1. Introdução
A consagração constitucional da privacidade e do sigilo de dados, especialmente nos incisos X e XII do art. 5.º da Constituição da República, representa um marco normativo que, no contexto contemporâneo, revela-se insuficiente sem o acréscimo de uma disciplina jurídica específica para o tratamento de informações pessoais. O advento da lei 13.709/18 (LGPD) materializa essa resposta normativa, atribuindo densidade operativa ao direito fundamental à proteção de dados.
Não obstante, a mera positivação legislativa não elimina a necessidade de reconfiguração hermenêutica para integrar o novo regime ao estilo jurídico brasileiro, de matriz romano-germânica, centrado na lei como fonte primária.
A responsabilidade civil por vazamento de dados emerge, assim, como campo privilegiado para observar as tensões entre tradição e inovação normativa, bem como os desafios para estabilizar interpretações à luz da integridade do sistema jurídico.
2. Historicidade e problematização conceitual
No cenário pré-LGPD, a tutela contra vazamentos de dados ancorava-se em dispositivos constitucionais, na lei 12.965/14 (marco civil da internet) e nas cláusulas gerais de responsabilidade civil dos arts. 186 e 927 do CC. Essa dispersão normativa favorecia soluções casuísticas e, por vezes, contraditórias.
A LGPD, ao positivar deveres específicos de segurança e transparência e ao instituir um regime sancionatório próprio, desloca o eixo interpretativo para a lógica da prevenção e da reparação integral. A responsabilidade objetiva do controlador, prevista no art. 42, reforça a ideia de que a ocorrência do vazamento, associada ao nexo causal, basta para legitimar a indenização, dispensando a comprovação do prejuízo moral - entendimento consolidado no Tema 1.199 do STJ.
Todavia, esse modelo, embora tecnicamente robusto, carece de sedimentação hermenêutica que o compatibilize com a tradição brasileira de tratamento do dano moral. O risco reside em transpor, de modo acrítico, conceitos da doutrina estrangeira sem a devida adaptação ao contexto normativo-cultural, gerando interpretações assimétricas e instabilidade jurisprudencial.
3. Análise normativa e jurisprudencial recente
A Constituição da República, ao garantir a inviolabilidade da intimidade e do sigilo de dados, estabelece o fundamento axiológico da proteção informacional. A LGPD concretiza esse mandamento, definindo dados pessoais e sensíveis, disciplinando seu tratamento e impondo obrigações ao controlador, inclusive a adoção de medidas de segurança aptas a prevenir incidentes (art. 46).
O STJ, no julgamento do Tema 1.199/DF (2025), fixou tese no sentido de que a comprovação do vazamento e do nexo causal autoriza a indenização por danos morais, individuais ou coletivos, independentemente da demonstração do efetivo prejuízo, por se tratar de dano in re ipsa. O STF, na ADIn 6.387/DF (2023), reconheceu a constitucionalidade integral da LGPD, reafirmando a vedação ao retrocesso na proteção à privacidade.
Essa convergência jurisprudencial fortalece a integridade do sistema, conferindo previsibilidade às decisões e reforçando o caráter fundamental do direito à proteção de dados. Ao mesmo tempo, impõe ao intérprete a tarefa de harmonizar a aplicação da responsabilidade objetiva com o devido processo legal e com os parâmetros de proporcionalidade na fixação do quantum indenizatório.
Considerações finais
A responsabilidade civil por vazamento de dados, tal como delineada na legislação e na jurisprudência recentes, representa um avanço substantivo na proteção de direitos fundamentais na sociedade da informação. Entretanto, a consolidação desse paradigma exige mais que a mera aplicação literal da LGPD: requer a internalização hermenêutica de seus princípios à luz da tradição jurídica nacional, evitando transposições automáticas de categorias alienígenas e garantindo decisões fundamentadas que expressem coerência, estabilidade e integridade.
A experiência recente demonstra que a efetividade da tutela de dados não depende apenas do aparato sancionatório, mas do compromisso institucional com a motivação qualificada das decisões, que deve espelhar não apenas a letra da lei, mas a melhor interpretação possível para o caso concreto, em conformidade com os princípios constitucionais e com a integridade do sistema jurídico.
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BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 59, 15 ago. 2018.
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.