradigmática no AREsp 2.480.456/PR, o ministro Antonio Carlos Ferreira determinou que "para a classificação de uma propriedade rural como pequena, média ou grande, deve ser levada em conta apenas a área aproveitável do imóvel, e não sua área total"5. O fundamento da decisão baseia-se diretamente no art. 50, § 3º, do Estatuto da Terra, criando ponte jurisprudencial inequívoca entre a legislação agrária e a interpretação de normas que utilizam o conceito de módulo fiscal.

O julgado determinou o retorno dos autos ao tribunal de origem para que a classificação da propriedade fosse refeita com base na área aproveitável, assentando que:

"uma vez que o critério adotado para definição da pequena propriedade rural leva em conta o número de módulos fiscais [...] e tendo em vista que o cômputo de módulos fiscais considera a área aproveitável do imóvel - excluídas, portanto, aquelas insuscetíveis à exploração da atividade agropecuária -, merece provimento o recurso especial no ponto em que defende a necessidade de se descontar a parcela destinada à preservação ambiental para efeito de definição da propriedade rurícola como pequena, para fins de impenhorabilidade"6.

Este entendimento não constitui precedente isolado. No REsp 1.161.624/GO, a 2ª turma do STJ já havia decidido que, para classificar a propriedade como pequena, média ou grande para fins de desapropriação, "o número de módulos fiscais deverá ser obtido dividindo-se a área aproveitável do imóvel pelo módulo fiscal do município, levando em consideração, para tanto, somente a área aproveitável, e não a área do imóvel"7.

A ratio decidendi consolidada pelo STJ estabelece interpretação sistemática: é inadequado que o mesmo conceito técnico ("módulo fiscal") receba valorações distintas conforme sua finalidade de aplicação. Se o ordenamento jurídico, em sua origem e aplicação pelos tribunais superiores, consolidou um método de cálculo, este deve ser utilizado em todas as suas invocações, salvo disposição legal expressa em contrário.

A técnica legislativa do Código Florestal e a interpretação sistemática

A técnica legislativa empregada no Código Florestal demonstra que, quando foi intenção do legislador referir-se à área total do imóvel, ele o fez de forma expressa e inequívoca. O próprio Código utiliza a expressão "área total" em diversos dispositivos: no art. 12, § 5º, ao estabelecer que a localização da Reserva Legal deve considerar "a área total do imóvel"; no art. 15, ao dispor sobre a área mínima a ser mantida com cobertura de vegetação nativa em relação à "área total do imóvel"; no art. 61-B, § 2º, ao limitar a exigência de recomposição de APP a percentuais da "área total do imóvel"; e no art. 68, ao se referir aos percentuais de Reserva Legal incidentes sobre a "área total".

Se a intenção do art. 67 fosse considerar a área total do imóvel, o legislador teria empregado a mesma terminologia técnica utilizada consistentemente em outros dispositivos da mesma lei. A ausência desta especificação, combinada com a remissão ao conceito técnico de "módulo fiscal" - instituto do Direito Agrário que, por definição legal, considera apenas a área aproveitável -, evidencia que o enquadramento no benefício deve observar exclusivamente a área passível de exploração econômica.

A finalidade social do art. 67 e o princípio da isonomia

O art. 67 constitui norma de transição com objetivo social específico: amparar proprietários de imóveis rurais de menor porte que, em 22 de julho de 2008, possuíam situação produtiva consolidada. A intenção do legislador foi compatibilizar a produção agrícola com a proteção ambiental, sem impor ônus desproporcional àqueles que representam a base da agricultura familiar.

O tratamento excepcional conferido às pequenas propriedades fundamenta-se na função social diferenciada que exercem no contexto agrário brasileiro. A Constituição Federal, em seus arts. 5º, XXVI, e 184, caput, estabelece proteção especial à pequena propriedade rural produtiva, considerando-a insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária8.

Considerar a área total para o enquadramento levaria a distorção manifesta desta finalidade. Um produtor que explora área útil de 3,5 módulos fiscais, mas cuja propriedade possui extensas áreas de preservação permanente que elevam a área total para 4,5 módulos, seria excluído do benefício. Tal resultado configuraria tratamento isonômico inadequado, pois produtores com idêntica capacidade produtiva receberiam tratamento jurídico diferenciado em razão das características geográficas de suas terras.

A adoção do critério da área total geraria distorções manifestas e injustiças flagrantes. Considere-se o paradoxo de dois produtores vizinhos: o primeiro possui área total de 3,9 módulos fiscais, dos quais 3,8 são área consolidada produtiva, restando apenas 0,1 módulo de vegetação nativa; o segundo detém 4,1 módulos fiscais totais, mas com apenas 2 módulos de área produtiva e 2,1 módulos preservados. Pelo critério da área total, o primeiro produtor - que mantém proporção ínfima de vegetação - seria beneficiado pela anistia, enquanto o segundo - que preserva mais da metade de sua propriedade - seria penalizado e obrigado a recompor.

Tal interpretação não apenas contraria a lógica jurídica, mas cria verdadeira proteção deficiente ao meio ambiente, premiando aqueles que menos preservaram e punindo os que mantiveram maior cobertura vegetal. A injustiça torna-se ainda mais evidente em propriedades com extensas APPs: um produtor com 3,5 módulos de área útil poderia ser excluído do benefício simplesmente por possuir margens de rios ou encostas íngremes que elevam sua área total acima de 4 módulos, recebendo tratamento mais gravoso justamente por deter características naturais que impõem maior proteção ambiental.

Aplicação prática: casos demonstrativos

A aplicação do critério correto da área aproveitável produz resultados concretos que evidenciam a inadequação da interpretação baseada na área total. Os exemplos a seguir demonstram situações onde a diferença entre os dois critérios determina o enquadramento ou exclusão do benefício legal:

Caso 1 - Propriedade no Bioma Amazônico:

  • Município: Módulo fiscal de 100 hectares
  • Área total: 1.000 hectares
  • Área útil consolidada em 22/7/2008: 350 hectares

Pelo critério da área total: 10 módulos fiscais - EXCLUÍDA do art. 67 Pelo critério da área aproveitável: 3,5 módulos fiscais - ENQUADRADA no art. 67

Caso 2 - Propriedade com APP de Curso d'Água:

  • Município: Módulo fiscal de 80 hectares
  • Área total: 380 hectares
  • Área útil consolidada em 22/7/2008: 280 hectares
  • Área de APP (margem de rio): 100 hectares

Pelo critério da área total: 4,75 módulos fiscais - EXCLUÍDA do art. 67 Pelo critério da área aproveitável: 3,5 módulos fiscais - ENQUADRADA no art. 67

Consequências jurídicas do enquadramento no art. 67

Propriedades enquadradas no art. 67 têm sua Reserva Legal constituída com a área de vegetação nativa existente em 22 de julho de 2008, dispensando adesão ao PRA - Programa de Regularização Ambiental e afastando qualquer obrigação de compensação, regeneração ou recomposição para atingir os percentuais do art. 12.

O enquadramento produz efeitos automáticos sobre embargos e sanções administrativas relacionadas ao déficit de Reserva Legal. Uma vez caracterizada a situação de anistia integral, qualquer embargo relacionado ao déficit histórico de Reserva Legal torna-se juridicamente impossível, por ausência de objeto material que justifique a medida restritiva.

A finalidade específica do embargo ambiental, conforme art. 51 do Código Florestal, consiste em "impedir a continuidade do dano ambiental, propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada". Em propriedades amparadas pelo art. 67, estas finalidades revelam-se inaplicáveis: não há "continuidade de dano" a ser impedida em ocupações consolidadas há mais de dezessete anos; a "regeneração" foi substituída pelo legislador por manutenção do status quo; e a "recuperação" foi expressamente dispensada pela anistia legal.

Conclusão

A interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, alicerçada na definição técnica originária do módulo fiscal e consolidada pela jurisprudência vinculante do STJ, impõe a adoção do critério da área aproveitável para o enquadramento no art. 67 do Código Florestal.

Esta interpretação não apenas respeita a coerência conceitual do sistema jurídico, mas atende à finalidade social da norma, garantindo que o benefício da regularização ambiental alcance os produtores rurais que, por sua dimensão produtiva efetiva, foram os destinatários pretendidos pelo legislador.

A aplicação do critério da área aproveitável assegura tratamento isonômico entre produtores com idêntica capacidade produtiva, independentemente das características geográficas de suas propriedades, e realiza o princípio constitucional da proteção à agricultura familiar, fundamento da diferenciação normativa estabelecida pelo Código Florestal.

A tese aqui defendida encontra respaldo não apenas na técnica legislativa e na jurisprudência consolidada, mas também na lógica econômica e social que fundamenta a proteção constitucional à pequena propriedade rural, constituindo interpretação que melhor concretiza os valores e princípios do ordenamento jurídico brasileiro.

_________

Referências

1 BRASIL. Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Art. 50, § 3º.

2 Idem, § 4º.

3 BRASIL. Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964. Art. 4º, II.

4 BRASIL. Lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. Art. 10, IV.

5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 2.480.456/PR. Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira. Decisão monocrática de 04 de outubro de 2024.

6 Idem.

7 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.161.624/GO. Relator: Ministro Humberto Martins. Segunda Turma. Julgado em 15 de junho de 2010.

8 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Arts. 5º, XXVI, e 184, caput.

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nºs 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.913.234/SP. Relatora: ministra Nancy Andrighi. Segunda Seção. Julgado em 08 de fevereiro de 2023.

Autor

Diovane Franco Rodrigues Advogado especialista em direito sancionador ambiental, sócio Farenzena Franco Advogados. Pós-graduado em Direito Administrativo. Mestrando - UNIVALI e ex-servidor da Justiça Federal.

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