Esses dias eu vi uma postagem em uma rede social sobre um pai impedido de embargar em voo por dívida de pensão alimentícia. Até aquele momento, havia trezentos e oito comentários na postagem, mas um deles chamou minha atenção.
O comentário foi feito por um advogado e dizia o seguinte: “Se fosse mulher, não teria acontecido isso. O Estado brasileiro está exterminando homens”.
Neste mesmo dia, tomei conhecimento do PDL 89/23 de autoria de uma deputada federal. O PDL tem o objetivo de sustar os efeitos da resolução 492, de 17 de março de 2023, do CNJ, que estabelece as diretrizes para adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero para todo o Poder Judiciário.
Analisando com o mínimo cuidado a justificação do PDL nota-se certa confusão sobre o processo legislativo e a própria natureza do CNJ, além de desconhecimento do que seria o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. No entanto, os aspectos formais do PDL não são o foco para fins da discussão que ora se propõe.
A justificativa que parece, de fato, embasar a justificativa do PDL é a seguinte:
Importa lembrar que a “teoria de gênero”, que a resolução 492 do CNJ busca institucionalizar no âmbito do Poder Judiciário, possui sua formulação mais célebre e geral no trabalho da filósofa pós-estruturalista Judith Butler, afastando-se da constatação biológica da dualidade sexual da espécie humana e declarando não haver realidade objetiva que fundamente a correspondência entre a identidade física do sexo feminino e o conceito de “mulher”.
Portanto, a “teoria de gênero” consiste em um produto ideológico, ou seja, um discurso que substitui a realidade por uma motivação política, de modo que não é razoável que dela se valham aqueles que buscam promover, genuinamente, a Justiça e o Direito.
No mais, na Constituição Federal de 1988, norma fundamental do direito pátrio, sequer consta a palavra “gênero”, tratando-se a equidade entre os sexos, masculino e feminino, e o combate à discriminação, portanto, como objetivo fundamental da República (art. 3º, IV, CF). Qualquer interpretação diferente não passa de mero invencionismo jurídico!1
Ser uma mulher advogada já me permitiu vivenciar pessoalmente a força desse ódio institucionalizado contra as mulheres. Mas essa experiência não é pessoal, é coletiva: são inúmeras as histórias que ouvimos sobre a violência contra as mulheres em todas as esferas.
Eu poderia convidar uma pequena quantidade de advogadas e seríamos capazes de falar durante horas sobre a violência que nossas clientes sofreram durante a instrução de diversas demandas judiciais.
Em março deste ano, o CNJ lançou novo painel da violência contra a mulher no país. Quase um milhão de novos casos que envolvem violência doméstica chegaram à Justiça em 2024. Em 2020, foram registrados 3.542 casos de feminicídio no país, enquanto em 2024, foram 8.464 casos2.
Os números são claramente alarmantes, mas representam apenas os casos que chegaram até o Poder Judiciário. Não é possível esquecer que a violência contra a mulher é subnotificada por diversas razões.
Neste momento, eu levanto o questionamento que muitos querem calar: como concretizar a Justiça em uma sociedade que odeia as mulheres?
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero propõe a observância de diretrizes para que os julgadores se atentem a estereótipos de gênero ao proferirem suas decisões, buscando diminuir as desigualdades estruturais entre homens e mulheres.
Isso não significa, por óbvio, que mulheres sempre sairão vencedoras em demandas judiciais, mas que sim que serão julgadas sob uma perspectiva que não as classifique de forma estereotipada.
Verifica-se, assim, que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero não é um garantidor de procedência em quaisquer demandas, sobre quaisquer assuntos, que envolvam mulheres. O Protocolo é um mecanismo para que estereótipos de gênero e preconceitos pessoais não influenciem uma decisão judicial.
No meio jurídico, advogados se sentem injustiçados e ressentidos quando a proteção contra a violência contra a mulher é aplicada. No legislativo, deputadas pretendem derrubar instrumentos que garantem a efetivação da Justiça, pautadas em discursos meramente politizados.
A verdade é que vivemos um país em que a violência contra a mulher apenas escalona. Encontramos resistência onde deveria existir acolhimento institucional.
Nada parece convencer aqueles que são contrários ao Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero que a efetivação da igualdade é benéfica para toda a sociedade, não apenas para os grupos vulneralizados.
Já que argumentos não os convencem, que possamos ter mecanismos jurídicos e institucionais fortes o bastante para demonstrar que a busca pela efetivação da igualdade e da justiça é um caminho sem volta e não há pretensão alguma em recuar.
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1 Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2252689&filename=PDL%2089/2023. Consulta em 18/7/2025.
2 Novo painel da violência contra a mulher é lançado durante sessão ordinária do CNJ. Publicação 11/03/2025. CNJ. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/novo-painel-da-violencia-contra-a-mulher-e-lancado-durante-sessao-ordinaria-do-cnj/. Consulta em 18/7/2025.