A 17ª Câmara Cível do TJ/MG, no julgamento do agravo de instrumento 1.7244.8073.2025.8.13.0000, decidiu que as sanções previstas no art. 104, §2º, do CDC não se aplicam no âmbito pré-processual, quando a audiência ocorre no CEJUSC. Segundo a ementa, “a audiência realizada em sede de reclamação pré-processual não impõe obrigação de comparecimento nem sanção ao credor ausente, razão pela qual não supre a exigência legal da audiência judicial” (TJ/MG, AI 1.7244.8073.2025.8.13.0000, 17ª Câmara Cível, relator desembargador Evandro Lopes da Costa Teixeira, j. 10/9/25).
Esse entendimento é equivocado e esvazia a lógica da lei 14.181/21. O legislador estruturou três modalidades de tratamento do superendividamento: o extraprocessual, nos Procons; o pré-processual, nos CEJUSCs; e o processual, perante o Judiciário. Cada uma tem sua função própria, sendo o pré-processual a principal via de solução, exatamente porque deveria unir a celeridade dos meios autocompositivos com a autoridade judicial, conferindo às audiências força coercitiva.
Foi nesse ponto que a Comissão de Juristas inovou. Na justificativa do anteprojeto entregue ao Senado, ressaltou-se que as sanções do art. 104, §2º, - suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora - foram criadas para superar a cultura de descumprimento das audiências extrajudiciais, especialmente nos Procons. A intenção era evitar que o CEJUSC fosse reduzido a um “Procon judicializado”, sem eficácia.
O acórdão da 17ª Câmara Cível, porém, desprezou essa finalidade. Ao negar a aplicação das sanções no pré-processual, a decisão transmite aos credores a mensagem de que basta não comparecer à audiência para impedir a conciliação, sem qualquer consequência. Isso mina a efetividade da lei, frustra a tentativa obrigatória de conciliação e empurra o consumidor diretamente ao processo judicial, em contradição com o propósito de desafogar o Judiciário.
A hermenêutica teleológica do CDC exige leitura protetiva e socialmente responsável. O art. 4º reconhece a vulnerabilidade do consumidor, o art. 6º assegura a prevenção de danos e o art. 104-A coloca a audiência de conciliação como eixo central da repactuação. Ignorar o §2º nesse contexto é negar vigência a uma lei que busca devolver dignidade a mais de 30% da população brasileira endividada, ao mesmo tempo em que regula o crédito com base no princípio da concessão responsável.
É grave que, quatro anos após a vigência da lei do superendividamento, um tribunal da relevância do TJ/MG ainda profira decisões que revelam desconhecimento da sistemática legal. A corte mineira, historicamente reconhecida por julgados de vanguarda, não pode permitir que a 17ª Câmara Cível fragilize um dos instrumentos mais importantes do direito do consumidor nos últimos 30 anos.
O STJ terá a oportunidade de corrigir esse equívoco e reafirmar que as sanções do art. 104, §2º, também se aplicam às audiências pré-processuais. A eficácia da lei depende disso. Do contrário, corre-se o risco de neutralizar justamente o que a lei 14.181/21 trouxe de mais inovador: um sistema capaz de promover a conciliação efetiva e de responsabilizar os credores que insistem em desrespeitar a boa-fé e a dignidade do consumidor.