O mercado de consumo tem a prerrogativa tanto de incluir sujeitos, quanto de excluir grupos pelos mais variados motivos. Nessa última hipótese, ele impede o acesso de determinados indivíduos a produtos e serviços em razão de origem étnicas, saúde, idade, diversidade sexual, violando direitos que esses players têm como consumidores.
A vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo é uma consequência do encontro com o fornecedor, que goza de posição negocial dominante. Assim, não se pode negar que o sistema capitalista de mercado é um fomentador contínuo dessa vulnerabilidade.
O que é ser um consumidor “normal”? Como se define que alguém pertence a um padrão standard de “normalidade”? Seria a intensidade com a qual se relaciona com o mercado e por meio dele encontra soluções ao seu desenvolvimento?
Consumidores que realizam potencialmente menos trocas com o mercado entram no rol de sujeitos “desinteressantes” ao ponto de merecerem menor atenção e cuidado?
O presente artigo busca analisar até que ponto existem “consumidores invisíveis”, sujeitos que o mercado não quer enxergar, incluir, oferecendo serviços e produtos adaptados a demandas especiais, que podem decorrer de questões etárias, patológicas, sociais, econômicas, culturais, etc. Na perspectiva do presente trabalho, não é possível uma investigação tão ampla de situações, de forma que foram escolhidos cenários específicos em que são notados esquecimentos do mercado, propositados ou não, acerca de grupos de indivíduos que deixam de atingir um status de consumidores com um mínimo de dignidade.
1. Consumidores portadores de síndrome de Down
Como apontam DIAS DE FARIAS et alli, um dos pilares do sistema capitalista reside no argumento de que, a partir do momento em que se concede ao cidadão liberdade de escolha com relação ao consumo, concede-se poder a tal sujeito, então tornado membro de uma sociedade de consumo.1
Para vários sujeitos, o mercado se torna algo inalcançável. São indivíduos que têm que lutar por um lugar ao sol, pelo direito de se comunicar com o mercado.
Indivíduos com Síndrome de Down, por exemplo, diante do caos na mobilidade urbana em países como o Brasil, têm tolhida sua autonomia como consumidores, não logrando alcançar locais de consumo por si próprios. São cidadãos cujo espaço de consumo, muitas vezes, é o ambiente da residência.
No que tange a transporte público, a realidade vai apontar a pessoas não treinadas para receber os sujeitos Down, não bastassem os problemas de acessibilidade dos logradouros públicos, com calçadas esburacadas, ausência de sinalização, etc.
São pessoas que têm dificuldades de chegar aos locais de compra, e parece não ser uma fatia com a qual o mercado se importa. A impressão é que o indivíduo não tem sua presença desejada no local. Da mesma forma, em razão das deficiências cognitivas que podem afetar o Down, o mesmo pode ser vitimado por vendedores que dele tentarão retirar vantagens.
Pessoas com deficiência mental, muitas vezes, são estigmatizadas por familiares, na vizinhança, num colégio, etc. É como viver uma invisibilidade social, uma quase obrigação de se esconder, diante do medo da indiferença, do desprezo, da repulsa. Há o peso de não se conseguir chegar sequer próximo a um padrão de beleza, em razão de características anatômicas, ou padrão de “normalidade” cognitiva.
Existem barreiras atitudinais que tornam esses indivíduos invisíveis.2 Por exemplo, um vendedor, ao invés de se dirigir ao sujeito Down, dirige-se ao seu familiar, crendo que aquele não terá condições de compreender o ato de consumo.
Como apontam RIBEIRO DE OLIVEIRA, et alli, o consumidor é um sujeito que busca respostas em suas identidades comportamentais, identificadas em determinadas fases de sua vida fragmentada. A identidade social influencia de forma direta o consumo entre os membros do grupo, tentando evitar o stress.
A invisibilidade no mercado, por esses motivos, não significa ser apenas objeto de esquecimento, não ser lembrado na hora de uma oferta. Representa também ser esquecido no pós-venda, quando o sujeito se vê sozinho diante do produto-serviço essencial. Quando o fornecedor não se recorda que um dado grupo poderia estar mais vulnerável diante das fragilidades naturais do sistema que ele próprio criou, ele acaba por abandonar o sujeito, alijando ele do mercado.
2. Consumidores afrodescendentes
Ser um invisível social é ser tratado como um sujeito sem reconhecimento, um excluído, um insignificante. Na situação do negro brasileiro, há um estigma secular que o ancora a um passado nem tão longínquo que um dia tratara esse sujeito como mercadoria. Uma pessoa estigmatizada carrega marcas sociais consideradas vistas como um sinal de defeito, fraqueza ou desvantagem.3
O Brasil propiciou uma espécie de “filme de terror” de duração de trezentos anos à comunidade africana que teve seus membros originários arrancados à força da terra natal para servirem como escravos nas terras daqui, assim como sua descendência. Na medida em que foram libertos com a lei Áurea, os ex-escravos eram pessoas miseráveis, não tinham nada, patrimônio, dinheiro, educação, pois até então, eram coisas, eram objetos de consumo. Há pouco mais de cem anos, tenta-se exorcizar esse passado, com medidas de inclusão, com punições, inclusive criminal, de atos que representem racismo, entre várias medidas.
Mas o que se observa é que há vários espaços em que essa filosofia integrativa não é lembrada pelo mercado, por que este não observa interesse econômico em consumidores afrodescendentes, e aí a sua invisibilidade.
Nas campanhas de marketing e publicitárias, ainda é predominante a mensagem do produto ao “público branco”, o que dificulta ao afrodescendente no Brasil construir sua identidade a partir de um consumo próprio. Mas existem as experiências negativas drásticas, quando, por racismo, sujeitos negros são tratados como autores de furtos em lojas e mercados, e somente por conta da cor. Exemplos de situações vexaminosas dessa natureza são diários. Entre o negro e o branco, no Brasil, a tendência é sempre observar o primeiro como o praticante do crime. Há um racismo estrutural que também é absorvido pelo mercado, e que constrange o consumidor afrodescendente, talvez até levando o mesmo a não ingressar em certo estabelecimento para não ser confundido com ladrão, ou com alguém muito pobre, sem condições de comprar algo. Indiretamente, existe uma mensagem do tipo, “isto aqui não é para você”. E isso torna a pessoa invisível. E isso tem que ser mudado.
3. Consumidores idosos e a exclusão digital
A vida contemporânea é o digital. Bancos, boletos, contatos, pagamentos, pix, redes sociais, etc. Para quem não é nativo digital, como é o caso dos maiores de sessenta anos, no Brasil, transitar nesse ecossistema é uma aventura de risco. Até mesmo aos que nasceram sob a égide do digital, ou aos que se adaptaram, existem milhares de riscos que advém de ligações suspeitas, mensagens no WhatsApp e links de golpistas. Para os não convertidos ao mundo da internet, com pouco ou raro contato com essa tecnologia, verdadeiros analfabetos digitais, estes se tornam alvos ainda mais fáceis a fraudes financeiras de toda a natureza. Como diz BOTELHO DE LIMA, “A combinação entre desconhecimento tecnológico, vulnerabilidade emocional e ausência de suporte contribui para que o golpe seja quase sempre certeiro - e, muitas vezes, silencioso”.4
Há uma exclusão digital, decorrente da ausência estatal em tentar suprir essa lacuna de conhecimento, assim como o mercado, e que vai além da dificuldade de mexer em um aparelho de celular ou navegar por um site. Onde não se sabe operar com ferramentas digitais, os sujeitos se tornam alvos fáceis de mensagens falsas, links maliciosos e aplicativos que simulam bancos ou empresas conhecidas. E o custo dessa invisibilidade pode ser terrível, isto é, todas as economias de uma vida de um idoso serem absorvidas pela ação de fraudadores.
Participar do mercado é um direito humano, diz respeito à vida, e à dignidade da pessoa humana. No Brasil, à luz do art. 5ª, inciso XXXII, da CF/88, ser protegido como consumidor é um direito fundamental de qualquer indivíduo. Para tanto, o permissivo estatal de funcionamento de um mundo digital tão expandido não pode se tornar na geração de um mundo inóspito e excludente aos idosos, como se está a observar.
4. Consumidores LGBTQIAP+
Infelizmente, ainda são muito presentes as várias formas de preconceito contra os indivíduos da comunidade LGBTQIAP+, que acabam sofrendo represálias de todos os tipos em face de diversidade sexual.
Em 2023, a 13ª Câmara Cível do TJ/MG, por exemplo, condenara proprietária de salão de beleza que se recusara a atender mulher transexual.5
Foi mantida indenização de 10 mil reais, por danos morais, em razão da negativa, em face da atitude preconceituosa. Em junho de 2018, a consumidora havia ido ao referido em busca de serviços de manicure. A recepcionista do estabelecimento informou que não poderia realizar o atendimento, pois ali só eram atendidas mulheres. Foi chamada a dona do salão, que tratou a consumidora de forma ríspida e chegou ao ponto de colocá-la para fora, dizendo que ali eram recebidas as "mulheres de verdade". Ou seja, um cabedal de humilhações infringidas a uma consumidora diante de sua diversidade sexual, uma espécie de condenação moral pela escolha sexual e de gênero.
Inclusive, cabe destacar que, no âmbito do julgamento do mandado de injunção 4.733, O STF reputou que a lei do racismo incluiu em seu rol de condutas criminosas, sendo punidas a partir de então qualquer discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero (criminalização da homofobia).
Do que se observa, portanto, há vários grupos oprimidos pelo mercado, onde a falta de conscientização é marcante do sentido de não optar pela inclusão dessas pessoas. Seja porque seria necessário um investimento inicial a maior para receber essas pessoas, seja diante de preconceitos que levam à rejeição de sujeitos em face de suas orientações sexuais, suas origens étnicas, religiosas, etc.
O mercado é o lugar onde tanto se busca o aparato de subsistência do indivíduo, da comida, ao medicamento, quanto o seu desenvolvimento, a evolução de sua personalidade. Há que se garantir a todos a participação no mercado contra esquecimentos propositados ou não. Incluir é amadurecer. E o direito do consumidor é um mecanismo garantidor dessa presença do consumidor nos espaços gerados pelo mercado, uma ferramenta anti-preconceitos.
_________________
1 DIAS DE FARIA, Mariana; CASOTTI, Leticia; LUIS CARVALHO, José. Vulnerabilidade e invisibilidade: um estudo com consumidores com síndrome de down. Gestão & Regionalidade. São Caetano do Sul, vol. 34 - nº100 - jan-abr/2018. p.207.
2 DIAS DE FARIA, op. cit., p.213.
3 COELHO ROCHA, Ana Raquel; MOREIRA CASOTTI, Leticia. Reflexões sobre o consumidor negro brasileiro. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, vol. 11, n. 2, abril-junho, 2017, pp. 47-62. Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro, Brasil.
4 BOTELHO DE LIMA, Ana Cláudia. Golpes virtuais se multiplicam entre idosos e expõem impacto da exclusão digital. Vide: https://jornalismo.iesb.br/destaque1/golpes-virtuais-se-multiplicam-entre-idosos-e-expoem-impacto-da-exclusao-digital/ Acesso em 05.09.25.
5 Vide: https://www.migalhas.com.br/quentes/389222/tj-mg-condena-dona-de-salao-por-se-recusar-a-atender-mulher-trans.Acesso em: 08.07.25.