Migalhas de Peso

Fiscalização de contratos: Primeira linha contra fraudes públicas

O artigo revela como a fiscalização de contratos atua como primeira linha de defesa contra fraudes, unindo tecnologia, controle social e integridade nas contratações públicas.

2/9/2025

A fiscalização de contratos administrativos ocupa posição estratégica na prevenção e no combate a irregularidades nas contratações públicas. Ao assegurar a legalidade, a eficiência e a transparência na execução contratual, essa atividade se consolida como uma das principais linhas de defesa contra práticas fraudulentas e desvios que comprometem o interesse público (Silva, 2024, p. 80).

Os crimes e fraudes licitatórias, quando não prevenidos, afetam diretamente a realização de políticas sociais essenciais - saúde, educação, segurança - e corroem os objetivos constitucionais da República. Muitas vezes, tais ilícitos são perpetrados por organizações criminosas ou por conluios entre agentes públicos e privados, explorando fragilidades dos mecanismos de controle (Vicente, 2016). Nesse cenário, a lei 14.133/21 não apenas modernizou o regime jurídico das licitações e contratos, como também reforçou a necessidade de uma fiscalização rigorosa e tecnicamente estruturada, apta a mitigar riscos e proteger o erário.

Este artigo analisa a função da atividade fiscalizatória como primeira linha de defesa contra fraudes e crimes licitatórios, destacando sua importância no contexto da lei 14.133/21. Para tanto, adota-se uma metodologia mista, combinando: i) análise documental, abrangendo legislação, regulamentos e políticas públicas aplicáveis; e ii) revisão bibliográfica, contemplando doutrina e estudos recentes sobre fiscalização contratual, tecnologia e controle social (Queiroz, 2023).

Mais do que oferecer respostas definitivas, pretende-se fomentar o debate acadêmico e profissional acerca do papel estratégico da fiscalização na construção de um sistema de contratações públicas mais íntegro, eficiente e transparente.

A lei 14.133/21 estabelece, em seu art. 117, que a execução dos contratos administrativos deve ser acompanhada e fiscalizada por agente designado, com substituto previamente indicado. Esse fiscal deve atender aos requisitos do art. 7º da mesma lei, manter registro sistemático das ocorrências e comunicar à autoridade competente as situações que extrapolem sua alçada decisória. Além disso, a norma admite que o fiscal seja auxiliado por terceiros contratados e pelos órgãos de assessoria jurídica e de controle interno da Administração, ampliando a capilaridade do processo fiscalizatório.

A atividade fiscalizatória não se limita a garantir a entrega adequada do objeto contratado; ela é também instrumento essencial para a aplicação de sanções administrativas e responsabilização de agentes públicos e privados, uma vez que seus registros vão fundamentar os processos que ocorrerão nos termos da lei licitatória e da lei 12.846/13 (lei anticorrupção) (Saddy, 2024, p. 993 e 994). O art. 8º, §3º, da lei 14.133/21 ainda impõe aos entes federativos a obrigação de regulamentar a atividade fiscalizatória, de modo a adaptá-la às especificidades locais. Nesse contexto, surge a figura do gestor do contrato, cujas atribuições, embora correlatas às do fiscal, carecem de definição explícita na lei, sendo usualmente disciplinadas por normas infralegais, como a IN SEGES/MP 5/17 e o decreto 11.246/22 (Silva, 2024, p. 92).

A fiscalização torna-se particularmente relevante para a prevenção de fraudes licitatórias, já que falhas na execução contratual frequentemente resultam em prejuízos significativos ao erário. Entretanto, na prática administrativa, as equipes de fiscalização nem sempre atuam com dedicação exclusiva, e suas funções tendem a ser exercidas de forma colateral e burocrática. Superar esse modelo tradicional demanda dois movimentos complementares:

i) incorporação de tecnologias digitais e sistemas inteligentes que aumentem a eficiência e a rastreabilidade dos processos (Oliveira, 2023); e

ii) ampliação do controle social, permitindo que a sociedade participe do monitoramento das contratações e contribua para maior transparência e legitimidade.

A gestão de riscos nas contratações públicas é um processo que busca identificar, analisar, avaliar, tratar e monitorar os riscos associados às aquisições, garantindo a integridade, transparência e geração de valor para a Administração Pública. Nesse contexto, a adoção das linhas de defesa representa uma prática robusta de controle, em que cada linha possui responsabilidades específicas na governança e gestão de riscos, atuando de forma coordenada para prevenir falhas e promover uma gestão eficaz (TJDFT, 2022).

A ideia das três linhas de defesa nas contratações públicas deriva de um modelo de gerenciamento de riscos fomentado internacionalmente pelo IIA - Institute of Internal Auditors. Esse modelo promove a atuação coordenada de três camadas dentro de uma organização, com funções e responsabilidades claramente definidas. Ao aplicar este modelo, as contratações públicas implementam práticas contínuas de gestão de riscos e controle preventivo, assegurando não apenas a conformidade com normas e regulamentos, mas também promovendo a integridade e a transparência no processo de contratação (IIA, 2020).

A primeira linha de defesa é composta por agentes diretamente envolvidos na execução e monitoramento das contratações, responsáveis pela implementação de controles internos e pela gestão de riscos operacionais. A segunda linha é formada por unidades de assessoramento e controle interno, que fornecem monitoramento adicional e validação das práticas de gestão de riscos. Por fim, a terceira linha, representada pelo órgão central de controle interno e pelos tribunais de contas, realiza uma avaliação independente e abrangente de todo o processo de contratação pública (Silva, 2024, p. 81).

Na primeira linha de defesa, estão os gestores e fiscais responsáveis pela execução do objeto contratual. Por estarem diretamente ligados às atividades cotidianas, têm a capacidade de identificar, de forma proativa, problemas na execução e agir para solucioná-los ou encaminhá-los aos órgãos competentes. Nesse sentido, eles desempenham um papel essencial na proteção contra riscos, implementando controles e assegurando a conformidade contratual (TCU, 2017).

Os papéis de primeira linha estão mais diretamente alinhados com a entrega de produtos e/ou serviços aos clientes da organização, incluindo funções de apoio. Estando os gestores e fiscais diretamente ligados à execução do objeto contratual, estarão na primeira linha de defesa da contratação, identificando os problemas na execução das atividades e agindo, de forma proativa, na busca por soluções ou encaminhamento aos órgãos competentes (Brasil, 2024).

Exemplos de fraudes e estratégias preventivas

Casos emblemáticos demonstram como alterações contratuais indevidas, emissão de notas fiscais falsas, aditivos irregulares e declarações de serviços não prestados têm sido empregados para fraudar a Administração Pública. Tais práticas, envolvendo valores significativos e frequentemente articuladas por redes criminosas, evidenciam que a ausência de fiscalização rigorosa resulta em danos expressivos ao erário e compromete a execução de políticas públicas essenciais (Gorrilhas; Britto, 2021).

A experiência administrativa e a doutrina especializada convergem para apontar que a prevenção de fraudes demanda fiscalização contínua, tecnicamente estruturada e bem documentada. Isso inclui:

Além disso, a utilização de tecnologias digitais, como sistemas de gestão eletrônica e análise de dados, permite identificar padrões atípicos e agilizar a tomada de decisão, tornando a fiscalização mais eficaz e menos dependente de processos exclusivamente manuais (Oliveira, 2023).

Tabela 1 - Exemplos de condutas fraudulentas durante a execução dos contratos administrativos

Conduta Fraudulenta

Descrição

Estratégia da equipe de fiscalização

Superfaturamento de materiais ou serviços

Aumento injustificado do valor dos custos da contratação, seja por conta de sobrepreço na pesquisa de preços, seja por outros motivos que tornem a contratação mais custosa do que deveria.

Realizar cotações periódicas de preços para comparar com os valores pagos. Analisar documentos e exigências contratuais para verificar se os preços estão compatíveis com o mercado.

Cobrança de serviços ou produtos não prestados

Cobrança por serviços não realizados ou produtos não entregues.

Verificar a execução dos serviços in loco e confrontar com os relatórios entregues pela contratada.

Alteração de especificações sem justificativas apropriadas e aprovação pela Administração

Fornecimento de materiais ou serviços de qualidade diferente daquela prevista em contrato.

Revisar amostras e documentos de especificação técnica. Verificar se as características dos materiais/serviços entregues estão de acordo com o contrato e, se necessário, instruir processo para futura aplicação de penalidades.

Pagamentos em duplicidade

Emissão de mais de um pagamento para a mesma fatura ou cobrança.

Conferir faturas e históricos de pagamento antes de autorizar novos desembolsos. Manter registros organizados para evitar duplicidade.

Fraude na requalificação de itens ou serviços rejeitados

Reenvio de itens rejeitados com pequenas alterações, cobrando por uma "requalificação".

Verificar se as alterações realizadas são suficientes para atender às especificações iniciais. Se necessário, aplicar penalidades ou rejeitar o item novamente.

Modificação de condições para aplicação de cláusula de revisão indevida

Justificativas infundadas para receber revisões, alegando variações econômicas inexistentes ou infundadas.

Revisar as cláusulas de reequilíbrio econômico-financeiro e monitorar indicadores econômicos. Exigir documentação que comprove a necessidade de revisão.

Simulação de demandas adicionais (jogo de cronograma)

Manipulação do cronograma para concentrar entregas em períodos mais vantajosos financeiramente.

Acompanhar de perto o cronograma de entregas. Documentar qualquer alteração no cronograma.

Jogo de Planilha

Manipulação de preços unitários na planilha de custos, elevando itens que serão utilizados em maior quantidade e reduzindo os de menor volume.

Revisar a planilha de custos antes da execução e verificar o histórico das medições para comparar quantidades e preços ao longo do contrato. Conferir se os preços estão justificados em cada medição.

Fonte: Elaborado pelos autores.

As fraudes licitatórias representam um grave desvio que compromete a transparência, a isonomia e a eficiência da Administração Pública, violando os princípios previstos no art. 37, caput, da CF/88 e no art. 5º da lei 14.133/21. Tais ilícitos ocorrem tanto na fase interna, por meio de conluio entre servidores e licitantes, elaboração de editais com cláusulas restritivas ou sobrepreço nas estimativas, quanto na fase externa e de execução, com práticas como o direcionamento do certame, conluio entre concorrentes, fornecimento de produtos de qualidade inferior ou serviços em desacordo com o contratado. Essas condutas são frequentemente facilitadas por fragilidades nos controles internos e externos, pela percepção de impunidade e pela ausência de mecanismos eficazes de monitoramento.

Entre as principais causas dessas práticas ilícitas destacam-se a existência de oportunidades geradas pela ineficiência ou inexistência de controles administrativos, a participação ativa ou conivente de agentes públicos, e fatores comportamentais como reciprocidade, racionalização e abuso de posição de autoridade. A expectativa de impunidade e a deficiência na fiscalização também alimentam a ocorrência de fraudes, permitindo que interesses privados se sobreponham ao interesse público.

Para coibir tais ilícitos, é imprescindível a adoção de um sistema robusto de prevenção, detecção e correção. Isso inclui a implementação de controles internos claros e bem definidos, o monitoramento contínuo de todas as fases do processo licitatório, a segregação de funções entre as equipes envolvidas, a capacitação permanente de servidores e a utilização de ferramentas tecnológicas que possibilitem a rastreabilidade e a análise de dados. Ademais, a participação da sociedade civil, por meio de canais de denúncia e acompanhamento de licitações, fortalece o controle social e reduz o espaço para irregularidades, conforme incentivado pela lei 12.527/11 (lei de acesso à informação).

Assim, a efetividade no combate às fraudes em licitações depende de um esforço integrado entre gestores, órgãos de controle e sociedade. A transparência, aliada a mecanismos de fiscalização atuantes, não apenas reduz as oportunidades para a prática de fraudes, mas também reforça a integridade e a credibilidade das contratações públicas, protegendo o erário e garantindo que os recursos sejam aplicados de forma justa e eficiente.

Conclusão

A fiscalização de contratos administrativos revela-se instrumento estratégico para a prevenção e o combate às fraudes licitatórias, consolidando-se como barreira indispensável à proteção do patrimônio público e à promoção da justiça social. Sob a égide da lei 14.133/21, essa atividade ganhou contornos mais definidos, exigindo procedimentos sistemáticos, capacitação técnica e integração com as demais linhas de defesa do controle interno e externo.

O estudo evidenciou que falhas ou negligências na fiscalização potencializam prejuízos ao erário, comprometendo a execução de políticas públicas e favorecendo práticas ilícitas, que vão desde o superfaturamento até a adulteração de objetos contratuais. Ao contrário, a atuação diligente dos fiscais e gestores, na condição de primeira linha de defesa, permite identificar irregularidades em tempo real, adotar medidas corretivas e prevenir a consolidação de esquemas fraudulentos.

Ademais, o modelo das três linhas de defesa demonstra que a fiscalização não é atividade isolada, mas parte de um sistema coordenado de governança que envolve órgãos de assessoramento, controle interno e tribunais de contas. Quando associada ao uso de tecnologias digitais e ao fortalecimento do controle social, essa abordagem tem potencial para transformar a fiscalização, tornando-a mais proativa, transparente e eficiente.

Por fim, o enfrentamento das fraudes exige não apenas mecanismos preventivos, mas também sistemas de responsabilização robustos, capazes de assegurar que ilícitos não permaneçam impunes. O fortalecimento da fiscalização, aliado à integridade institucional e à participação social, constitui, portanto, condição essencial para a construção de um sistema de contratações públicas mais eficiente, ético e alinhado aos princípios constitucionais.

________________

BRASIL. Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 20 ago. 2025.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, Seção 1, 01 abr. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 15 ago. 2025.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Roteiro de Auditoria de Gestão de Riscos e Referencial de Combate à Fraude e Corrupção Aplicável a Órgãos e Entidades da Administração Pública. Brasília: TCU, 2017.

BRASIL. TCU. Tribunal incentiva uso de mecanismos de enfrentamento à fraude e corrupção. Portal TCU, 2024. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tribunal-incentiva-uso-de-mecanismos-de-enfrentamento-a-fraude-e-corrupcao.htm. Acesso em: 30 jul. 2025.

DOURADO, Rodolfo Carneiro de Souza. Ecossistema da corrupção no Brasil: a sombra da gestão pública nas fraudes licitatórias. 2021. Tese (Doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador.

GORRILHAS, Luciano Moreira; BRITTO, Cláudia Aguiar Silva. A investigação nos crimes militares: aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais: casos concretos. Porto Alegre: Núria Fabris, 2021.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A fiscalização dos contratos administrativos na nova Lei de Licitações: dos carimbos à inteligência artificial. SLC - Solução em Licitações e Contratos, v. 7, 2024.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A nova Lei de Licitações: um museu de novidades? Revista Colunistas de Direito do Estado, n. 474, 23 dez. 2020. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/rafael-carvalho-rezende-oliveira/a-nova-lei-de-licitacoes-um-museu-denovidades. Acesso: 10 jun. 2025.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Fiscalização dos contratos administrativos e inovações tecnológicas: dos carimbos à inteligência artificial. Migalhas, 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/396071/fiscalizacao-dos-contratos-administrativos-e-inovacoes-tecnologicas. Acesso em: 10 jun. 2025.

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

QUEIROZ, Rafael Mafei R.; FEFERBAUM, Marina. Metodologia da pesquisa em direito: técnicas e abordagens para elaboração de monografias, dissertações e teses. São Paulo: Editora Saraiva, 2023.

SADDY, André. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. Volume 3. 3. ed. Rio de Janeiro: CEEJ, 2024.

SILVA, Jader Esteves. Gestão e fiscalização de contratos administrativos. Rio de Janeiro: CEEJ, 2025.

Jader Esteves da Silva
Doutorando, Mestre e Especialista em Direito. Bacharel em Direito e em Ciências Navais. Professor de Licitações e Contratos Administrativos. Autor e Palestrante. Instagram: @jader.esteves

Carolina Azeredo
Bacharel em Administração, com ênfase em Administração Pública pela Academia da Força Aérea (2017). Pós-graduada em Direito Administrativo pela Faculdade Unyleya (2019). Membro do GDAC.

Prof. Ms. César Wanderley
Doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A força da jurisprudência na Justiça Eleitoral

3/12/2025

Edição gênica e agronegócio: Desafios para patenteabilidade

3/12/2025

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025