Vivemos tempos estranhos em que o clamor social parece justificar tudo - até o que a Constituição proíbe.
Em nome do combate à criminalidade e à corrupção, juízes transformam-se em protagonistas. Prisões preventivas viram punições antecipadas.
Há, sim, um desvio autoritário do Judiciário!
A prisão preventiva, prevista como medida cautelar, no processo penal brasileiro, deveria servir, em regra, à proteção da instrução criminal e à garantia da aplicação da lei penal.
No entanto, sua aplicação prática revela um fenômeno preocupante: o uso da prisão como forma de punição moral, antecipando a sanção antes da condenação definitiva e, transformando o juiz em não garantidor dos direitos fundamentais.
Ao confundir justiça com moralidade, o Judiciário compromete princípios fundamentais como: a presunção de inocência, o devido processo legal e a imparcialidade da jurisdição.
Note-se, desde logo, que prisões preventivas infinitas e sem contemporaneidade violam à dignidade humana.
Outra questão tormentosa a considerar é a manutenção da prisão mesmo após o encerramento da instrução criminal.
Não podemos mais mentir para nossos alunos dizendo que a prisão preventiva, nesses casos, tem natureza cautelar. Seria um faz-de-conta.
Há, ainda, que se afirmar que não é aceitável, no Estado Democrático de Direito, decretar a prisão preventiva em nome do “clamor popular”.
Qual seria o metro? O “clamor popular” seria medido pela discricionariedade da toga?
É importante se ressaltar que, garantias fundamentais são tratadas como obstáculos à justiça.
Incrível: é como a Constituição atrapalha-se. Mas há uma verdade que precisa ser dita com firmeza:
A Constituição não é uma folha de papel, tampouco um entrave à eficiência penal!
Ela é o fundamento do Estado Democrático de Direito. Interpretar o Direito à sua luz não é um luxo hermenêutico, mas uma exigência democrática.
Há uma tensão, sim, entre a Constituição como norma suprema e a prática decisória que, muitas vezes, parece ignorá-la ou relativizá-la.
Rasgá-la em nome da moralidade é instaurar uma justiça seletiva, movida por paixões e não por princípios constitucionais; o que seria imoral, ilegal e inconstitucional.
Um dos principais problemas identificados é o uso de “fundamentações padronizadas”, na decretação da prisão preventiva, que não demonstram concretamente a necessidade da prisão.
É o triste "copiar e colar"...
Expressões como “garantia da ordem pública” ou “risco à instrução criminal” são frequentemente utilizadas, porém, sem qualquer vínculo com os fatos do processo.
Prisão preventiva: Natureza jurídica
É de se verificar, inicialmente, que a prisão preventiva não possui caráter punitivo, mas sim cautelar.
Não é uma sanção. Tem natureza instrumental. Não é um meio, é nem um fim. É uma medida de exceção.
Só pode ser aplicada quando outras medidas cautelares do art. 319 do CPP forem insuficientes.
Deve ser fundamentada e proporcional. Visa proteger o processo penal sem antecipar a pena.
Uma coisa: a gravidade do crime por si só não justifica a prisão preventiva.
É preciso, sim, demonstrar a gravidade concreta da conduta, com base em fatos específicos.
A propósito, o processo penal deve ser: racional, garantista e constitucional.
Logo, a prisão preventiva quando usada para vingança e punição moral, demostra a falência do sistema de justiça; desvirtuando-se da função cautelar e na contramão do princípio da presunção de inocência.
Quem tem experiência nos tribunais já viu e vê toda hora decisões não-fundamentadas que falam: decreto a prisão preventiva nos termos do art. 312 do CPP, para assegurar a aplicação da lei penal, conveniência da instrução criminal e à garantia da ordem pública. Fica parecendo um mantra.
Não se pode deixar de mencionar, porém, que essas decisões que decretam a prisão preventivas têm fundamentações genéricas. Ficam no achismo. Não há um razoável juízo de probabilidade: de quase-certeza.
Não vale: adivinhar e fazer exercício de adivinhação e futurologia de que o réu vai fugir.
Pois então. Art. 312 do CPP exige, entretanto, fundamentação completa, clara e objetiva.
O que é ordem pública?
Pior: o art. 312 do CCP fala que prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública.
Uma questão fundamental: o que caracteriza a ordem pública?
É um conceito jurídico indeterminado. Há uma imprecisão semântica. Não há definição clara e objetiva.
Aí é que mora o perigo: pode gerar se usado de forma arbitrária. É de se frisar, porém, que a experiência nazista mostra como o conceito de ordem pública pode ser manipulado para justificar abusos de poder.
Importante, também, lembrar que a ideia de ordem pública foi usada como justificativa para perseguir: judeus, comunistas, ciganos, homossexuais e qualquer grupo considerado “indesejável” ou “subversivo”.
Isso serve como alerta para democracias modernas.
A liberdade é a regra de ouro. A prisão, uma exceção!
Por quê? Porque a Constituição consagra, em seu artigo 5º, inciso LVII, o princípio da presunção de inocência:
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
Que coisa: temos que a toda a hora repetir obviedades óbvias. É sinal de que algo vai muito mal no Direito.
Aliás, temos que interpretar o Direito à luz da Constituição para não criarmos “absurdos legais”.
Será pedir muito? É que a toda hora o texto constitucional é contrariado.
Regimes autoritários gostam de relativizar a presunção de inocência. Todos são culpados até provar o contrário.
A propósito, para Polícia, Ministério Público e mídia o indiciado no inquérito e ou o réu no processo penal são sempre culpados.
Autoritarismo da prisão preventiva
A prisão preventiva não pode ser um pretexto para a condenação, nem um castigo disfarçado. Quando o Estado prende para punir antes do julgamento, ele deixa de ser garantidor de direitos e se torna violador deles.
Há, sim, o desvio autoritário do Judiciário!
A decretação da prisão preventiva com viés punitivo inverte a lógica constitucional, transformando o processo penal em instrumento de opressão, e não de justiça.
Desrespeito à hermenêutica
O principal problema é o eventual desrespeito da magistratura à hermenêutica constitucional. Não há à coerência interpretativa. Há o "decisionismo" e o realismo jurídico, onde as decisões não têm o DNA da lei maior.
O respeito aos direitos fundamentais e à presunção de inocência é condição essencial para um sistema de justiça verdadeiramente democrático.
Por exemplo: Na Lava-Jato, princípios constitucionais eram ignorados: prendia-se para obter delações.
Era um modelo inquisitorial medieval. Havia um verdadeiro “massacre jurídico”, o que comprometia o sistema acusatório. Inclusive, o conluio entre juiz e a acusação.
Moralismo judicial
O juiz não é herói, tampouco legislador - é garantidor de direitos fundamentais. Correto?
A democracia exige que mesmo os acusados dos crimes mais graves sejam tratados com respeito às garantias. Porque é justamente esse respeito que distingue o Estado de Direito do arbítrio.
A atuação judicial, nesses casos, extrapola os limites da imparcialidade e revela uma postura de protagonismo.
O juiz deixa de ser intérprete da norma constitucional e assume o papel de combatente do mal, guiado por uma missão.
É, o “juiz salvador da pátria” ou “juiz iluminado”, onde o Direito fica refém da sua subjetividade, sem critérios jurídicos claros.
Essa figura compromete a legitimidade do processo penal ao substituir o Direito por narrativas de salvação nacional.
Ora, o juiz não é iluminado, não é salvador da pátria, e não deve ser.
Sua função é aplicar a lei com imparcialidade, respeitando os direitos fundamentais de todos - inclusive dos réus.
A prisão preventiva deve ser exceção, jamais regra!
Corrupção da Constituição
É legítimo e necessário, o combate à criminalidade, especialmente à corrupção No entanto, não pode se dar à margem da legalidade.
A atuação judicial deve estar pautada pela Constituição, e não por expectativas sociais ou convicções pessoais.
É preciso afirmar, com toda clareza: ninguém é a favor da corrupção - exceto o corrupto.
Da mesma forma, ninguém defende a impunidade - senão o criminoso.
O combate à corrupção é um imperativo ético e jurídico, mas não pode ser realizado à custa da Constituição.
Rasgar garantias fundamentais em nome da moralidade é, paradoxalmente, sim, uma forma de corrupção institucional.
A violação de direitos fundamentais, especialmente da cláusula pétrea da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição Federal), representa uma corrupção do próprio sistema de justiça.
Quando o Estado abandona seus princípios para punir com maior eficiência, ele deixa de ser Estado Constitucional de Direito e passa a operar sob lógica autoritária.
O respeito às garantias constitucionais não é obstáculo à justiça - é sua condição de possibilidade. A presunção de inocência não protege o criminoso, mas protege o cidadão contra o arbítrio.
Portanto, o verdadeiro combate à corrupção exige mais do que punições xemplares: exige fidelidade à Constituição, compromisso com o devido processo legal e rejeição de qualquer forma de moralismo e autoritarismo judicial que substitua o Direito por convicções pessoais.
A prisão preventiva espetáculo
O instituto da prisão preventiva é, sem dúvida, constitucional. Trata-se de uma medida legítima, prevista no ordenamento jurídico, com finalidade de garantir a efetividade do processo penal.
No entanto, uma questão que se impõe com extrema gravidade é o fenômeno da chamada prisão espetáculo - a exposição pública e midiática de pessoas investigadas durante o cumprimento do mandado de prisão.
Essa prática, que se tornou recorrente, por exemplo, em operações de grande repercussão, configura um grave retrocesso sob a perspectiva democrática e civilizatória.
A espetacularização da prisão não apenas viola a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), como também compromete o princípio da presunção de inocência, transformando o investigado em réu moral antes mesmo da instauração formal do processo.
É de ser mencionado, também, que o sistema de justiça se converte em palco de humilhação pública. O processo penal passa a ser um instrumento de vingança simbólica.
Essa prática modifica o papel da prisão preventiva cautelar, que deve ser: excepcional, necessária, proporcional e fundamentada.
A exibição pública de algemados, câmeras e coletivas de imprensa não têm qualquer relação com a legalidade da medida - são recursos cenográficos que servem à narrativa de punição exemplar.
A justiça não pode se prestar ao espetáculo. Porque quando o processo penal se transforma em show, o Estado deixa de ser garantidor de direitos e passa a ser agente de humilhação e opressão
E isso não é justiça - é barbárie!
Conclusão
Mesmo sendo essencial combater o crime e à corrupção, com o agravamento da violência, isso não justifica ignorar as garantias constitucionais do Estado Democrático de Direito.
Pois é. Quando o juiz abandona sua função de garantidor da Constituição para assumir o papel de protagonista moral, o processo penal deixa de ser instrumento de justiça e passa a ser ferramenta de poder e de arbítrio.
A prisão preventiva não pode ser usada como punição antecipada, nem como resposta simbólica à sociedade.
Sua banalização representa não apenas um desvio técnico-jurídico, mas uma grave ameaça à democracia.
Porque há também corrupção - silenciosa, institucional - quando se rasga a Constituição em nome de fins supostamente nobres.
O combate à corrupção é uma bandeira legítima, mas não pode ser usado como justificativa para atropelar garantias constitucionais.
A ideia de que “os fins justificam os meios” é incompatível no regime democrático.
A verdadeira justiça exige coragem: coragem para aplicar a lei mesmo quando ela protege quem todos querem punir; coragem para resistir à tentação do aplauso fácil; coragem para ser juiz - e não herói.
O Estado Democrático de Direito não pode ser negociado. Ele é o último bastião contra o arbítrio.
E quem o viola, ainda que em nome da moralidade, incorre na mais perigosa forma de corrupção: aquela que se disfarça de virtude.