Migalhas de Peso

Dois pesos e duas medidas na democracia

O artigo analisa a seletividade das críticas à política externa brasileira, expondo o duplo padrão de potências como EUA e Israel no discurso democrático.

25/8/2025

A publicação recente do jornal O Estado de S. Paulo, alertando para o enfraquecimento das instituições democráticas em Israel, expôs uma contradição latente no debate político internacional. O artigo apontou medidas governamentais que, ao restringirem a atuação da Suprema Corte e ampliarem assentamentos em territórios palestinos, colocam em risco os fundamentos da democracia israelense (O Estado de S. Paulo, 2025).

Esse quadro, contudo, não é exclusivo: práticas semelhantes vêm sendo verificadas em outras democracias consolidadas, como os Estados Unidos. A partir dessa constatação, coloca-se em evidência a seletividade das críticas que são dirigidas ao Brasil quando estabelece parcerias econômicas com países como China ou Rússia, sob a alegação de aproximação com regimes autoritários.

Israel e o enfraquecimento do Judiciário

O caso israelense ilustra a tensão entre formalidade democrática e substância democrática. Ao propor reformas que limitam o poder da Suprema Corte, o atual governo enfraquece o sistema de freios e contrapesos, essencial para a preservação de qualquer Estado de Direito.

Soma-se a isso a expansão de assentamentos em territórios palestinos, condenada pela comunidade internacional por violar normas do direito internacional humanitário. Tais medidas configuram práticas que, se adotadas em países fora da órbita ocidental, seriam classificadas de forma inequívoca como autoritárias (O Estado de S. Paulo, 2025).

Estados Unidos e a retórica da democracia

Os Estados Unidos, historicamente autoproclamados guardiões da democracia, também apresentam sinais de contradição. Sob o governo Donald Trump, foram impostas sanções a ministros do STF do Brasil, em clara tentativa de interferência sobre a jurisdição de um país soberano.

Internamente, as práticas de repressão a manifestações revelam o mesmo padrão de fragilização democrática. Em 2025, o governo federal mobilizou a Guarda Nacional e tropas adicionais em Washington, D.C., em operação de controle local que gerou forte reação por violar a autonomia da cidade (AP NEWS, 2025).

Além disso, o Washington Post noticiou planos do Pentágono para a criação de uma força de reação militar destinada a atuar contra distúrbios civis, medida criticada por especialistas por ferir a tradição constitucional de separação entre funções militares e policiais (WASHINGTON POST, 2025a).

Episódio semelhante ocorreu em Los Angeles, quando milhares de soldados foram enviados para conter protestos, provocando questionamentos jurídicos quanto à legalidade da operação e à violação da Posse Comitatus Act, que restringe o uso das Forças Armadas em atividades de ordem interna (WASHINGTON POST, 2025b). A CNN também noticiou a repressão violenta de manifestações, destacando o uso excessivo de força contra civis (CNN, 2025).

Ainda mais revelador foi o episódio no Salão Oval, em agosto de 2025, quando Donald Trump, em reunião com o presidente da Ucrânia, ironizou que “em tempos de guerra não há eleições”, sugerindo implicitamente que o pleito de 2028 nos EUA poderia ser suspenso (People, 2025). Tal postura evidencia não apenas o desprezo pelas regras do jogo democrático, mas também a disposição de relativizar princípios constitucionais quando convenientes a interesses políticos pessoais.

Tais práticas evidenciam que, mesmo em uma democracia consolidada, a adoção de mecanismos de repressão estatal em larga escala pode comprometer liberdades civis fundamentais.

O duplo padrão aplicado ao Brasil

Em contraste, quando o Brasil busca parcerias econômicas com países como China e Rússia, a crítica internacional recai de forma severa, acusando-o de “endossar ditaduras” ou “se afastar do campo democrático”.

Tal reprovação ignora um dado fundamental: a política externa brasileira pauta-se pela lógica da soberania e da não intervenção, buscando relações de natureza essencialmente comercial e estratégica, sem adesão ou concordância com as práticas políticas internas desses regimes.

Nesse ponto, o discurso crítico revela um duplo padrão: tolera-se em aliados ocidentais práticas de caráter autoritário, mas condena-se seletivamente o Brasil quando adota pragmatismo econômico em sua política externa.

Conclusão

A democracia não pode ser utilizada como argumento instrumental em disputas geopolíticas. Ao criticar o Brasil por suas alianças comerciais, enquanto se silencia diante de práticas antidemocráticas em Estados Unidos e Israel, incorre-se em flagrante injustiça e inconsistência argumentativa.

Ademais, cumpre salientar que os Estados Unidos, país historicamente tomado como paradigma de democracia constitucional, apresentam hoje claros sinais de retrocesso. No plano político-eleitoral, mantêm um sistema de votação arcaico, ainda baseado em cédulas e processos manuais, sem a adoção de tecnologias como o voto eletrônico seguro, capaz de garantir de modo mais eficiente o sigilo e a integridade do sufrágio.

No campo tecnológico, igualmente, os EUA perderam protagonismo em diversas áreas em que a China já desponta como líder em inovação digital, inteligência artificial e infraestrutura tecnológica.

Portanto, o Brasil, ao contrário do que muitas vezes se apregoa, não encontra atualmente nos Estados Unidos um modelo inspirador - nem no aspecto democrático, nem no aspecto tecnológico. Sua tarefa, no presente, deve ser a de afirmar a própria soberania, pautando suas alianças pela racionalidade econômica e pela defesa de seus interesses nacionais, sem se submeter a padrões seletivos impostos por potências que já não representam o ideal democrático ou o avanço tecnológico que proclamam.

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Referências

AP NEWS. Biden deploys National Guard in Washington, D.C., sparking criticism over local autonomy. 2025. Disponível em: https://apnews.com

CNN. US protests met with excessive force, raising concerns over civil liberties. 2025. Disponível em: https://cnn.com

O ESTADO DE S. PAULO. Israel enfraquece democracia com reforma judicial que limita Suprema Corte. São Paulo, 2025a. Disponível em: https://www.estadao.com.br

O ESTADO DE S. PAULO. EUA pressionam STF a absolver acusados de golpe no Brasil. São Paulo, 2025b. Disponível em: https://www.estadao.com.br

PEOPLE. Trump Gets a Laugh from Zelenskyy After Joking That 'if We Happen to Be in a War' in 2028, 'No More Elections'. People, 18 ago. 2025. Disponível em: https://people.com/trump-jokes-no-more-elections-if-united-states-at-war-11792856

WASHINGTON POST. Pentagon drafts plan for domestic rapid reaction force against civil unrest. 2025a. Disponível em: https://washingtonpost.com

WASHINGTON POST. Thousands of troops deployed in Los Angeles amid protests spark legal challenges. 2025b. Disponível em: https://washingtonpost.com

Andeirson da Matta Barbosa
Mestre em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM. Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Revisor de periódicos. Autor e coautor de livros jurídicos.

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