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Como a PEC 66/23 muda o jogo para investidores de precatórios

A PEC 66/23 reforça a imprevisibilidade do mercado de precatórios, ampliando riscos com mudanças em prazos, pagamentos e maior judicialização.

29/8/2025

Historicamente, os precatórios sempre estiveram no centro das tensões entre política, governo e economia. Ainda assim, nos últimos anos cresceu a percepção de que investir neles seria algo seguro, líquido e quase sem risco - uma espécie de substituto da renda fixa de longo prazo. Essa visão, no entanto, é uma ilusão.

A aprovação da PEC 66/23 apenas confirma o que já era previsível: alterações nas regras de pagamento são inevitáveis em um país onde o passivo judicial se acumula há décadas. Tais mudanças, embora controversas, expõem a realidade do mercado brasileiro. Somos, por essência, uma economia de riscos, sujeita a “lombadas” frequentes no caminho. Investir em precatórios, portanto, exige profundo conhecimento técnico, clareza sobre os mecanismos de negociação e, sobretudo, consciência dos riscos que se está disposto a assumir.

Esse não é um movimento inédito. Em 2021, a PEC 23 já havia alterado a lógica de pagamentos, postergando dívidas e limitando o desembolso anual da União. O resultado foi imediato: retração de investidores, judicialização no STF e aumento dos descontos exigidos em operações de cessão. A PEC 66/23 repete a fórmula, com um agravante: confirma a percepção de que o Estado pode mudar unilateralmente as regras sempre que o passivo pressionar as contas pública.

O país não dispõe de recursos suficientes para quitar integralmente o estoque de precatórios de imediato. O que existe é a necessidade de estratégias de orçamento, ajustes fiscais e, sim, “manobras” pragmáticas para conciliar responsabilidade fiscal e cumprimento mínimo das obrigações. Isso não significa que o mercado deixe de existir - pelo contrário, em toda crise surgem oportunidades. Mas é fundamental alertar: precatórios não são ativos livres de risco. Quem investe assume a posição de credor do Estado e, junto com ela, carrega um risco significativo de alteração legislativa e política.

Na prática, os impactos se manifestam em três frentes. A primeira é a alteração nos prazos de inscrição e pagamento, com alongamento dos fluxos e possibilidade de parcelamentos. Isso compromete a previsibilidade - fator central para qualquer decisão de investimento. A segunda é a valorização menor do crédito, já que o mercado precifica incertezas maiores e exige spreads mais altos. A terceira é a ameaça constante de judicialização: é praticamente certo que associações de credores e partidos políticos levem a questão ao STF, pedindo a declaração de inconstitucionalidade de pontos da PEC. Cada liminar, cada oscilação no entendimento da Corte, terá reflexo imediato no apetite dos investidores.

O resultado é um ambiente mais arriscado e que exige maior sofisticação. Institucionais, que tradicionalmente tinham horizontes de investimento mais longos, começam a reavaliar a exposição. Investidores individuais, que já vinham crescendo nesse mercado, passam a enfrentar barreiras adicionais, seja na análise jurídica, seja na precificação de riscos.

O mercado de precatórios existe há décadas e continuará existindo. O primeiro passo é gerenciar o impacto das mudanças; o segundo, identificar as oportunidades que sempre se revelam em períodos de instabilidade. Nesse contexto, eleições, novas decisões jurídicas e diferentes modelos de gestão das contas públicas podem redesenhar o cenário a qualquer momento. O investidor que compreender essa dinâmica terá mais chances de transformar incertezas em retornos consistentes.

Diante disso, quais estratégias de mitigação se colocam? Do ponto de vista jurídico, é indispensável reforçar a due diligence: avaliar com precisão a origem do crédito, o estágio processual e a robustez da decisão judicial que o originou. Do ponto de vista financeiro, a diversificação é regra de ouro, não apenas entre diferentes precatórios, mas também entre diferentes emissores e até classes de ativos. Além disso, contratos de cessão precisam ser repensados, incorporando cláusulas que prevejam cenários de mudanças legislativas, de forma a equilibrar riscos entre comprador e vendedor.

Outro ponto fundamental é o acompanhamento da agenda judicial. O histórico mostra que o STF tende a buscar soluções de transição para evitar um colapso fiscal, mas também tem se mostrado sensível ao argumento da segurança jurídica. Entender esse equilíbrio será determinante para antecipar movimentos do mercado e proteger carteiras.

A verdade é que a PEC 66/23 não extingue o mercado de precatórios. Mas altera seu perfil: se antes era possível enxergar esse ativo como quase um substituto de renda fixa de longo prazo, agora ele assume contornos mais próximos de um investimento alternativo, com necessidade de análise multidisciplinar e gestão ativa.

Investir em precatórios continua sendo relevante. O Brasil tem um estoque bilionário e um mercado consolidado de cessões, mas o jogo mudou. O investidor que insistir em tratá-lo como um ativo estático, sem considerar as novas variáveis jurídicas e políticas, corre o risco de perdas expressivas. Já aquele que compreender o novo cenário, adotar estratégias sofisticadas e acompanhar de perto os desdobramentos poderá transformar a incerteza em oportunidade.

Renata Nilsson
CEO e sócia da PX Ativos Judiciais | Consultora especializada em fundos de investimentos (FIDCs) e plataformas focadas na aquisição de créditos judiciais incluindo trabalhistas, cíveis e precatórios.

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