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Proteção de crianças no ambiente digital: Recomendações da ONU e desafios no Brasil

Crianças vivem cada vez mais conectadas, mas com riscos crescentes. ONU e projetos de lei no Brasil apontam caminhos para fortalecer sua proteção digital.

2/9/2025

A infância e a adolescência, fases que marcam o início das relações interpessoais, passaram a ser, nas últimas décadas, cada vez mais atravessadas pelo ambiente digital. Ferramentas de busca, jogos online, aplicativos de mensagens e plataformas de redes sociais já fazem parte do cotidiano da maioria dos jovens brasileiros, que nascem em uma realidade hiperconectada e tecnologicamente mediada.

Essa presença digital precoce oferece inúmeras oportunidades de aprendizado, socialização e acesso à informação. No entanto, também expõe esse público a riscos relevantes e complexos, como a exploração comercial indevida de seus dados pessoais, o acesso facilitado a conteúdos inapropriados e as vulnerabilidades associadas à segurança cibernética e ao seu desenvolvimento emocional e cognitivo.1

Nesse contexto, a pesquisa TIC Kids Online Brasil, publicada em 20242, revela que cerca de 93% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos são usuárias da internet no Brasil, com o WhatsApp figurando como a plataforma mais acessada. Além disso, 83% possuem contas próprias em redes como YouTube, Instagram e TikTok.

Esses dados demonstram que crianças e adolescentes não apenas acessam a internet utilizando dispositivos de seus responsáveis, mas também têm presença autônoma nas plataformas digitais. Contudo, esse uso crescente tem ocorrido com pouco ou nenhum controle sobre como esses acessos se dão, o que aumenta sua exposição a riscos.

Apesar da familiaridade com o ambiente virtual, o público infantojuvenil ainda carece de conhecimentos básicos de proteção online. Apenas 70% sabem configurar suas preferências de privacidade e, entre os jovens de 11 a 17 anos, apenas 55% conseguem diferenciar conteúdos patrocinados dos não patrocinados. Esse desconhecimento os torna mais suscetíveis a riscos como o uso indevido de dados pessoais, publicidade enganosa e crimes cibernéticos.

A vulnerabilidade é agravada pela baixa adoção de controles parentais. Ainda segundo dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, apenas 34% das crianças e adolescentes contam com filtros de segurança ou bloqueios em suas redes. Além disso, cerca de 60% dos responsáveis permitem que os menores realizem sozinhos atividades como assistir a vídeos, enviar mensagens instantâneas e jogar online. Em contrapartida, a supervisão costuma recair apenas sobre situações específicas, como durante compras online.

Esse cenário revela um descompasso preocupante: os jovens têm ampla liberdade para consumir e publicar conteúdos digitais, mas sem acompanhamento efetivo, enquanto as restrições se concentram apenas nos riscos mais visíveis. Embora algumas plataformas adotem classificação indicativa para tentar limitar o acesso a conteúdos impróprios, esses mecanismos podem ser facilmente contornados pelos usuários. Sem a devida supervisão, crianças e adolescentes acabam expostos não apenas a materiais inadequados para a faixa etária, mas também a riscos relacionados à exposição excessiva, gerando a “adultização” dos jovens, e ao contato com pessoas desconhecidas, que podem comprometer sua privacidade e segurança. A ausência desses mecanismos de controle amplia a exposição a perigos digitais diversos, os quais, muitas vezes, não são percebidos nem avaliados pelos responsáveis.

O aumento da vulnerabilidade já se reflete em números alarmantes: segundo a ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania3, os relatos de crimes contra crianças e adolescentes cresceram 22,6% em 2024, totalizando quase 290 mil registros. Esse aumento evidencia que a ausência de mecanismos efetivos de supervisão contribui para expor crianças e adolescentes a situações de risco de forma recorrente e silenciosa.

Contudo, os riscos não se limitam a crimes cibernéticos. Há uma preocupação crescente com a exposição de crianças e adolescentes a conteúdos inapropriados, como publicidades de bebidas alcoólicas, jogos de azar e produtos destinados ao público adulto.

Isso se soma ao tratamento inadequado de dados pessoais, frequentemente coletados e processados sem o consentimento dos responsáveis legais ou sem qualquer controle quanto à finalidade de uso. Esses fatores tornam ainda mais urgente a necessidade de regulamentações específicas e medidas de proteção eficazes para o público infantojuvenil.

Diante desse cenário, em junho deste ano, o Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU publicou relatório com recomendações ao Brasil para fortalecer a proteção integral dos direitos das crianças. As propostas abrangem desde temas relacionados à não discriminação, saúde e mudanças climáticas, até a necessidade de reforçar os direitos das crianças no ambiente digital.

Um dos pontos centrais do documento é a recomendação de que o governo brasileiro proíba o uso de dados de crianças por sistemas de inteligência artificial até que existam regras claras e eficazes que garantam a segurança e privacidade desse público.

O Comitê da ONU também reforça a necessidade de aprovação do PL 5.342/23, que se encontra pendente de apreciação do Plenário da Câmara dos Deputados. O PL tipifica como crime a criação, divulgação e comercialização de imagens de nudez ou de caráter sexual não autorizadas, geradas por softwares ou inteligência artificial.

Nesse contexto, também avança o PL 2.628/22, conhecido como “ECA digital”, que estabelece regras para proteção e prevenção de crimes contra crianças e adolescentes em ambientes digitais. Recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, o projeto impõe às plataformas digitais a adoção de medidas de prevenção de riscos, incluindo mecanismos que facilitem a supervisão por pais e responsáveis. O texto prevê, ainda, penalidades em caso de descumprimento, que variam de advertência, multas que podem chegar a R$ 50 milhões, suspensão temporária de atividades e até a proibição definitiva das atividades no país.

A proposta dialoga diretamente com as recomendações do Relatório da ONU, ao reforçar a necessidade de implementação de regras claras e eficazes para limitar a exploração de dados de menores, ampliar a segurança digital e assegurar um ambiente online mais protetivo e compatível com os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Projetos de lei como esses, aliados ao posicionamento da ONU, evidenciam a necessidade de fortalecer as políticas públicas e a legislação nacional voltadas à proteção dos menores, especialmente frente aos riscos decorrentes dessas tecnologias emergentes.

Embora o relatório tenha como destinatário o Estado brasileiro, a proteção das crianças no ambiente digital não é apenas uma responsabilidade estatal, mas também compromisso social de todos os atores envolvidos - incluindo empresas de tecnologia, instituições educacionais, famílias e sociedade civil. Crianças têm o direito fundamental de crescer em um ambiente digital seguro, que promova o seu desenvolvimento integral, respeite sua privacidade e assegure sua dignidade.

Assim, as recomendações também possuem efeitos práticos diretos sobre o setor privado. Empresas que realizam coleta, tratamento ou compartilhamento de dados pessoais de crianças e adolescentes devem não devem apenas observar a legislação vigente, mas também acompanhar as tendências regulatórias internacionais que impactam sua atuação.

Diante da crescente presença de crianças no ambiente digital, as organizações devem adotar medidas para garantir sua proteção. Isso inclui a exigência de consentimento específico e verificável dos pais ou responsáveis legais, além da obrigação de informar com transparência - e em linguagem acessível - a finalidade da coleta, a finalidade de uso dos dados e os direitos dos titulares.

As organizações devem também seguir o princípio da minimização, limitando-se a coletar apenas os dados estritamente necessários e evitando qualquer tratamento que envolva perfis comportamentais ou publicidade direcionada a menores, especialmente quando isso puder violar direitos fundamentais ou expor o titular a riscos.

Tais ações devem ser incorporadas aos programas de governança e privacidade e refletir um compromisso institucional com a conformidade legal e a responsabilidade social. O cumprimento dessas exigências, somado ao acompanhamento das diretrizes internacionais, como as recomendações da ONU, fortalece a reputação da instituição, mitiga riscos legais e assegura um ambiente digital mais seguro e ético para as crianças e adolescentes.

Fica a expectativa de que o Brasil avance com celeridade na regulamentação do tema, promovendo um ambiente digital mais acolhedor e comprometido com a proteção dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes.

A recomendação do Comitê de Direitos das Crianças da ONU e os projetos de lei em tramitação no Brasil estão alinhados com o entendimento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de que a internet é, hoje, um meio para a efetivação de direitos humanos. Não se trata, portanto, de restringir ou impedir o uso das tecnologias por crianças e adolescentes, mas de assegurar que esse ambiente seja sustentável, ético e seguro para sua utilização. Garantir a presença digital de menores de forma responsável significa reconhecer que o ambiente online deve ser um espaço de desenvolvimento, inclusão e proteção, e não de vulnerabilidade. Esse é o desafio que se impõe ao Estado, à sociedade e ao setor privado.

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Referências

Aumento de denúncias de abusos contra crianças preocupa a CDH. Senado Notícias, 19 mai. 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/05/19/cdh-debate-aumento-de-denuncias-de-abusos-contra-criancas-e-adolescentes. Acesso em: 13 ago. 2025.

BRASIL. Projeto de Lei 2628/2022. Dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Apresentado em 10 dez. 2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2477340. Acesso em: 26 ago. 2025.

BRASIL. Projeto de Lei 5342/2023. Tipifica o crime de Porno Fake e acrescenta o artigo 218-D ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar o crime de criação, divulgação e comercialização de imagem de nudez ou de cunho sexual não autorizada, gerada por softwares e inteligência artificial (AI); altera para pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a dignidade sexual; estabelece causas de aumento de pena para esses crimes. Apresentado em 06 nov. 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2401172. Acesso em: 26 ago. 2025.

COMMITTEE ON THE RIGHTS OF THE CHILD. Concluding observations on the combined fifth to seventh periodic reports of Brazil. Genebra, 5 jun. 2025. Acesso em: 26 ago. 2025.

COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Niñez, libertad de expresión y medios de comunicación en las Américas. Relatoría Especial para la Libertad de Expresión de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. OEA, 2019. Parágrafos 76 e 78. Acesso em: 26 ago. 2025.

Direitos digitais de crianças e adolescentes. Secretaria de Comunicação Social. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/uso-de-telas-por-criancas-e-adolescentes/guia/capitulos/direitos-digitais-de-criancas-e-adolescentes. Acesso em: 13 ago. 2025.

HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.

Pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024: Resumo Executivo. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. Cetic, 12 de mai. de 2025. Disponível em: https://cetic.br/pt/publicacao/resumo-executivo-pesquisa-sobre-o-uso-da-internet-por-criancas-e-adolescentes-no-brasil-tic-kids-online-brasil-2024/. Acesso em: 13 ago. 2025.

Veja o que a ONU recomenda ao Brasil para enfrentar violações dos direitos das crianças: Comitê sobre os Direitos das Crianças da ONU critica letalidade policial, uso indevido de dados digitais e limitações ao aborto legal. Conectas Direitos Humanos, 10 jun. 2025. Disponível em: https://conectas.org/noticias/veja-o-que-a-onu-recomenda-ao-brasil-para-enfrentar-violacoes-dos-direitos-das-criancas/?utm_campaign=newsletter_junho&utm_medium=email&utm_source=RD+Station. Acesso em: 10 jul. 2025.

1 Haidt defende que a introdução precoce de smartphones e redes sociais alterou rotinas, sono e sociabilidade, com correlação ao aumento de ansiedade e depressão em adolescentes.

Para uma síntese de reflexos (sono fragmentado, comparação social, cyberbullying e queda de interações presenciais) do uso intensivo de telas e redes por adolescentes, ver Haidt.

HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.

2 Pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024: Resumo Executivo. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. Cetic, 12 de mai. de 2025. Disponível em: https://cetic.br/pt/publicacao/resumo-executivo-pesquisa-sobre-o-uso-da-internet-por-criancas-e-adolescentes-no-brasil-tic-kids-online-brasil-2024/. Acesso em: 13 ago. 2025.

3 Aumento de denúncias de abusos contra crianças preocupa a CDH. Senado Notícias, 19 mai. 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/05/19/cdh-debate-aumento-de-denuncias-de-abusos-contra-criancas-e-adolescentes. Acesso em: 13 ago. 2025.

Camila de Albuquerque Oliveira
Sócia Titular da área de Empresarial no escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Pedro Cavalcanti
Sócio da área de Privacidade e Proteção de Dados no escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Thaís Gambôa
Advogada de Direitos Humanos e Negócios de Impacto no escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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