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Há um sistema de prescrição intercorrente no processo executivo fiscal?

A prescrição intercorrente se consolida como mecanismo de controle na execução fiscal, equilibrando arrecadação, eficiência e segurança jurídica.

12/9/2025

A execução fiscal é, há anos, o elefante na sala do Judiciário brasileiro. Sozinha, responde por quase um terço dos processos pendentes, com uma taxa de congestionamento alarmante de 87,8% e tempo médio de tramitação de quase sete anos, segundo o relatório Justiça em Números de 20241. O volume é tamanho que o final inevitável dessa espécie de processo em muitas vezes é a prescrição intercorrente, tema de essencial importância e já tão discutida nos tribunais, ordinários e superiores, nos parecendo que já existe um verdadeiro microssistema normativo-jurisprudencial de extinção processual, cuja consolidação se dá não apenas pela letra da lei de execução Fiscal, mas pela sedimentação de entendimentos vinculantes firmados pelo STJ, principalmente nos Temas 566 a 571.

Diante isso, faz-se necessário investigar: há um sistema de prescrição intercorrente formado no nosso ordenamento jurídico? A presente inquietação nos surgiu na leitura do voto do ministro do STJ, relator do recurso REsp 1.340.553/RS que mencionou a existência de um “sistema”. Vejamos:

Na construção do sistema, o referido prazo foi segmentado em duas partes. A primeira parte tem por termo inicial a falta de localização de devedores ou bens penhoráveis (art. 40, caput, da LEF) e por termo final o prazo de 1 (um) ano dessa data (art. 40, §§1º e 2º, da LEF). Durante essa primeira parte, a execução fiscal fica suspensa com vista dos autos aberta ao representante judicial da Fazenda Pública (art. 40, §1º, da LEF). Já a segunda parte tem por termo inicial o fim da primeira parte, isto é, o fim do prazo de 1 (um) ano da data da frustração na localização de devedores ou bens penhoráveis (art. 40, §2º, da LEF), e por termo final o prazo prescricional próprio do crédito fiscal em cobrança (quinquenal, no caso dos créditos tributários - art. 174, do CTN), consoante o art. 40, §4º, da LEF. Nessa segunda parte, a execução fiscal fica arquivada no Poder Judiciário, sem baixa na distribuição. Desse modo, se o crédito fiscal em cobrança for crédito tributário tem-se um prazo de 6(seis) anos contados da constatação da falta de localização de devedores ou bens penhoráveis (art. 40, caput, da LEF) para que a Fazenda Pública encontre o devedor ou os referidos bens. Dentro desse prazo é que pode pedir as providências genéricas como a citação por edital e a penhora via BACEN-JUD, não havendo qualquer incompatibilidade.”

A natureza da prescrição intercorrente é, por si, singular. Diferente da prescrição ordinária, que incide sobre o direito de ação antes do ajuizamento, a intercorrente se dá no interior do processo já em curso, como resposta à inércia do exequente. Trata-se, portanto, de instituto de natureza híbrida - material quanto aos efeitos (extinção do crédito tributário), mas eminentemente processual na mecânica de aplicação. Embora a lei 6.830/1980, em seu art. 40, § 4º2, já preveja essa modalidade prescricional desde 2004, foi apenas com a consolidação de precedentes do STJ, especialmente a partir do Tema 5663, que se conferiu maior densidade normativa ao instituto.

A jurisprudência do STJ fixou parâmetros claros para a contagem do prazo da prescrição intercorrente. Segundo o entendimento firmado com a tese do Tema 566 do STJ, a ausência de citação do devedor ou a frustração na localização de bens penhoráveis enseja a suspensão do processo por um ano. Findo esse prazo, inicia-se automaticamente o quinquênio prescricional. O marco inicial, portanto, é objetivo e não depende de provocação judicial ou da Fazenda Pública. A consequência prática dessa sistematização é direta: o magistrado pode - e deve - reconhecer de ofício a prescrição, independentemente de requerimento da parte executada.

Essa mecânica foi aprofundada nos Temas 567 a 5714. Entre os pontos firmados, destaca-se a necessidade de efetividade dos atos expropriatórios para interromper a prescrição. Ou seja, não basta peticionar requerendo penhora ou citação: é preciso que o ato se concretize, com resultado útil. De igual modo, estabeleceu-se que a ausência de intimação da Fazenda Pública não suspende a contagem da prescrição, salvo na hipótese de ausência de ciência quanto ao início do prazo, caso em que o prejuízo é presumido. Essas teses, ao lado da súmula 314 do STJ5, compõem um verdadeiro arcabouço interpretativo de contornos normativos, capaz de orientar com segurança tanto a os juízes quanto os órgãos de representação da Fazenda.

Não obstante essa construção, persistem zonas de incerteza que desafiam a estabilidade do sistema. Uma delas diz respeito à atuação do Judiciário e à chamada "mora judicial". A súmula 106 do STJ6 ainda consagra a impossibilidade de imputar ao exequente a responsabilidade por atrasos causados exclusivamente pelo aparelho judicial. Contudo, o alguns entendimentos vem reforçando que é da Fazenda Pública o ônus de diligenciar pela retomada útil do processo. Em outras palavras, a inércia do exequente não pode ser camuflada pela lentidão do cartório. Esse deslocamento do polo da responsabilidade evidencia uma mudança de paradigma: a execução fiscal não pode mais ser eternizada sob o pretexto da complexidade estrutural do Judiciário. Cabe à Fazenda Pública agir de forma diligente e tempestiva, ou arcar com as consequências.

Outro ponto de tensão ainda pouco resolvido diz respeito à hipótese em que há penhora frutífera, mas sem posterior impulso expropriatório. A dúvida é se a simples constrição patrimonial, desacompanhada de leilão ou adjudicação, seria apta a suspender o curso prescricional por tempo indefinido. Há quem entenda que, uma vez penhorado o bem, o crédito estaria garantido, e portanto não haveria espaço para a prescrição intercorrente. Outros, com razão, sustentam que a inércia do credor após a penhora gera dano ao devedor - seja pelo desgaste patrimonial indireto, seja pela continuidade dos acréscimos legais - e que, portanto, deve haver contagem do prazo como forma de coibir abusos e proteger a razoável duração do processo. Essa controvérsia, ainda não resolvida de forma definitiva, evidencia a necessidade de um aprimoramento jurisprudencial capaz de completar as lacunas remanescentes do sistema.

Mesmo com essas questões ainda pendente, após muitos anos é possível afirmar, com segurança, que a prescrição intercorrente tornou-se elemento funcional da engrenagem processual tributária. A partir dos parâmetros fixados pelo STJ, delineou-se uma arquitetura normativa mínima, com regras próprias de contagem, suspensão e interrupção. Esse sistema - se ainda não é formalmente reconhecido como tal - opera na prática como um código de extinção por inércia dentro da execução fiscal. A força dessa engrenagem está justamente na sua objetividade: termos bem definidos.

Esse modelo, no entanto, impõe responsabilidade recíproca. De um lado, exige da Fazenda Pública o dever de impulsionar o processo com diligência e efetividade. De outro, cobra do Judiciário o dever de aplicar a prescrição intercorrente como técnica de filtragem de processos moribundos. Ao mesmo tempo, reforça o papel dos advogados na vigilância constante sobre execuções que se arrastam sem perspectiva de êxito, municiando-os de argumentos sólidos para requerer a extinção do feito.

A execução fiscal não é apenas uma ferramenta arrecadatória extremamente importante mas é necessário observar as garantias dos contribuintes. A consolidação de um “sistema” da prescrição intercorrente como mecanismo de controle representa um avanço na busca pelo fim da altíssima litigiosidade que termina por atrapalhar as cobranças realmente frutíferas e principalmente, por trazer segurança jurídica.

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1 Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/justica-em-numeros-2024.pdf

2 Art. 40 - O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.

§ 4o Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.

3 Tese do Tema 566 do STJ: O prazo de 1 (um) ano de suspensão do processo e do respectivo prazo prescricional previsto no art. 40, §§ 1º e 2º da Lei n. 6.830/80 - LEF tem início automaticamente na data da ciência da Fazenda Pública a respeito da não localização do devedor ou da inexistência de bens penhoráveis no endereço fornecido, havendo, sem prejuízo dessa contagem automática, o dever de o magistrado declarar ter ocorrido a suspensão da execução.

4 Tema 567. Havendo ou não petição da Fazenda Pública e havendo ou não pronunciamento judicial nesse sentido, findo o prazo de 1 (um) ano de suspensão inicia-se automaticamente o prazo prescricional aplicável.

Tema 568. A efetiva constrição patrimonial e a efetiva citação (ainda que por edital) são aptas a interromper o curso da prescrição intercorrente, não bastando para tal o mero peticionamento em juízo, requerendo, v.g., a feitura da penhora sobre ativos financeiros ou sobre outros bens.

Tema 569. Havendo ou não petição da Fazenda Pública e havendo ou não pronunciamento judicial nesse sentido, findo o prazo de 1 (um) ano de suspensão inicia-se automaticamente o prazo prescricional aplicável.

Tema 570. A Fazenda Pública, em sua primeira oportunidade de falar nos autos (art. 245 do CPC/73, correspondente ao art. 278 do CPC/2015), ao alegar nulidade pela falta de qualquer intimação dentro do procedimento do art. 40 da LEF, deverá demonstrar o prejuízo que sofreu (exceto a falta da intimação que constitui o termo inicial - 4.1., onde o prejuízo é presumido), por exemplo, deverá demonstrar a ocorrência de qualquer causa interruptiva ou suspensiva da prescrição.

Tema 571. A Fazenda Pública, em sua primeira oportunidade de falar nos autos (art. 245 do CPC/73, correspondente ao art. 278 do CPC/2015), ao alegar nulidade pela falta de qualquer intimação dentro do procedimento do art. 40 da LEF, deverá demonstrar o prejuízo que sofreu (exceto a falta da intimação que constitui o termo inicial - 4.1., onde o prejuízo é presumido), por exemplo, deverá demonstrar a ocorrência de qualquer causa interruptiva ou suspensiva da prescrição.5 Súmula 314. Em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, fi ndo o qual se inicia o prazo da prescrição qüinqüenal intercorrente.

6 Súmula 106. Proposta a ação no prazo fi xado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência.

Luciano Faria
Advogado. Sócio da João Domingos Advogados. Mestrando em Direito Tributário pelo IDP/DF. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/GO. Autor do livro Transação Tributária pela Editora RT.

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