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Dúvidas e incertezas na vigência da reforma tributária a partir de 2026

A EC 132/23 cria CBS e IBS dual, mas gera incertezas, complexidade operacional e riscos de litígios tributários.

19/8/2025

Como se sabe, a EC 132/23 que empreendeu a reforma tributária parcial, mediante a unificação de quatro tributos de competências impositivas diferentes em um único tributo - a CBS e o IBS dual -, entrará em vigor a partir de 2026.

À medida que se aproxima a vigência do novo tributo, dúvidas vão surgindo gerando incertezas que afetam o princípio da segurança jurídica como resultado da importação de um modelo tributário da Europa composta de estados unitários, todos eles de dimuta extensão territorial se comparados com o Brasil, o quinto maior país do mundo em termos de extensão territorial, o que gera naturais desníveis socioeconômicos regionais. Dizia o saudoso mestre Geraldo Ataliba: “O maior defeito do Brasil está no amor incondicional pela cultura européia, de onde se importam às toneladas doutrinas, sempre muito mal digeridas”.

Faremos em breves pinceladas uma abordagem a respeito, sem entrar na questão da ofensa ao pacto federativo, protegido em nível de cláusula pétrea, porque no atual cenário político, institucional e judicial a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei, ou de uma Emenda Constitucional perdeu relevância jurídica.

Vivemos a era da Constituição não escrita que se adapta a qualquer momento, conforme o desejo, não do povo, como deveria ser (parágrafo único do art. 1º da CF), mas, da vontade dos que se apossaram ilegitimamente dos poderes do Estado.

Examinaremos, pois, essas incertezas com total abstração do aspecto da constitucionalidade ou não da reforma implantada.

Quanto à CBS as dúvidas e incertezas são menores, porque ela entrará em vigor de forma definitiva em 2027, ao passo que, o IBS dual entrará em vigor em 2026 convivendo com o atual sistema tributário até o final de 2032, sendo definitivamente substituído em 2033.

Mas, tanto a CBS, como o IBS dual deverão se adaptar às novas regras já divulgadas para viabilizar sua operacionalização, tais como a Tabela de Códigos de Classificação Tributária e a Tabela de Códigos de Situação Tributária.

Ademais, deverá proceder à abertura de campos específicos para anotar algumas informações relevantes como bases de cálculo, alíquotas, valores a recolher etc.

Outrossim, foram criados eventos fiscais próprios para créditos presumidos, sucessão empresarial, perecimento de mercadoria e operações especiais com a ZFM. Todas essas adaptações serão obrigatórias a partir de 1º de janeiro de 2026.

Certamente haverá, no futuro, a necessidade de inúmeras outras adaptações para cumprir as 1.000 normas confusas do regulamento do IBS dual aprovado pela LC 214/25.

Para se ter uma ideia da sua complexidade, a reforma tributária aprovada pela EC 132/23  prevê um prazo de 50 anos (meio século) para promover a reposição dos prejuízos causados aos estados pela implantação do novo imposto. Nada dispõe quanto aos prejuízos acarretados aos municípios. Em uma realidade dinâmica, esses 50 anos serão facilmente transformados em uma guerra de cem anos.

Mas, o pior problema está na dificuldade de funcionamento do Comitê Gestor representado por 27 representantes dos estados e do DF, de um lado, e de 27 representantes dos 5.569 municípios, de outro lado, fato que, por si só, revela não se tratar de um órgão paritário como vem sendo tratado.

Não houve consenso na nomeação desses representantes pela CNM - Confederação Nacional de Municípios e pela FNM - Frente Nacional de Municípios.

A CNM nomeou unilateralmente os 27 representantes dos municípios, mas a Justiça vetou essa  lista elaborada pela CNM exigindo a participação conjunta da FNM.

Ante a dificuldade na escolha dos 27 representantes dos 5.569 municípios, que os autores da reforma tributária não foram capazes de prever de antemão, apesar de público e notório, foi instalado o Comitê Gestor sem a representação dos municípios.

Qualquer deliberação tomada pelo CG, bem como sua atividade arrecadatória estará sob a eiva de inconstitucionalidade, por desobedecer ao comando da EC 132/23 que exige a representação dos municípios.

Este é um país singular, onde o atropelo de normas constitucionais não mais tem qualquer relevância jurídica. Ao menor sinal de dificuldade passam por cima do comando constitucional.

Outra enorme dificuldade de executar as 1.000 normas dúbias e confusas do regulamento do IBS dual, que sequer conseguiu definir com objetividade o fato gerador do novo imposto, está no potencial crescimento espantoso de litígios tributários, conforme estudos realizados pelo STJ

Na visão do STJ os litígios tributários hoje existentes triplicarão com a entrada em vigor do IBS dual e da CBS.

Pelo art. 105, I, j da CF cabe ao STJ dirimir conflitos entre os entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor relacionados ao IBS e a CBS.

Em 10-4-2025, o CNJ instituiu um grupo de trabalho para elaborar um anteprojeto de PEC voltado à reforma processual tributária, visando compatibilizar a atual repartição de competências judiciais com os novos tributos. Como se sabe, a CBS e o IBS regem-se por uma mesma lei complementar e têm idêntico fato gerador, base de cálculo e contribuintes.

Posto que o IBS foi aprovado por lei complementar federal pressupõe-se que a competência para dirimir eventuais conflitos entre os dois tributos seja da justiça federal. Mas, sempre haverá defensores da tese de que o IBS dual é um imposto dos estados e municípios, porque o produto de sua arrecadação lhes cabe.

No âmbito do TJ/SP foi instituído um Grupo de Trabalho pela portaria 10.610/25, editada pelo presidente do Tribunal, para  apresentar estudos e sugestões acerca da divisão de competência entre a justiça federal e a justiça estadual decorrente da reforma tributária implantada pela EC 132/23.

Esse grupo de trabalho, analisando a questão sob o ponto de vista tributário, pelo prisma orçamentário e considerando o pacto federativo e a dificuldade de criação de uma justiça hibrida composta de juízes federais e estaduais, considerando, ainda, a estrutura consolidada e alta especialização para processar demandas tributárias (varas de execuções fiscais, varas da Fazenda Pública e Câmara de Direito Público) pelos tribunais de justiça dos 26 estados apresentou duas propostas:

a) Criação em cada Tribunal de Justiça de um “Núcleo Especializado de Justiça 4.0” para julgar questões atinentes ao IBS no âmbito dos 26 tribunais de justiça.

b) Criação de Câmara de Uniformização da Justiça Estadual, a fim de assegurar a coerência e a estabilidade da jurisprudência no julgamento de causas pertinentes ao IBS.

Contudo, essas propostas, bem elaboradas por sinal, podem encontrar resistência por parte da justiça federal, porque o IBS dual é um imposto federal, à medida que foi instituído por uma lei complementar federal.

Mas, deixar tudo a cargo da Justiça Federal irá causar congestionamento das varas da justiça federal não existentes em todas as comarcas.

A justiça federal não tem uma estrutura material consolidada como os tribunais de justiça dos estados.

A execução da reforma tributária aprovada pela EC 132/23 não só irá encarecer a arrecadação e distribuição do IBS arrecadado para estados e municípios, como também encarecer a estrutura do Poder Judiciário em várias de suas vertentes.

A União irá adiantar de 2025 até 2029 nada menos que R$ 3,8 bilhões para instalação e funcionamento do Comitê Gestor.

Esses adiantamentos deverão ser reembolsados pelos estados e municípios a partir de 2029, ou seja, estados e municípios ficarão endividados antes de iniciar a arrecadação e distribuição do IBS.

E mais, o Comitê Gestor ficará com 60% do produto de arrecadação do IBS de 2026 e, 50% do produto de arrecadação do IBS de 2027/2028. Não se sabe como ficará a partir de 2029, mas com certeza o Comitê Gestor será sócio na partilha desse imposto.

O IBS é o único imposto no mundo em que participa do produto de sua arrecadação o próprio órgão arrecadador.

O certo é que o custo da arrecadação tributária corra por conta das despesas gerais do Estado financiadas pelo produto da arrecadação dos impostos em geral, sendo vedada a vinculação parcial ou total de sua arrecadação a órgão, fundo ou despesas (art. 167, IV da CF). No mundo inteiro é assim, como também no Brasil até o advento da EC 132/23 que implantou essa esdrúxula reforma tributária parcial. Importar modelos tributários da Europa, por si só, não é um mal.  Absurdo está na incapacidade de adaptar um imposto próprio de um país unitário, para um país que adota a forma federativa de estado. Tinha razão o saudoso jurista Ataliba Nogueira.

Toda essa confusão institucional e o encarecimento da operacionalização do IBS dual tanto para os poderes públicos, como para os contribuintes, seriam evitados se acolhida a nossa singela proposta que, de um lado, cria o IBS estadual e o IBS municipal e, de outro lado, comete às administrações tributárias dos estados e dos município a tarefa de fiscalizar e arrecadar o respectivo imposto, como vêm fazendo com os atuais ICMS e ISS, respectivamente, sem qualquer acréscimo de despesas. O IBS seria implantado nas três esferas políticas.  A União já tem o seu IBS com o nome de CBS.

Com essa proposta, o Comitê Gestor, um órgão paquidérmico  de altíssimo custo operacional, que propicia centenas de elevados cargos em comissão, verdadeira mola propulsora da aprovação da reforma tributária em sessões relâmpagos,  seria extirpado por desnecessário.

O Comitê Gestor foi engendrado pelos autores da reforma para disfarçar a quebra do princípio federativo. Ao invés de disfarçar deveriam ter preservado a autonomia financeira dos estados e dos municípios.

A única objeção que se possa fazer contra essa proposta apresentada às mesas das duas Casas Legislativas pelo IBEDAFT, instituto que nós presidimos, é que ela é simples demais, um gravíssimo “defeito” que o Congresso Nacional nunca admitiu, não admite e jamais admitirá. Mas, não faria mal se os congressistas encampassem a  referida proposta com ligeiras alterações tendentes a diminuir o grau de objetividade e clareza.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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