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Separação de poderes no século XXI: Um modelo em transformação

A separação de poderes evolui: além da tripartição clássica, novos órgãos autônomos atuam como guardiões constitucionais, fundamentais para o equilíbrio democrático.

22/8/2025

O princípio da separação de poderes é um dos alicerces do Estado de Direito. Formulado a partir das ideias de Montesquieu, ele impede a concentração de autoridade em um único centro e protege as liberdades individuais. Ao distribuir funções entre Legislativo, Executivo e Judiciário, o sistema cria um arranjo de freios e contrapesos que limita abusos e garante equilíbrio na tomada de decisões.

Essa arquitetura institucional foi decisiva para consolidar regimes democráticos. No entanto, as transformações políticas, jurídicas e sociais das últimas décadas mostram que o modelo concebido no século XVIII não descreve integralmente a realidade atual. A complexidade do Estado moderno exige uma leitura mais ampla do conceito de separação de poderes, capaz de lidar com novos atores institucionais e funções que não se enquadram de forma precisa na tripartição clássica.

A Constituição brasileira de 1988 exemplifica essa mudança. Embora declare como poderes do Estado apenas o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, ela atribui prerrogativas a órgãos que não se encaixam nessa tríade, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas. Essas instituições desempenham funções constitucionais essenciais para a defesa da ordem jurídica, a fiscalização da gestão pública e a preservação de valores democráticos. Na doutrina estrangeira, órgãos com esse perfil são frequentemente chamados de guardiões constitucionais.

O Ministério Público, por exemplo, atua na defesa da sociedade, na proteção de direitos fundamentais e no combate à corrupção, com independência funcional e orçamentária. O Tribunal de Contas exerce papel relevante no controle externo, analisando a legalidade e a legitimidade dos gastos públicos e orientando a administração para uma gestão mais eficiente. Esses órgãos não são meros auxiliares dos poderes tradicionais. Eles representam polos de poder institucional com funções próprias, dotados de competências que impactam diretamente a governança estatal.

O papel do Poder Judiciário também passou por mudanças significativas. De um solucionador de litígios pontuais, ele se tornou ator central na definição e implementação de políticas públicas e na proteção de direitos. Essa atuação decorre, em grande parte, da omissão dos demais poderes em responder a determinadas demandas sociais. O STF, por exemplo, tem julgado questões que envolvem desde o funcionamento do sistema político até o desenho de políticas de saúde e educação.

O resultado é um arranjo mais complexo do que o idealizado por Montesquieu. A tradicional separação tripartite não é suficiente para explicar e orientar o funcionamento do Estado contemporâneo. A realidade brasileira demonstra que a preservação do equilíbrio institucional depende da definição clara de competências e da existência de mecanismos efetivos de controle entre diferentes órgãos.

Essa compreensão mais sofisticada da separação de poderes é vital para lidar com os desafios atuais. Em um ambiente de intensa polarização política e de crise de confiança nas instituições, é preciso reconhecer a importância de atores que não fazem parte da estrutura clássica, mas que desempenham papel decisivo na manutenção do Estado Democrático de Direito. A autonomia dessas instituições deve vir acompanhada de responsabilidade e transparência, sob pena de criar novos focos de concentração de poder.

O caminho para fortalecer a democracia passa por aprimorar os mecanismos de interação entre todos os órgãos que compõem o aparato estatal. Isso significa adotar práticas que incentivem a cooperação institucional sem abrir mão da fiscalização recíproca. A separação de poderes, longe de ser um dogma estático, deve ser vista como um instrumento vivo, moldado pelas necessidades e pela complexidade da sociedade.

O Brasil do século XXI exige que as instituições estejam preparadas para responder a desafios inéditos, que vão desde a proteção dos direitos fundamentais até o controle da legalidade e da eficiência da gestão pública. Para isso, é essencial abandonar visões simplificadas e reconhecer que o equilíbrio democrático depende de um sistema plural de atores, com funções bem definidas e capacidade de agir de forma independente e responsável.

Eduardo Henrique de Carvalho Franklin
Professor de Direito. Especialista em Regulação da Saúde Suplementar da ANS. Mestre em Direito pela UFPE.

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