“A arte existe porque a vida não basta”1
Entre livros e códigos: A eleição de José Roberto de Castro Neves para a ABL
O Brasil costuma abrigar mundos paralelos que coexistem e que orbitam segundo suas próprias leis: de um lado, da toga dos juristas; e de outro, da pena dos escritores. Quando esses astros se alinham, o fato se faz manchete. E foi isto que ocorreu quando o advogado, professor e escritor José Roberto de Castro Neves se tornou o novo imortal da ABL - Academia Brasileira de Letras - instituição essa que tem por finalidade o cultivo da língua portuguesa e da literatura brasileira. Nesse contexto, o objetivo deste ensaio é ir um pouco além. Em especial, no sentido narrar o fato a partir de um diálogo com o discurso de posse de Castro Neves e, ao mesmo tempo, mostrar por que a chegada de um novo “imortal” importa para quem vive, ensina e estuda Direito.
Mas antes de tudo e mais nada, vale registrar os fatos: José Roberto de Castro Neves foi eleito, em 29/5/25, para integrar a Academia Brasileira de Letras. Na sessão, recebeu 27 votos de um total de 34, superando o escritor e editor Rodrigo Lacerda, que obteve sete votos; os demais concorrentes não foram votados. A eleição preencheu a Cadeira 26, vaga desde a morte, em março de 2025, do saudoso Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça.
Conforme noticiado, o jurista conta com 18 livros publicados e cerca de 200 mil exemplares vendidos. Além disso, sua produção intelectual transita entre o Direito, a literatura e a história. Entre suas obras mais conhecidas estão Como os advogados salvaram o mundo (2018), Os grandes julgamentos da História (2018) e Medida por medida: o Direito em Shakespeare (2019). Quanto ao estudo do Bardo, vale destacar a obra original Shakespeare e os Beatles (2021), que traça um paralelo entre o trabalho do dramaturgo de Stratford-upon-Avon e a banda de Liverpool. Não fosse isto suficiente, estreou há pouco na ficção com o romance Ozymandias (2025). Inspirado na tragédia e na mitologia grega, o livro aborda o papel do destino na vida humana e traz uma narrativa em que os laços entre os personagens conduzem os rumos dos encontros e desencontros da vida e da morte.
Num país de súmulas vazias de conteúdo e crises institucionais que surgem a cada nova alvorada, a eleição de um jurista-escritor à ABL parece simbolizar alguma dignidade ao Direito que passa a ter outro imortal entre os seus. Nesse sentido, vejamos porquê.
Direito e cultura em convergência
Ao recuar no tempo, percebe-se que a escolha de Castro Neves não foge à tradição: ele se insere num longo cortejo de juristas - Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Pontes de Miranda, Miguel Reale, Raymundo Faoro etc. - que, desde o fim do século XIX, cruzam o limiar da Academia Brasileira de Letras levando consigo a autoridade dos códigos e o fulgor das palavras. A Casa, habituada a ouvir tanto a tessitura do argumento quanto a cadência do verso, transformou essa confluência em marca identitária: se o Brasil gosta de se proclamar “pátria do futuro”, a ABL age como o cartório onde esse futuro firma certidão de (re)nascimento.
Não por acaso seus membros recebem o título de imortais. Quando Machado de Assis fundou a Academia Brasileira de Letras, o lema Ad immortalitatem - rumo à imortalidade - foi adotado justamente para lembrar que se trata de um cargo que nem a morte é capaz de colocar um ponto final. Cada cadeira homenageia uma história de vida, como um elo visível entre o ontem e o amanhã. Nesse sentido, o fardão sem bolso de seus membros não é uma vestimenta sem significado. Na realidade, simboliza que ali não se reúnem pessoas que acumulam glórias, mas, sim, de pessoas que servem ao mundo das letras. O prestígio, portanto, funciona menos como medalha e mais como responsabilidade: ampliar repertórios, transmitir saberes e manter viva a chama cultural que resiste ao efêmero.
É nessa forja de obrigação cívica que Castro Neves assume o posto. Acostumado a dizer aos alunos que todo contrato conta uma história de expectativas, transmite com isto a ideia de que a imaginação literária nos ajuda a evitar que o Direito se cristalize em regulamento sem alma. Ao trazer a sensibilidade do romance para o universo das normas, sublinha que cláusulas jamais são neutras, pois por trás de cada artigo pulsa um personagem, um conflito e uma promessa de justiça - e é nisso que reside o verdadeiro valor da linguagem jurídica.
Nas palavras de Carlos Drummond de Andrade: As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis2. Com isto, lembrando que leis, por si só, não são suficientes para criar justiça ou humanidade. Os lírios - símbolo da pureza e do bem - não nascem apenas do cumprimento de normas. É preciso, segundo o novo membro da ABL, além da técnica, também da cultura e da ética para fazer florescer leis e advogados de valor. E a literatura está logo ali, para antecipar dilemas e imaginar soluções para isto. De agora em diante, vejamos como.
O discurso da posse: Obrigação, tradição, responsabilidade
No dia 11/7/25, data em que a liturgia recorda São Bento, José Roberto de Castro Neves declarou diante dos acadêmicos que aquela seria a alocução mais decisiva de sua vida. Organizou-a em três partes - agradecimentos, homenagem aos predecessores da Cadeira 26 e uma “homilia terrena” -, cada qual vinculada a um conceito de Direito Civil: obrigação, tradição e responsabilidade.
Na primeira parte, dedicada à obrigação, ele afirmou que a entrada na Academia o deixava em débito com todos aqueles que contribuíram para sua formação intelectual e afetiva. Recordou a origem latina da palavra “obrigação”, que remete ao fato de alguém estar ligado ou atado, e disse sentir-se exatamente assim: preso por gratidão a mestres, colegas e, sobretudo, aos livros. Acrescentou que os pais, Doris e Roberto, os irmãos, os três filhos e a esposa Bel integram esse vínculo, pois lhe ensinaram valores, ofereceram afeto e possibilitaram que o estudo se tornasse rotina. Ao mencionar a docência de décadas na PUC e na FGV, enfatizou que o convívio com estudantes lhe renova o entusiasmo, reforçando a dívida permanente que contraiu com a educação. No ponto culminante desse tópico, listou personagens literários e episódios pessoais para ilustrar como a leitura funcionou como verdadeira alquimia interior, conduzindo-o por trajetórias profissionais e por escolhas de vida.
Em seguida, ao tratar da tradição, explicou que, no vocabulário jurídico, tradição é o ato de entregar um bem para que a propriedade mude de mãos; na vida cultural, equivale a transmitir memória coletiva, hábitos e valores. Fez então um percurso histórico da Academia desde 1897, lembrando que os fundadores elegeram patronos já falecidos e adotaram o lema latino que propõe uma caminhada rumo à imortalidade, no sentido de que a imortalidade não se trata de algo simplesmente concedido, mas, sim, de uma conquista por se concretizar. Ainda, detalhou a linhagem da Cadeira 26: começou com o poeta romântico Laurindo Rabelo, passou pelo boêmio Sebastião Guimarães Passos, alcançou o cronista João do Rio, percorreu nomes como Rui Ribeiro Couto, Gilberto Amado e Mauro Mota até chegar ao pernambucano Marcos Vinicios Vilaça. Destacou que, entre esses ocupantes, alguns foram diplomatas, juristas ou jornalistas, demonstrando a vocação plural da instituição. Argumentou que, ao reconhecer tal diversidade, a ABL harmoniza a estabilidade da ordem com o impulso do progresso.
Por fim, ao abordar a responsabilidade, deslocou o olhar para os desafios contemporâneos. Observou que vivemos numa era de excesso informacional, em que dados chegam em avalanche, mas cultura crítica rareia. Mencionou a pesquisa “Retratos de Leitores no Brasil”, que aponta maioria de não-leitores e perda de sete milhões de leitores desde 2019, considerando esse quadro sintoma de um mundo fora do prumo. Invocou o lema monástico ora et labora para salientar a importância da disciplina intelectual diária e, evocando Hamlet, comparou-se ao príncipe dinamarquês que se julgava encarregado de recolocar o mundo nos eixos. Enfatizou que, sem leitura, a sociedade perde densidade moral, capacidade de fiscalização democrática e sensibilidade perante injustiças; com ela, enriquece o debate público e afirma a dignidade humana. Concluiu que educação e cultura configuram dever cívico inadiável, pois o conhecimento é patrimônio que não se dissipa, e afirmou que pretende usar a visibilidade da Academia para fomentar o hábito de ler e fortalecer, assim, o tecido cultural do país.
A imortalidade da cultura
Quando Direito e literatura se cruzam, o parágrafo ganha pulsação de verso e a racionalidade jurídica (re)aprende a falar da vida humana sem ceder ao normativismo vazio. Com efeito, nos parece que a eleição de Castro Neves confirma que o Direito ainda sabe gravar pegadas fora dos diários oficiais.
Isso importa por ao menos três razões centrais. A um, porque o leitor leigo descobre que artigos de lei e romances são feitos da mesma substância: linguagem, cultura e memória. A dois, porque estudantes de Direito - muitas vezes adestrados a decorar súmulas - encontram no percurso do novo imortal a prova de que a argumentação jurídica se nutre de metáforas, ritmos, personagens e tragédias. A três, porque a ABL, ao reunir poetas, críticos, jornalistas e juristas, renova a tese de que pluralidade intelectual é vacina contra o senso comum. Num tempo de manchetes rasas e sedentarismo cognitivo, a entrada de um jurista que cita Hamlet, São Bento e Mark Twain no mesmo fôlego desafia a lógica contemporânea que mede sucesso apenas por números.
Contudo, o desafio é também numérico: pela primeira vez, o Brasil soma mais não-leitores (53%) do que leitores (47%), segundo pesquisa do Instituto Pró-Livro. A perda de quase sete milhões de leitores em quatro anos mostra que a emergência não é retórica, mas estatística. Castro Neves, consciente do alcance da nova tribuna, compromete-se a usar a vitrine da ABL para estimular a leitura e a educação, pois “conhecimento é patrimônio que não se perde”.
Se, como lembrou Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta, o ingresso de Castro Neves na Academia Brasileira de Letras recorda que a letra jurídica não precisa ser uma vítima de si mesma e do seu jeito de pensar. Afinal, o Direito traz consigo narrativas, com vidas e comédias, mortes e tragédias. E cabe ao jurista não ignorar isto, sob pena de ignorar aquilo que talvez seja o verdadeiro sentido do Direito: a vida como ela é.
_____________
1 Trata-se de uma das frases mais famosas do poeta Ferreira Gullar e que se tornou título de documentário sobre ele.
2 Trecho da poesia “Nosso Tempo”.