Migalhas de Peso

Brilhantismo da simplicidade

Reflexão sobre como a busca por eficiência e clareza no Direito pode ser inspirada por trajetórias simples, mas marcantes, como a de uma homenageada.

4/9/2025

Li a biografia de uma senhora simples, de muita personalidade e carisma, que há mais de quarenta anos sustenta os bastidores em um tradicional clube do Recife. Ao completar 70 anos, ela foi homenageada pelo clube com um livro de memórias. Em uma das dedicatórias, usaram a expressão “brilhantismo da simplicidade” para descrevê-la. Parei ali. Fiquei com essa frase martelando na cabeça e puxei um fio direto para o mundo jurídico.

A verdade é que o contexto da advocacia mudou bastante nos últimos dois anos, especialmente com o advento da IA. Antes disso, a pauta foi a digitalização de processos (PJe), robôs (RPA), inteligência de dados com Power BI, legal design e a advocacia predatória exigindo respostas em escala. Tudo isso sempre foi visto como diferencial de qualidade. Hoje, além dessa expectativa legítima dos clientes - que permanece -, os times jurídicos enfrentam um cenário econômico cada vez mais desafiador: orçamentos comprimidos, times menores tendo de entregar mais e a eficiência tornando-se questão de sobrevivência.

No dia a dia dos grandes escritórios, convive-se com os desafios de encantar os clientes e superar as expectativas, reduzindo custos. No cenário atual, entendo que a eficiência operacional deve preceder o “perfeccionismo estético ou procedimental”. Não é contra capricho, é a favor da fluidez. Embora algo fique “mais bonito” (ex.: QR Code, capa visual, infográficos complexos, botões visuais), se isso acrescenta fricção (mais cliques, campos, validações, passos), o resultado tende a ser o mesmo: a entrega fica mais lenta, o retrabalho aumenta e o valor, no longo prazo, se perde. Antes de mudar qualquer fluxo, eu me pergunto: o ganho de clareza ou de qualidade compensa o atrito que vou colocar no caminho?

Sempre faço conexões com o varejo, setor onde estou mais imerso. Na operação online, isso é quase lei: qualquer clique novo precisa se provar essencial. Testa-se, mede-se, observa-se a conversão e a experiência. Em vendas, chamam isso de “atrito no funil”: todo obstáculo derruba gente no caminho.

E no jurídico? A história rima - e muito. A soma de “microcontroles” - aquele campinho extra “só para garantir”, a validação a mais “por segurança”, o passo adicional “para ninguém errar” - vai empilhando pequenas pedras no caminho. Uma ou duas não atrapalham; cem, atrapalham muito. A produtividade despenca sem que ninguém tenha “decidido” por isso; ela foi sendo corroída em pequenas parcelas. Claro que haverá informações e negócios que exigem dupla ou até tripla checagem, dada a criticidade, mas o desafio está em identificar o que é realmente necessário.

Também é inevitável refletir sobre o legal design. É valioso, sim, sou fã e já tivemos muitos cases de sucesso utilizando essa abordagem. Mas não podemos esquecer do propósito: tornar teses difíceis compreensíveis e facilitar a leitura de quem decide. O risco aparece quando a busca por “peças perfeitas” cria algo bonito, porém pouco replicável no dia a dia, difícil de ajustar ao caso concreto e demorado para adaptar. O desafio é chegar à forma privilegiando o fluxo.

Essa tensão entre fluxo e brilho não é exclusiva do jurídico; há um paralelo clássico no futebol. Tostão analisou como o futebol moderno saiu da busca incessante pelo drible para a técnica do passe (P de Passe). O passe curto, repetido com precisão, sustenta a posse e reduz erro - tornando o jogo mais técnico e, por vezes, mais previsível. Já o passe longo e o drible, quando raros e bem escolhidos, rompem linhas e criam a chance do gol. No fim, a equipe precisa de ambos: o mais fácil e curto, para manter a posse, e o mais difícil e longo, para surpreender o adversário e colocar o companheiro em condições de finalizar.

E, da mesma forma, os escritórios precisarão combinar a simplicidade do passe curto com a ousadia da inovação, para continuar surpreendendo o adversário e preservar seu diferencial competitivo.

Aqui, tomando a liberdade de exercer a futurologia, acredito que ouviremos cada vez mais falar em “Simplicidade”. Não no sentido de fazer menos, mas de cortar o que não é essencial. Usar design com propósito. Automatizar onde faz sentido. Padronizar o que se repete. Manter flexível o que é raro. Eliminar o que causa atrito.

E, se for para errar, que seja pelo lado do simples. O simples bem feito costuma ser o mais difícil de construir e o mais poderoso de sustentar. É aí que mora o tal “brilhantismo da simplicidade”.

Diogo Dantas de Moraes Furtado
Advogado do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025