A regulação que nasceu para proteger o consumidor e estimular a competição no mercado de medicamentos pode estar produzindo o efeito inverso. As multas milionárias aplicadas pela CMED nos últimos anos - e que agora tem chegado à fase cobrança, muitas vezes fruto de meros erros formais ou cadastros equivocados, têm sufocado empresas idôneas e desestimulado a entrada de novos concorrentes. Em vez de promover um ambiente saudável de disputa de preços e maior acesso da população a tratamentos, o sistema acaba eliminando players do setor ou empurrando-os para outros negócios menos arriscados. O resultado é um paradoxo que ameaça a concorrência e fragiliza justamente o mercado que deveria ser fortalecido.
O controle de preços de medicamentos no Brasil é exercido pela CMED - Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, criada pela lei 10.742/03, com o objetivo de equilibrar o acesso da população a medicamentos essenciais, sem comprometer a sustentabilidade do setor farmacêutico. A ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como integrante da CMED e no papel de Secretaria Executiva do órgão, atua fiscalizando o cumprimento das regras de precificação, sendo responsável, inclusive, pela aplicação de penalidades administrativas em caso de descumprimento.
A lei 10.742/03, que criou a CMED, é enxuta, com apenas dez artigos com conteúdo normativo efetivo e destinado ao mercado de medicamentos. No que diz respeito a sanções, a lei 10.742/03 simplesmente importa, por referência, o regime sancionatório do CDC e, com isso, o teto de multas nele previsto de 3 milhões de UFIR, algo que hoje se aproxima de R$ 15.000.000,00.
Com a edição da resolução 2/18 da CMED o órgão detalhou seu sistema sancionador a partir das bases definidas pelo CDC, onde foram tipificadas infrações por comercialização de medicamentos acima do teto estabelecido pela chamada Tabela CMED, bem como infrações pela chamada “mera oferta” de medicamentos. Nos últimos cinco anos, o mercado farmacêutico deparou-se com um aumento exponencial no número de infrações impostas pela ANVISA em especial aquelas aplicadas pela chamada “mera oferta” de medicamentos com preços acima do teto estabelecido pela CMED aplicadas às distribuidoras que fornecem ao SUS nos mais diversos rincões do país.
Todavia, tem-se observado que a atuação sancionatória da ANVISA, ao impor multas por suposto descumprimento dos preços fixados na tabela CMED, em muitos casos tem se distanciado dos princípios constitucionais e administrativos da razoabilidade e da proporcionalidade, acarretando insegurança jurídica aos agentes econômicos do setor. Na prática, as penalidades impostas em razão das supostas infrações, tem alcançado valores exorbitantes, capazes de inviabilizar a continuidade da atividade econômica da empresa autuada.
As sanções impostas pela ANVISA, principalmente no caso de mera oferta com valor acima do teto estabelecido, alcançam valores extremamente elevados, desproporcionais, mesmo naquelas situações que não houve nenhum dano ao consumidor, ao erário público e que o autuado não comercializou nenhuma unidade daquele medicamento ou ainda auferiu qualquer proveito econômico a partir daquela oferta.
Vale observar que na maior parte dos casos as empresas foram autuadas pelo fato de fazerem cadastramento de preços para acessarem os portais de licitação pública com preços acima daquele estabelecido pela Tabela CMED, sem que houvesse uma formalização de oferta propriamente dita. Ainda, em diversos casos o cadastramento do preço foi efetuado de maneira equivocada, ou por erro de digitação, uma vez que os portais de licitação pública não possuem nenhuma barreira que impeça digitação de preços superiores ao estabelecido pela CMED.
Imperioso ressaltar que nestes casos as penalidades estão sendo aplicadas sem ser levado em consideração a natureza culposa ou dolosa da conduta da empresa, bem como a análise da boa-fé da autuada. A título de exemplificação, caso uma empresa, por um erro de digitação, cadastre um medicamento em determinado certame, com um preço de R$ 100,00 quando deveria ter cadastrado por R$ 10,00, e que a quantidade estimada de aquisição será de 100.000 unidades, o valor da multa será aplicado a partir da multiplicação da diferença do valor que extrapolou o teto da CMED com a quantidade estimada de aquisição.
Neste exemplo hipotético, a empresa que efetuou equivocadamente esse cadastro, seria autuada com um valor base de R$ 9.000.000,00. Esse valor poderá ser até dobrado na análise de agravantes (que considera, por exemplo, a reincidência), podendo alcançar, neste exemplo, o valor máximo previsto de quase R$ 15.000.000,00 - teto que vale para cada infração.
Esse desenho sancionador destoa frontalmente do regime previsto na lei 6.437/1977, que regula infrações sanitárias. Enquanto esta prevê multas que variam de R$ 2.000,00 a R$ 1,5 milhão para infrações leves, graves e gravíssimas - estas últimas relacionadas, por exemplo, a óbitos de pacientes ou danos diretos à saúde coletiva - o regime da CMED admite penalidades até dez vezes maiores para condutas que, em muitos casos, sequer representam lesão potencial ao consumidor. Na saúde suplementar, a lei 9.656/1998 prevê multas de até R$ 1 milhão infrações às regras definidas pela ANS. Trata-se de condutas que afetam diretamente a vida e a saúde dos pacientes, e mesmo assim os valores se mantêm dentro de uma lógica de proporcionalidade.
A análise desses paralelos no campo da saúde demonstra uma evidente inversão de prioridades: o ordenamento pune mais severamente o erro formal de preço do que a infração que coloca em risco a saúde pública ou a vida de pacientes. É bastante evidente que a resolução 2/18 da CMED, neste aspecto, não faz o menor sentido, do ponto de vista jurídico. É dizer, não fazer sentido jurídico significa contrariar, por absoluta desproporcionalidade, a legislação (em especial lei de processo administrativo federal e a LINDB) e a Constituição.
Diante do cenário crítico de multas milionárias aplicadas pela CMED, o mercado tem se movimentado na busca por soluções. A ABFMED - Associação Brasileira de Fornecedores de Medicamentos, por exemplo, ajuizou ações coletivas perante a Justiça Federal do Espírito Santo. O objetivo é proteger suas associadas das distorções criadas pela atual interpretação da resolução CMED 2/18 e da omissão regulatória da própria Câmara.
Em uma das demandas, a ABFMED pleiteia que a Justiça obrigue a CMED a regulamentar o art. 6º, V, da lei 10.742/03, de forma a estabelecer critérios específicos de margens de comercialização para distribuidoras de medicamentos. A ausência dessa regulamentação tem levado a que fabricantes e distribuidores sejam submetidos ao mesmo teto de preços, inviabilizando a atividade do atacado e gerando autuações injustas em situações excepcionais, como as verificadas durante a pandemia de covid-19.
Em outra ação, a entidade busca afastar os efeitos dos dispositivos da resolução CMED 2/18 que tipificam como infração a chamada “mera oferta” acima do teto de preços. A ABFMED demonstra que multas milionárias vêm sendo aplicadas mesmo quando há apenas erro de cadastramento em sistemas eletrônicos de pregão, sem que tenha ocorrido adjudicação, contratação ou qualquer prejuízo ao erário. O pedido é para que tais situações sejam reconhecidas como de irrelevância prática e não resultem em penalidades desproporcionais.
Essas iniciativas judiciais evidenciam não apenas a gravidade do problema enfrentado pelas distribuidoras, mas também a necessidade urgente de revisão do regime sancionador da CMED. Ao recorrer ao Judiciário, a ABFMED pretende não apenas defender seus associados, mas também resguardar o funcionamento regular da cadeia de abastecimento farmacêutico nacional.
Para além de teses que demonstram de forma específicas as irregularidades do sistema sancionatório estabelecido pela CMED, a base do problema está em que as multas definidas pela resolução 2/18 da CMED não são calculadas a partir do alegado “sobrepreço” ou valor que exorbita do teto, considerando, por exemplo, um percentual predefinido, 10%, 20% ou qualquer outro. A multa é o próprio montante do alegado “sobrepreço”, mesmo no caso em que a venda não se concretiza. Ou seja, mesmo que a empresa não tenha auferido qualquer lucro; mesmo que o SUS não tenha dispendido nenhum centavo; a multa corresponderá ao montante total do alegado “sobrepreço”. Junte-se a isso que o preenchimento de valores e lances nos pregões eletrônicos são feitos de forma manual (portanto passível de erro humano) e os quantitativos licitados muitas vezes são vultosos: temos a receita perfeita para uma enxurrada de multas milionárias.
Esse quadro tem consequências diretas sobre a concorrência. Grandes indústrias farmacêuticas, com maior fôlego financeiro, conseguem absorver riscos ou negociar termos em processos administrativos. Já empresas de médio porte, nacionais e regionais, em especial as distribuidoras de medicamentos que garantem a capilaridade da cadeia de fornecimento no país, ampliando a diversidade e a competitividade do setor, acabam expulsas do mercado ou desestimuladas a disputar licitações públicas, justamente o canal de acesso do Estado a medicamentos essenciais. Afinal, essas multas, muitas vezes impagáveis, são inscritas no CADIN e com isso esse player está imediatamente eliminado do mercado público. O resultado é um cenário de incerteza regulatória que pode até mesmo comprometer o abastecimento do SUS - Sistema Único de Saúde.
O paradoxo é evidente: um sistema criado para ampliar o acesso e garantir preços justos ao consumidor se converteu em barreira à entrada de concorrentes e em fator de concentração de mercado. Se o objetivo da lei 10.742/03 foi compatibilizar sustentabilidade da indústria com a proteção do consumidor, a prática sancionatória atual se afasta dessa diretriz e ameaça desorganizar o ecossistema do Complexo Econômico-Industrial da Saúde.
É urgente repensar esse modelo. Não se trata de abolir o controle de preços ou a fiscalização, mas de calibrar o regime sancionador para que volte a cumprir sua finalidade: proteger o consumidor e o SUS sem inviabilizar a atividade econômica de agentes que, em sua maioria, agem de boa-fé. Uma saída pode estar na adoção de critérios objetivos de dosimetria de multas que considerem a existência de dolo, a ocorrência de dano efetivo, a boa-fé do agente e a gravidade concreta da infração, com tetos por infração que sejam minimamente razoáveis - como existe na legislação que trata de infrações sanitárias. Outra medida seria a modernização dos próprios sistemas eletrônicos de compras públicas, evitando que erros de digitação se transformem em penalidades milionárias.
Somente com ajustes normativos e interpretativos que tragam equilíbrio entre repressão e estímulo à concorrência será possível resgatar o espírito original da regulação: assegurar o acesso da população a medicamentos essenciais sem sufocar a diversidade e a sustentabilidade do setor farmacêutico.