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Impactos econômicos e políticos da PEC 66/23

A PEC 66/23 altera o pagamento de precatórios, ampliando prazos e reduzindo juros, gerando críticas por postergar direitos de credores.

29/8/2025

O precatório, título que formaliza a dívida pública após decisão judicial definitiva, sempre conviveu com atrasos e filas intermináveis, mesmo diante de robustas disposições constitucionais que estabelecem prazos determinados e formas para seu pagamento. Com a PEC 66/23, de autoria do senador Jader Barbalho (MDB-PA) , o cenário de incerteza sobre a satisfação e liquidez desses títulos fica ainda maior.

As mudanças propostas pela PEC operam em três frentes simultâneas: i) limites escalonados de pagamento dos títulos vinculados à RCL - Receita Corrente Líquida dos entes devedores; ii) parcelamentos unilaterais dos débitos que podem chegar até a 300 (trezentas) parcelas mensais - 25 (vinte e cinco) anos; e, iii) acordos diretos entre entes devedores e credores, mediante o aceite destes a deságios não limitados pela proposta.

Aprovada e promulgada, a PEC 66/23 altera profundamente o regime de precatórios. Mais que ajustes técnicos, a proposta institui mecanismos que postergam indefinidamente a satisfação desses títulos e ainda rompem com o pacto federativo ao estabelecer normas de direito financeiro diferentes para os variados entes federativos.

A estratégia da PEC é dupla: alívio imediato seguido de retorno gradual. O ponto central da proposta está no escalonamento do pagamento de precatórios e RPVs para estados e municípios de forma vinculada à sua RCL - Receita Corrente Líquida.

À União a medida traz respiro para alcance da meta fiscal de 2026, excluindo de seu teto despesas com precatórios e RPVs e ainda estabelece um retorno gradual dessas despesas ao resultado primário a partir de 2027 à fração de 10% (dez por cento) dos débitos em estoque ao ano, de modo que a integralidade dos gastos com precatórios e RPVs só deve voltar a impactar o resultado fiscal em uma década.

Outra alteração relevante está a antecipação da data máxima para apresentação do título pelo credor para inclusão no orçamento do ente devedor: de 2 de abril para 1º de fevereiro. Apesar de parecer algo simples, essa alteração encurta ainda mais o tempo disponível para titulares de precatórios apresentarem seus créditos para pagamento dentro do mesmo exercício, garantindo maior previsibilidade de despesas aos gestores públicos.

O ponto central da proposta está no escalonamento do pagamento de precatórios e RPVs para estados e municípios de forma vinculada à sua RCL - Receita Corrente Líquida.

Estoque de Precatórios em atraso

Limite Anual de Pagamento (% da RCL)

Até 15%

1%

De 15% a 25%

1,5%

De 25% a 35%

2%

De 35% a 45%

2,5%

De 45% a 55%

3%

De 55% a 65%

3,5%

De 65% a 75%

4%

De 75% a 85%

4,5%

Acima de 85%

5%

A lógica do art. 2º da PEC é perversa: entes com estoque de precatórios de até 15% da RCL devem destinar 1% (um por cento) desta para pagamento de seus débitos, enquanto os entes mais endividados, com comprometimento superior a 85% (oitenta e cinco por cento) da sua RCL com débitos judiciais, devem destinar 5% (cinco por cento) dela para o mesmo fim.

A título de exemplo, um município com estoque de precatórios equivalente a 10% (dez por cento) de sua RCL pagará apenas 1% (um por cento) de seus débitos anualmente, levando 10 (dez) anos para satisfazer todo seu passivo - desconsiderando novos precatórios expedidos no período.

Pela regra atual, créditos lastreados em precatórios são corrigidos pelo IPCA-E durante o período de graça e submetidos à taxa SELIC para fins de juros moratórios após seu vencimento. A PEC, contudo, também propõe uma revisão para esta questão: correção monetária pelo IPCA-E somado de taxa de juros de 2% (dois por cento) ao ano.

Em termos práticos, a proposta reduz a perspectiva de valorização desses títulos em 7,65 (sete e sessenta e cinco) pontos percentuais ao ano , considerando dados de agosto de 2025.

A PEC 66/23 tem sido amplamente criticada por juristas diante de possíveis inconstitucionalidades em seu texto.

Em nota técnica, o Conselho Federal da OAB classificou a medida como “o maior calote de precatórios já institucionalizado desde a Constituição Federal de 1988”, afirmando :

“A imposição de limites percentuais baseados no estoque de precatórios, sem a garantia de que o pagamento ocorrerá de forma justa e em tempo razoável, poderá ser interpretada como uma nova tentativa de adiar o cumprimento de obrigações constitucionais, em contradição direta com os preceitos firmados pelo STF, tentando constitucionalizar, mais uma vez, o calote nos precatórios.”

No entendimento da entidade, a proposta confere ao Executivo a possibilidade de protelar o cumprimento de decisões judiciais, violando a coisa julgada e os direitos patrimoniais e hereditários dos credores (art.5º, XXII e XXX da CF). Além disso, a nota aponta que a PEC impõe desiquilíbrio entre Estado e contribuintes, ao estabelecer critérios de correção diferentes para débitos e créditos fiscais.

Em outras palavras, a PEC transfere ao Executivo o poder de definir como e quando cumprir decisões judiciais, comprometendo o equilíbrio entre os Poderes e pondo em xeque a segurança jurídica de um crédito líquido e certo.

A proposta nos apresenta um paradoxo: conceder fôlego fiscal aos entes federativos, retirando dos credores - especialmente aposentados e pensionistas - qualquer perspectiva de recebimento de seus créditos?

Diretamente afetado pela medida, o mercado secundário de ativos judiciais, que conta com mais de 2 (dois) mil FIDCs - Fundos de Investimento em Direitos Creditórios com mais de R$400 bilhões sob gestão , deve enfrentar sua maior reformulação. A proposta altera parâmetros críticos para a análise de rentabilidade e risco das operações envolvendo precatórios e RPVs, exigindo maior cautela na escolha dos títulos e revisão dos deságios praticados.

O mercado da monetização de ativos judiciais já vê seus impactos com investidores mais cautelosos na escolha dos títulos que negociam e mais agressivos em relação aos deságios ofertados. Novas formas de operar cessões e sub-rogações de crédito, como a tokenização, podem ganhar força, enquanto os Fundos se ajustam às novas regras.

Mesmo com o mercado secundário reticente, a cessão de créditos judiciais, antes vista como estratégia de liquidez, passa a representar um mecanismo de defesa patrimonial. Para os credores, aceitar um deságio conhecido e pactuado oferece maior segurança do que esperar indefinidamente pelo recebimento de seus créditos. A antecipação de créditos judiciais deixa de ser conveniência financeira e torna-se, para muitos, o único meio de evitar o derretimento de seu patrimônio.

Jefferson Agrella
Advogado, Especialista em Contratos pela EPD, com MBA em Gestão de Negócios, com ênfase em Inteligência de Mercado pela Saint Paul Escola de Negócios e membro da Comissão de Empreendedorismo Legal da OAB/SP e CEO da Agrella Assessoria especializada em originação de créditos judiciais.

Ricardo Freitas Silveira
Sócio da Lee, Brock, Camargo Advogados. Doutor e Mestre em Direito pelo IDP - Instituto Brasileiro de Ensino,Desenvolvimento e Pesquisa.Especialista em gestão de contencioso de volume pela FGV e gestão de departamentos jurídicos pelo Insper.Especialista em Negócios Sustentáveis pela Cambridge University.Autor do livro "Análise Preditiva e o Consumidor Litigante".Professor convidado da Saint Paul, FIA, EDP, EBRADI e PUC-PR para cursos de pós-graduação.Coordenador da pós-graduação LEGALE em Gestão de Escritórios e Departamentos Jurídicos.

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