Migalhas de Peso

A suspensão das sanções do RenovaBio e os limites do Poder Judiciário

Decisão do TRF-3, ao suspender sanções do RenovaBio com efeitos erga omnes, desconsiderou aspectos processuais relevantes, limites jurisdicionais e realidade das políticas climáticas.

28/8/2025

A recente decisão liminar proferida pelo desembargador Federal Nery Júnior, da 3ª turma do TRF-3, que, em sede de agravo de instrumento, suspendeu a aplicação de sanções legais vinculadas ao Programa RenovaBio, não permaneceu restrita aos autos, repercutindo no mercado e no mundo jurídico - inclusive sendo noticiada no Migalhas1.

Essa difusão pública não surpreende, tendo em vista que a decisão não se restringiu sequer a suspender as sanções do RenovaBio à empresa distribuidora de combustível que havia interposto o recurso, tendo caráter amplo a todos os agentes obrigados indicados na legislação, tornando propício um debate acerca dos limites da atividade jurisdicional e sobre quem deve ser o responsável por definir os contornos da política climática e os meios de sua execução.

Esclareça-se, de início, que tal decisão não se deu no âmbito de uma ação coletiva ou de controle concentrado de constitucionalidade, mas em um agravo de instrumento interposto por uma única distribuidora de combustível em específico em razão de ter sido negado pedido liminar em ação ordinária contra a ANP.

A decisão do desembargador Federal não teceu qualquer observação acerca do art. 18 do CPC/15 (segundo o qual “ninguém poderá pleitear direito alheio em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”), mas, mesmo assim, ampliou indevidamente os limites subjetivos da demanda, determinando a aplicação para todos os agentes obrigados pela lei 13.576/17 (lei do RenovaBio).

Analisando detidamente a decisão, o que se nota é que, apesar de diversas críticas à legislação, não há sequer qualquer mínima fundamentação no sentido de declarar incidentalmente a inconstitucionalidade da norma (ou ao menos a necessidade de interpretação conforme à Constituição), limitando-se a citar de forma genérica as garantias de contraditório e ampla defesa, o que, quando muito, poderia limitar parcialmente a aplicação das sanções (o que sequer seria o caso, já que a ANP só aplica as sanções - que não se confundem com a publicidade necessária em um setor regulado - após processo administrativo com contraditório e ampla defesa), mas nunca determinar a suspensão total, de todo modo não havendo fundamentação específica nesse sentido na decisão.

A inexistência de fundamentação direta de inconstitucionalidade chega a ser chocante, quando considerando que a decisão expressamente proíbe a ANP de praticar ato sancionatório fundado, inclusive, “no art. 9º-B da lei 13.576/17, na lei 15.082/24”, citando em suma todas as sanções legais como proibidas (aplicável, como já dito, não só para a empresa recorrente, mas com verdadeiro efeito erga omnes).

O que a decisão alega é que “o RenovaBio apresenta graves fragilidades estruturais decorrentes de sua concepção açodada”, citando que haveria uma “concentração injustificada e integral do ônus da compensação ambiental apenas nas empresas de distribuição de combustíveis fósseis”, que seria o “elo que menos contribui diretamente para a emissão de gases de efeito estufa”, entendendo que a opção política do legislador seria falha.

Chega ao cúmulo, inclusive, de criticar diretamente o Poder Legislativo, ao asseverar, confirmando que a decisão está se contrapondo diretamente à legislação, que “o legislador optou por intervir e dobrar a aposta” com a lei 15.082/24.

Menciona a decisão, apenas como contextualização das disputas judiciais acerca do RenovaBio, que existem duas ações diretas de inconstitucionalidade no STF sobre o tema, sem destacar a decisão, porém, sequer quais seriam as violações constitucionais ou mesmo o fato de que, em tais ações de controle concentrado, não houve qualquer decisão deferindo liminar. 

O que há, ao contrário, nas ADIns 7.596 e 7.617, são pareceres da Procuradoria-Geral da República refutando todas as alegações de inconstitucionalidade do RenovaBio e destacando a impossibilidade de atuação do Poder Judiciário como legislador positivo.

Em tais pareceres, inclusive, há refutação das próprias críticas da decisão aqui discutida ao RenovaBio, destacando que “a escolha dos distribuidores para cumprimento das metas de descarbonização levou em conta a posição menos concentrada no mercado de combustíveis, relativamente àquela verificada nos setores de produção, importação e refino, circunstância que dá aos primeiros a possibilidade de monitorar diariamente condições de oferta e de demanda de combustíveis fósseis e renováveis, e de participar ativamente do processo de formação de preços ao consumidor final, que é quem efetivamente arca com o ônus financeiro da política pública de descarbonização”, em consonância com as informações técnicas apresentadas em tais ações.

Destacou a PGR, ainda, que “dados técnicos acostados pelos órgãos demonstraram a suficiência da oferta de CBIOs para o cumprimento das metas de descarbonização e a modicidade dos custos financeiros repassados aos consumidores finais”.

A decisão do desembargador Federal do TRF-3, ao invés de ao menos intimar a ANP para prestar esclarecimentos em justificação prévia, quando poderia ter sido comprovada tecnicamente a adequação do RenovaBio, já imediatamente suspendeu a legislação de forma ampla e abrupta.

Acerca da disponibilidade dos CBIOs, inclusive, a ANP informou2 que, em 2024, houve um aumento do percentual de CBIOs aposentados em relação à meta total fixada pelo CNPE (88% em 2023 e 92% em 2024) e uma redução do percentual de distribuidores que não cumpriram as metas (43% em 2023 e 37% em 2024). 

Ora, se realmente houvesse uma crise de indisponibilidade de CBIOs, como alega a decisão proferida no TRF-3, como explicar o aumento das metas e a menor quantidade de distribuidores que não cumpriram as metas? A decisão não analisa tais dados, o que é bastante grave, já que entendeu por suspender, com efeitos erga omnes, a aplicação de legislação legitimamente aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo.

Acerca do tema, a CF/88 foi incisiva ao estabelecer a separação de Poderes como pressuposto de nosso Estado de Direito, sendo considerada inclusive cláusula pétrea, impossível de restrição até mesmo pelo Poder Constituinte Derivado. Ressalte-se que a separação de poderes não existe apenas para limitar o Poder Executivo e o Poder Legislativo, mas para restringir a atuação dos três poderes, inclusive do Poder Judiciário.

Segundo o princípio da conformidade funcional, inclusive, deve haver na interpretação por parte do Judiciário uma estrita obediência à repartição de funções constitucionalmente estabelecida, não cabendo a ele adentrar na competência dos outros poderes. 

Sobre esse princípio, afirma Bernardo Gonçalves Fernandes3 que “compreende uma delimitação de competências entre órgãos públicos - consequência do princípio da separação de poderes-, razão pela qual nenhuma interpretação realizada por um órgão pode conduzir a uma usurpação de competência ou de função dos demais”

A decisão que suspendeu as sanções legais do RenovaBio, entendendo que a solução do legislador não seria positiva, entendeu que seria válido, monocraticamente, em um agravo de instrumento, suspender a legislação sem fundamentar qualquer inconstitucionalidade.

A decisão, ao criticar o legislador por “intervir e dobrar a aposta”, desconsidera que, em casos de discordância acerca da efetividade de uma política pública, é realmente ao legislador que cabe “intervir”, não ao Poder Judiciário.

Entende o STF4, inclusive, que “a capacidade institucional na seara regulatória, a qual atrai controvérsias de natureza acentuadamente complexa, que demandam tratamento especializado e qualificado, revela a reduzida expertise do Judiciário para o controle jurisdicional das escolhas políticas e técnicas subjacentes à regulação econômica, bem como de seus efeitos sistêmicos”, ao que “a intervenção judicial desproporcional no âmbito regulatório pode ensejar consequências negativas às iniciativas da Administração Pública”.

Importante considerar que o objetivo do RenovaBio é reduzir a emissão de gases do efeito estufa, não apenas para contribuir com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil com o Acordo de Paris, mas também para proteger e assegurar os próprios direitos constitucionais à saúde e a um meio ambiente equilibrado.

Assim, sendo o RenovaBio parte fundamental de política ambiental brasileira, a decisão do TRF-3, ao suspender escolhas legislativas e regulatórias legítimas, não só acentua a incerteza jurídica, mas também termina por implicar em uma transição energética mais lenta, com a matriz energética com maior participação de combustíveis fósseis, resultando em maior emissão de poluentes atmosféricos.

______________

1 https://www.migalhas.com.br/quentes/438546/desembargador-barra-sancoes-do-renovabio-e-aponta-falhas-no-programa

2 https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/renovabio/comprovacao-das-metas-individuais-de-2024-por-distribuidor-de-combustiveis 

3 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. Ed. Ver. ampl. e atual. – Salvador, JusPodivm, 2017, p.185.

4 (STF – RE 1083955 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 28/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-122 DIVULG 06-06-2019 PUBLIC 07-06-2019)

Vicente Martins Prata Braga
Presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado, procurador do Estado do Ceará, doutor em Direito. Processual Civil pela USP e pós-doutor em direito público pela UERJ.

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