1. Introdução
A liberdade econômica constitui pilar da ordem constitucional brasileira, refletida na livre iniciativa (art. 1º, IV e art. 170, caput, CF) e na garantia de propriedade (art. 5º, XXII, CF). Esse princípio foi reforçado pela edição da lei 13.874/19, conhecida como lei da liberdade econômica, que consagrou a intervenção mínima do Estado nas relações privadas, ampliando a autonomia dos agentes econômicos e reforçando a segurança jurídica nas escolhas negociais.
No campo tributário, essa diretriz ganha relevância diante da necessidade de distinguir condutas lícitas de planejamento, voltadas à economia fiscal legítima, de práticas ilícitas de evasão e simulação. A elisão fiscal, compreendida como a utilização de meios legais para evitar ou reduzir a carga tributária antes da ocorrência do fato gerador, deve ser reconhecida como exercício da liberdade de organização patrimonial do contribuinte. Já a evasão e a simulação representam ilícitos, configurando hipóteses de fraude ou dissimulação passíveis de repressão pelo Fisco.
A interpretação equivocada dessas categorias tem gerado crescente insegurança jurídica, especialmente quando a Administração Tributária confunde planejamento lícito com simulação, desconsiderando negócios regularmente constituídos. A controvérsia ganhou relevo no julgamento da ADIn 2446/DF, em que o STF declarou a constitucionalidade do art. 116, parágrafo único, do CTN, mas delimitou sua aplicação a hipóteses de dissimulação. No mesmo sentido, o STJ, ao apreciar o REsp 1.927.496/SP, reiterou que a simulação exige prova robusta, não podendo ser presumida pela simples busca de economia fiscal.
Nesse contexto, o presente artigo propõe examinar os contornos jurídicos da liberdade econômica em matéria tributária, com foco na elisão fiscal e nos limites do Fisco para desconsiderar negócios jurídicos. Busca-se demonstrar que o respeito às fronteiras entre elisão e simulação é essencial para garantir a segurança jurídica, a legalidade tributária e a preservação da autonomia privada do contribuinte.
2. A liberdade econômica como direito fundamental
A Constituição Federal de 1988 estruturou a ordem econômica brasileira sobre os pilares da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano. A livre iniciativa expressa a possibilidade de os indivíduos organizarem seus negócios, patrimônio e atividades econômicas segundo sua vontade, dentro dos limites legais. Trata-se de manifestação da autonomia privada, que, no campo tributário, garante ao contribuinte a escolha pela via menos onerosa entre alternativas previstas em lei.
O direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF) e a livre concorrência (art. 170, IV, CF) reforçam a ideia de que a tributação não pode ser instrumento de restrição arbitrária à liberdade econômica. Como assinala Ricardo Lobo Torres, a liberdade no campo econômico é indissociável da noção de justiça fiscal, devendo o Estado respeitar as escolhas lícitas dos particulares (TORRES, 2018).
A lei 13.874/19, conhecida como lei da liberdade econômica, representou um marco na consolidação do princípio da intervenção mínima do Estado. Entre suas inovações, destacam-se as alterações no CC que permitiram às partes estabelecer previamente critérios de interpretação de negócios jurídicos (art. 113, §2º, CC); reforçar a regra da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual (art. 421, CC); e, estabelecer a presunção de paridade entre contratantes e a liberdade de alocação de riscos (art. 421-A, CC).
Essas alterações tiveram impacto direto no campo tributário, pois reforçam a ideia de que a organização patrimonial do contribuinte deve ser respeitada, salvo prova de fraude ou simulação. Como observa Marco Aurélio Greco, a lei da liberdade econômica reforça a “esfera de autonomia do contribuinte para organizar seus negócios da forma mais eficiente, sem que isso possa ser confundido com abuso ou ilícito” (GRECO, 2018).
No âmbito jurisprudencial, o STF, ao reconhecer a constitucionalidade do art. 116, parágrafo único, do CTN (ADI 2446/DF), deixou claro que a liberdade de organização patrimonial não pode ser suprimida, cabendo ao Fisco atuar apenas diante de atos dissimulados. Essa delimitação dialoga diretamente com os valores introduzidos pela Lei da Liberdade Econômica.
3. Elisão e simulação: distinções conceituais e jurídicas
A elisão fiscal é compreendida como a utilização legítima de meios jurídicos disponíveis para reduzir ou postergar a carga tributária antes da ocorrência do fato gerador. Trata-se do exercício da liberdade de conformação do contribuinte, expressão do princípio da legalidade e reforçado pela Lei da Liberdade Econômica.
A simulação, por sua vez, prevista no art. 167 do CC, ocorre quando as partes criam aparência de negócio jurídico com intenção de ocultar a realidade. No plano tributário, a simulação constitui fundamento para desconsideração pelo Fisco, na forma do art. 116, parágrafo único, do CTN, e gera nulidade absoluta.
A simulação, portanto, difere profundamente da elisão fiscal. Enquanto a primeira cria aparência enganosa e ilícita, a segunda utiliza meios legítimos previstos em lei para reduzir a carga tributária. Entender tais distinções é fundamental para definir os limites do Fisco na sua intervenção em organizações patrimoniais, como a holding familiar no modelo de 3 células.
4. A holding familiar no modelo de 3 células
Dentre as diversas formas de implementação de uma holding familiar, tem-se o modelo de 3 células. Trata-se de um sistema avançado de planejamento patrimonial que cumpre vários objetivos estratégicos, tais como: organização e governança do patrimônio, permitindo a construção de uma estrutura sólida intergeracional; segregação de riscos da atividade econômica; planejamento sucessório eficaz, protegendo a família dos riscos do inventário; controle sobre a forma de incidência de tributos, aproveitando regimes previsos em lei, sem fraudes; e, proteção patrimonial.
A economia tributária é, de fato, um benefício natural do modelo, mas não se trata do seu único propósito - nem do principal. O cerne do sistema está na organização, proteção e continuidade do patrimônio familiar.
Infelizmente, o que se tem visto no âmbito do planejamento patrimonial é uma desinformação crescente nas mídias sociais que ultrapassa a legítima defesa de teses jurídicas e adentra em ações antiéticas orquestradas com intuitos escusos. Como consequência, temos ações isoladas de alguns auditores fiscais que buscam desconstituir a legitimidade do sistema de holding familiar no modelo de 3 células. É o que aconteceu, recentemente, no Rio Grande do Sul onde, alguns contribuintes foram notificados em processo de autorregularização, sob a alegação de que as operações realizadas poderiam mascarar doações e reduzir artificialmente o ITCMD. Esse movimento mostra que o Fisco tende a presumir abuso quando não enxerga propósito negocial.
Contudo, o STJ, no REsp 1.927.496/SP, reforçou que a simulação não se presume e deve ser comprovada com prova robusta. No mesmo sentido, o STF, na ADIn 2.446/DF, deixou claro que apenas negócios dissimulados podem ser desconsiderados pelo Fisco e resguardou o direito do contribuinte de organizar seus negócios de forma a reduzir, postergar ou evitar tributos, desde que, dentro da lei.
E aqui é importante ressaltar que, a holding familiar no modelo de três células possui finalidade negocial clara, substância econômica real e múltiplas funções sucessórias, patrimoniais e de governança, o que afasta a incidência do art. 167 do CC e do art. 116, parágrafo único, do CTN.
Assim, a holding no modelo de três células não configura simulação e sim elisão fiscal, isto é, representa forma lícita de organização patrimonial, garantida pelo princípio da autonomia privada e pela lei da liberdade econômica (lei 13.874/19), que consagrou a intervenção mínima do Estado e a liberdade de estruturação negocial.
5. Conclusão
A holding familiar no modelo de três células revela-se um instrumento avançado de planejamento patrimonial, cujos propósitos vão muito além da economia fiscal. Trata-se de sistema que promove governança, continuidade intergeracional, segregação de riscos e proteção patrimonial, configurando exercício legítimo da autonomia privada assegurada pela Constituição e reforçada pela Lei da Liberdade Econômica.
A jurisprudência do STF (ADIn 2.446/DF) e do STJ (REsp 1.927.496/SP) reforça que apenas negócios dissimulados podem ser desconsiderados pelo Fisco e desde que haja prova robusta. Assim, a tentativa de equiparar a holding no modelo de três células a prática simulada sem a devida comprovação, afronta os princípios da legalidade, da segurança jurídica e do devido processo. Conclui-se, portanto, que o modelo de três células representa legítima forma de elisão fiscal e de organização patrimonial, cabendo ao Fisco respeitar os limites constitucionais de sua atuação.
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