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Herança digital e o planejamento sucessório: Desafios e perspectivas

A revolução digital criou novos ativos que exigem adaptação do direito sucessório. O artigo analisa desafios da herança digital, lacunas legais, reformas e instrumentos de planejamento.

26/8/2025

I. Introdução

A digitalização das relações patrimoniais apresenta desafios inéditos para o direito das sucessões brasileiro, tradicionalmente estruturado para lidar com bens corpóreos e direitos claramente definidos no mundo físico. Contas de e-mail, perfis em redes sociais, criptomoedas, tokens não fungíveis (NFTs), domínios de internet e uma infinidade de outros ativos digitais compõem, hoje, parcela significativa do patrimônio de muitas pessoas.

O ordenamento jurídico brasileiro, estruturado sobre as bases do CC de 2002, não contempla de forma específica a sucessão de ativos digitais, criando um vácuo normativo que gera insegurança jurídica tanto para os titulares destes bens quanto para seus potenciais sucessores. Esta lacuna legislativa torna-se ainda mais problemática quando consideramos que, segundo pesquisas recentes, até 10% da riqueza global poderá estar armazenada em tecnologias blockchain até 2027.

A problemática central reside na necessidade de compreender como o direito sucessório brasileiro pode evoluir para contemplar adequadamente os ativos digitais, garantindo segurança jurídica na transmissão patrimonial e respeitando os direitos fundamentais envolvidos, especialmente a privacidade e a proteção de dados pessoais.

II. Conceituação e classificação dos ativos digitais

2.1 Definição de herança digital

A herança digital representa um fenômeno jurídico contemporâneo que emerge da crescente digitalização das relações patrimoniais na sociedade da informação. Segundo a doutrina especializada, pode ser definida como “a parcela do acervo hereditário composta por bens e informações intangíveis, os quais advindos do mundo digital e que possuem valor econômico e/ou afetivo aos sucessores deixados pelo autor da herança”.

Esta conceituação evidencia a natureza híbrida dos ativos digitais, que podem apresentar tanto valor patrimonial mensurável quanto significado afetivo ou existencial para os sucessores. O conceito distingue-se do patrimônio tradicional por suas características específicas: intangibilidade, dependência tecnológica para acesso, volatilidade de valor, questões de privacidade e proteção de dados, e complexidade na identificação e recuperação.

2.2 Tipologia dos bens digitais

A classificação dos bens digitais no contexto sucessório divide-se em três categorias principais:

Bens digitais patrimoniais: Caracterizam-se por possuir valor econômico direto e mensurável, sendo passíveis de avaliação pecuniária e transmissão sucessória nos moldes tradicionais. Incluem-se criptomoedas, contas bancárias digitais, investimentos em plataformas eletrônicas, domínios de internet com valor comercial, contas monetizadas em redes sociais, NFTs com valor de mercado e licenças de software com valor patrimonial.

Bens digitais existenciais: Relacionam-se aos direitos da personalidade e aspectos não patrimoniais da vida digital do falecido. Compreendem correspondências eletrônicas privadas, fotografias pessoais, diários digitais, perfis em redes sociais sem valor comercial e arquivos pessoais sem valor econômico. A transmissibilidade destes bens é controversa na doutrina, pois envolve direitos personalíssimos que, em princípio, são intransmissíveis.

Bens digitais híbridos: Apresentam características tanto patrimoniais quanto existenciais, constituindo a categoria mais complexa do ponto de vista jurídico. Exemplos incluem perfis em redes sociais que possuem valor comercial mas também conteúdo pessoal, blogs ou canais que geram receita mas contêm expressões da personalidade do autor, e contas de jogos online com itens valiosos mas também progressão pessoal.

Uma subcategoria especial é representada pelos criptoativos, definidos pela IN RFB 1.888/19 como “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos”.

III. Panorama legislativo brasileiro

3.1 Ausência de Regulamentação Específica

O ordenamento jurídico brasileiro enfrenta um desafio significativo na regulamentação da herança digital, caracterizado pela ausência de normas específicas que contemplem adequadamente a sucessão de ativos digitais. O CC de 2002 foi elaborado em um contexto tecnológico substancialmente diferente do atual, quando a internet ainda estava em seus estágios iniciais e os ativos digitais eram praticamente inexistentes.

Esta lacuna legislativa manifesta-se em diversos aspectos problemáticos: inexistência de definição legal clara do que constitui patrimônio digital; ausência de procedimentos específicos para identificação, avaliação e transmissão de ativos digitais; e falta de regras claras sobre o acesso a contas e plataformas digitais do falecido, criando conflitos entre os direitos dos herdeiros e as políticas de privacidade das empresas de tecnologia.

A LGPD e o Marco Civil da Internet, embora representem avanços na proteção de dados e regulamentação da internet, não oferecem diretrizes específicas sobre o tratamento sucessório de ativos digitais.

3.2 PL 4/25 e a reforma do CC

O PL 4/25, apresentado ao Senado Federal, representa marco significativo na regulamentação da herança digital no Brasil, propondo alterações substanciais no CC para contemplar especificamente a sucessão de bens digitais.

Conceituação abrangente: O projeto estabelece definição legal que compreende como bens digitais “o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, entre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas, vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança”.

Critério de valor econômico: O projeto estabelece que apenas bens digitais com “valor economicamente considerável” devem ser objeto de transmissão sucessória, buscando equilibrar a proteção do patrimônio digital com a praticidade dos procedimentos sucessórios.

Proteção da privacidade: A proposta inclui dispositivos específicos para proteção da privacidade e dos dados pessoais do falecido, estabelecendo limitações ao acesso dos herdeiros a informações de natureza íntima ou privada que não possuam valor econômico.

Obrigações procedimentais: O projeto prevê obrigações específicas para o inventariante na identificação e arrolamento de bens digitais, incluindo a necessidade de investigação patrimonial abrangente e expedição de ofícios a prestadores de serviços digitais.

IV. Criptoativos: Desafio específicos no planejamento sucessório

4.1 Modalidades de custódia e implicações sucessórias

Os criptoativos apresentam desafios únicos para o planejamento sucessório devido às suas características técnicas específicas e às diferentes modalidades de custódia disponíveis. A distinção fundamental entre custódia em exchanges (terceirizada) e autocustódia em wallets pessoais determina estratégias sucessórias completamente distintas.

Custódia em exchanges: Quando mantidos em corretoras de criptomoedas, os ativos seguem procedimentos similares aos de outros investimentos financeiros. As exchanges geralmente possuem políticas específicas para sucessão, permitindo que herdeiros comprovem legitimidade através de documentação adequada. Esta modalidade oferece maior facilidade para recuperação dos ativos, mas implica em menor controle e dependência das políticas da plataforma.

Autocustódia em wallets: A custódia pessoal em carteiras digitais oferece controle total sobre os ativos, mas cria dependência absoluta das chaves criptográficas privadas para acesso. Esta modalidade representa o maior desafio sucessório, pois a perda das chaves privadas resulta em perda irreversível dos ativos, independentemente de qualquer procedimento judicial ou administrativo.

4.2 O problema das chaves privadas perdidas

Estatísticas revelam que aproximadamente 20% de todos os bitcoins em circulação estão permanentemente inacessíveis devido à perda de chaves privadas, representando valor superior a 100 bilhões de dólares. Esta realidade evidencia a magnitude do problema e a urgência de soluções adequadas para o planejamento sucessório de criptoativos.

A natureza criptográfica dos criptoativos torna impossível a recuperação de fundos sem as chaves privadas correspondentes. Diferentemente de senhas tradicionais que podem ser redefinidas através de procedimentos administrativos, as chaves privadas são elementos matemáticos únicos e irrecuperáveis. Esta característica técnica fundamental exige abordagem específica no planejamento sucessório.

4.3 Estatísticas sobre planejamento sucessório inadequado

Pesquisas recentes revelam dados preocupantes sobre o planejamento sucessório de criptoativos: embora 90% dos investidores se preocupem com o destino de seus criptoativos após a morte, apenas 23% possuem planejamento sucessório adequado. Esta discrepância evidencia a necessidade urgente de conscientização e desenvolvimento de instrumentos jurídicos específicos.

A falta de planejamento adequado resulta não apenas em perdas patrimoniais significativas, mas também em disputas familiares e complexidades processuais que poderiam ser evitadas com estratégias apropriadas. A educação sobre planejamento sucessório digital torna-se, portanto, elemento fundamental para preservação do patrimônio familiar.

V. Instrumentos jurídicos para planejamento sucessório digital

5.1 Testamentos especializados para ativos digitais

A inclusão de instruções detalhadas sobre ativos digitais em testamentos constitui estratégia fundamental para minimizar disputas e facilitar o processo sucessório. Contudo, esta inclusão deve ser realizada com cuidado especial, considerando as implicações de segurança e privacidade específicas dos criptoativos.

Testamento cerrado: Apresenta-se como a modalidade mais adequada para o planejamento sucessório de criptoativos, permitindo a inclusão de instruções técnicas específicas sem comprometer a confidencialidade durante a vida do testador. Esta modalidade permite incluir informações como localização de carteiras digitais, procedimentos para acesso a chaves privadas, contatos de prestadores de serviços especializados e orientações técnicas para os herdeiros.

Testamento público: Embora ofereça maior segurança jurídica em termos de validade, pode não constituir a opção mais adequada para informações sensíveis como chaves privadas, devido à publicidade inerente a esta modalidade testamentária.

5.2 Soluções tecnológicas avançadas

Carteiras multisig: O emprego de carteiras com múltiplas assinaturas emerge como solução tecnológica sofisticada que facilita significativamente a transferência de criptoativos aos herdeiros. Estas carteiras exigem múltiplas chaves privadas para autorizar transações, permitindo que o titular distribua as chaves entre diferentes pessoas ou entidades de confiança, criando um sistema de segurança redundante.

Designação de beneficiários em exchanges: A nomeação prévia de herdeiros junto às corretoras de criptomoedas representa estratégia prática e eficaz para ativos mantidos em custódia. Diversas exchanges já implementaram funcionalidades que permitem aos usuários indicarem beneficiários, estabelecendo procedimentos específicos para transferência dos ativos em caso de falecimento.

5.3 Instrumentos societários e contratuais

Holding de ativos digitais: A constituição de pessoa jurídica específica para deter e administrar ativos digitais representa estratégia empresarial sofisticada, especialmente adequada para patrimônios digitais de grande valor. Esta estrutura permite a profissionalização da gestão, facilita a transmissão sucessória através de participações societárias e oferece flexibilidade na estruturação da sucessão.

Mandato post mortem: Permite que o titular dos ativos digitais designe uma pessoa de confiança para executar tarefas específicas relacionadas aos ativos digitais após sua morte. Este instrumento é particularmente útil para situações que demandam conhecimento técnico especializado ou ações imediatas para preservação dos ativos.

5.4 Soluções tecnológicas integradas

Carteiras digitais modernas oferecem funcionalidades de herança que permitem configurar procedimentos automáticos de transferência de ativos em caso de inatividade prolongada. Estes sistemas utilizam mecanismos como “dead man’s switch” que transferem automaticamente os ativos para beneficiários pré-designados caso o titular não confirme sua atividade dentro de prazos estabelecidos.

Serviços de custódia especializada oferecem soluções profissionais para armazenamento e gestão de ativos digitais, incluindo procedimentos específicos para sucessão, combinando segurança técnica avançada com procedimentos jurídicos estruturados.

VI. Aspectos tributários e procedimentais

6.1 Incidência do ITCMD sobre ativos digitais

A tributação de ativos digitais na sucessão representa um dos aspectos mais complexos do planejamento patrimonial sucessório digital. O ITCMD - Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, de competência estadual, incide sobre a transmissão de bens e direitos por sucessão, incluindo os ativos digitais com valor econômico.

A base de cálculo do ITCMD sobre ativos digitais apresenta desafios específicos relacionados à avaliação destes bens. Enquanto ativos tradicionais possuem métodos de avaliação consolidados, os ativos digitais, especialmente criptomoedas e NFTs, caracterizam-se pela alta volatilidade e pela ausência de mercados organizados uniformes.

Para criptomoedas, a avaliação deve considerar o valor de mercado no momento da abertura da sucessão, utilizando-se cotações de exchanges reconhecidas. Contudo, a multiplicidade de exchanges e a variação de preços entre elas pode gerar controvérsias sobre qual cotação deve ser utilizada como referência.

6.2 Procedimentos no inventário

O arrolamento de bens digitais no inventário exige procedimentos específicos que considerem as características técnicas destes ativos. O inventariante deve realizar investigação patrimonial abrangente para identificar todos os ativos digitais do falecido, utilizando-se de declarações de imposto de renda, extratos bancários, correspondências eletrônicas e outros documentos que possam indicar a existência de investimentos digitais.

A expedição de ofícios a exchanges constitui procedimento fundamental para verificação de saldos em criptomoedas mantidas em custódia. O sistema Infojud permite ao inventariante solicitar informações sobre operações com criptoativos declaradas à Receita Federal, facilitando a identificação de corretoras onde o falecido mantinha investimentos.

6.3 Desafios práticos na execução

A identificação de ativos digitais em autocustódia representa o maior desafio prático nos procedimentos sucessórios. Diferentemente de ativos mantidos em exchanges, que podem ser identificados através de consultas oficiais, os criptoativos em wallets pessoais dependem exclusivamente de informações deixadas pelo falecido ou descobertas pelos herdeiros.

A volatilidade dos ativos digitais pode criar discrepâncias significativas entre o valor no momento da abertura da sucessão e o valor no momento da partilha, exigindo critérios claros para atualização de valores e distribuição de ganhos ou perdas entre os herdeiros.

VII. Conclusão

O presente estudo evidenciou que os ativos digitais representam uma realidade consolidada e crescente no patrimônio contemporâneo, demandando adaptação urgente do direito sucessório brasileiro para contemplar adequadamente suas características específicas. A ausência de regulamentação específica cria insegurança jurídica e pode resultar na perda irreversível de patrimônio significativo, como demonstram os casos de criptomoedas inacessíveis devido à perda de chaves privadas.

A análise das lacunas legislativas existentes revelou que o CC de 2002, a LGPD e o Marco Civil da Internet não oferecem soluções adequadas para os desafios específicos da herança digital. O PL 4/25 representa avanço significativo ao propor definição abrangente de bens digitais, critérios para inclusão na herança, proteção da privacidade e obrigações procedimentais específicas.

Os criptoativos emergem como a categoria mais complexa de ativos digitais, apresentando desafios únicos relacionados às modalidades de custódia e às características técnicas específicas. A diferença entre custódia em exchanges e autocustódia em wallets pessoais determina estratégias sucessórias distintas, sendo a segunda modalidade particularmente desafiadora devido à dependência de chaves criptográficas privadas.

O desenvolvimento de estratégias jurídicas específicas mostrou-se fundamental, incluindo a gestão estratégica de chaves privadas através de carteiras multisig, a designação de beneficiários em exchanges e a utilização de testamentos especializados. O testamento cerrado apresenta-se como a modalidade mais adequada para incluir instruções técnicas específicas sem comprometer a segurança dos ativos.

A tributação de ativos digitais através do ITCMD apresenta desafios específicos relacionados à avaliação de bens voláteis e à identificação de ativos em autocustódia. Os procedimentos de inventário devem ser adaptados para contemplar as características técnicas dos ativos digitais, incluindo investigação patrimonial abrangente e expedição de ofícios específicos a prestadores de serviços digitais.

A urgência de legislação específica sobre herança digital torna-se cada vez mais evidente diante da crescente relevância econômica dos ativos digitais. A regulamentação deve contemplar não apenas aspectos patrimoniais, mas também questões de privacidade, proteção de dados e direitos da personalidade, estabelecendo critérios claros para acesso a dados pessoais no contexto sucessório.

A capacitação do Poder Judiciário representa necessidade urgente para o adequado tratamento das questões sucessórias digitais. Magistrados, servidores e auxiliares da justiça devem receber formação específica sobre tecnologias digitais e suas implicações jurídicas para garantir decisões adequadas e eficazes.

Por fim, a educação da sociedade sobre a importância do planejamento sucessório digital constitui elemento fundamental para evitar perdas patrimoniais desnecessárias. A conscientização sobre os riscos específicos dos ativos digitais e as estratégias disponíveis para sua proteção deve ser promovida através de iniciativas educacionais direcionadas tanto aos profissionais do direito quanto aos detentores de patrimônio digital.

O futuro do direito sucessório brasileiro depende de sua capacidade de adaptação às transformações tecnológicas, garantindo que os avanços digitais contribuam para a preservação e transmissão adequada do patrimônio familiar, respeitando os direitos fundamentais e promovendo a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento sustentável da economia digital.

Carlos Alberto Borrelli Barbosa
Carlos Borrelli é advogado (OAB/PR 20.208), especialista em Planejamento Patrimonial Sucessório e sócio fundador do escritório Carlos Borrelli Sociedade Individual de Advocacia. Possui pós-graduação e

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