Introdução
O sistema de justiça brasileiro convive, há anos, com um gargalo estrutural nas execuções fiscais. O Relatório Justiça em Números 2024 evidencia que elas representam 31% de todos os casos pendentes, com uma alarmante taxa de congestionamento de 87,8% e um tempo médio de 7 anos e 9 meses para a baixa dos processos (CNJ, 2024). Este quadro, insustentável do ponto de vista da eficiência pública e da razoável duração do processo, justifica e demanda intervenções de desjudicialização responsável.
Paralelamente a esse desafio, consolidou-se no país uma prova de conceito extrajudicial de notável sucesso: a cobrança de créditos públicos realizada pelos tabeliães de protesto. Por meio de um fluxo que, atualmente envolve, a SNP - Solução Negocial Prévia, o protesto propriamente dito e a possibilidade de renegociação pós protesto, o foro extrajudicial tem recuperado valores significativos sem ônus ao erário e em prazos drasticamente inferiores aos do processo judicial.
Este arranjo institucional ganhou robustez com um novo e coeso marco normativo. O provimento CNJ 168/24 disciplinou a SNP - Solução Negocial Prévia e a renegociação pós-protesto via plataforma eletrônica (CENPROT), garantindo o repasse dos valores pagos ao ente público em D+1. Na mesma linha, a resolução CNJ 547/24 reorganizou o fluxo judicial, estabelecendo o protesto como condição de procedibilidade para o ajuizamento da execução fiscal, ressalvadas hipóteses de ineficiência administrativa (CNJ, 2024a; 2024b). O ápice dessa evolução veio com a LC 208/24, que alterou o CTN para prever, de forma inequívoca, o protesto extrajudicial como causa de interrupção da prescrição tributária - uma mudança estruturante para a gestão da dívida ativa (BRASIL, 2024c).
Nesse diapasão, sustenta-se a tese de que a arquitetura ideal para a cobrança fiscal no Brasil deve operar em dois níveis complementares: (i) a cobrança extrajudicial pelo tabelião (SNP + protesto + renegociação) deve ser a via preferencial para créditos de qualquer valor, funcionando como uma política pública padrão de adimplemento voluntário; e (ii) a EFE - Execução Fiscal Extrajudicial, conforme desenhada no PL 2.488/22, deve se restringir às dívidas de pequeno valor (< 60 salários-mínimos), fechando o ciclo de baixa complexidade fora do Judiciário. A recente alteração do CTN pela LC 208/24 serve como pilar de sustentação para todo esse arranjo.
A distinção fundamental: Cobrança extrajudicial vs. Execução extrajudicial
É imperativo diferenciar conceitualmente os institutos. A cobrança extrajudicial via tabelionato não é "execução" em sentido técnico. Trata-se de uma porta negocial e de publicidade da mora que visa ao adimplemento voluntário, podendo ser aplicada a créditos de qualquer montante, antes ou mesmo depois da judicialização. A EFE - Execução Fiscal Extrajudicial proposta no PL 2.488/22, por outro lado, é um procedimento executivo propriamente dito, com atos de constrição patrimonial, mas desenhado exclusivamente para dívidas de pequeno valor definido no PL como menor que 60 salários-mínimos.
A cobrança extrajudicial já demonstrou sua efetividade. O serviço é gratuito para o Poder Público, com os emolumentos arcados pelo devedor SE e QUANDO houver o pagamento da dívida ou o cancelamento do protesto. Apresenta uma taxa de solução superior a 60% em até três dias úteis (ANOREG/IEPTB, 2024). A resolução CNJ 547/24, ao exigir o protesto prévio, reconhece essa eficiência e busca racionalizar a máquina judiciária, que não deve ser acionada antes de esgotadas as vias mais céleres e menos onerosas, demonstrando-se o interesse de agir para a ação de execução fiscal judicial.
Nesse contexto, a LC 208/24 confere a segurança jurídica que faltava. Ao interromper a prescrição, o protesto extrajudicial deixa de ser apenas uma ferramenta de cobrança para se tornar um ato de preservação do crédito público, transformando-se em uma barreira eficaz contra a dissipação do ativo por decurso de prazo.
O PL 2.488/22 e o ciclo da Execução de Pequeno Valor
O PL 2.488/22 (substitutivo de 12/6/2024) avança ao propor a EFE - Execução Fiscal Extrajudicial para dívidas inferiores a 60 salários-mínimos. O projeto demonstra maturidade institucional ao prever uma plataforma eletrônica nacional, custeada pelos próprios tabeliães, e ao alinhar incentivos: os emolumentos só são devidos após o recebimento do crédito, além disso, garantindo neutralidade orçamentária ao ente público (BRASIL, 2024b).
O texto também prevê a dispensa do ajuizamento para valores ínfimos e faculta ao ente federativo dispensar a própria EFE abaixo de um piso mínimo, evitando que a máquina extrajudicial seja mobilizada para créditos antieconômicos. Esse desenho fecha o ciclo da baixa complexidade fora do Judiciário, reservando a este as execuções de maior valor e complexidade jurídica.
Essa tendência de desjudicialização encontra paralelo na execução civil, com o PL 6.204/19, que propõe atribuir aos tabeliães de protesto a função de "agente de execução", sob controle do Judiciário. É a convergência para um modelo em que o juiz se concentra em demandas de maior complexidade e o foro extrajudicial absorve as questões menos complexas ou que requeiram atos de execução, mas tudo sob a fiscalização do magistrado, como ocorre no foro extrajudicial que é regulado, normatizado, fiscalizado e sancionado pelo poder judiciário (BRASIL, 2019-2025).
Objeções e respostas racionais
As propostas de extrajudicialização frequentemente enfrentam objeções que merecem ser endereçadas. A primeira, de que o cartório "cria um custo adicional", é refutada pelo próprio modelo: na cobrança extrajudicial, o ônus recai sobre o devedor que paga a dívida, e na EFE proposta, os emolumentos só são devidos após o êxito, não havendo adiantamento de verbas públicas (ANOREG/IEPTB, 2024; BRASIL, 2024b).
A segunda objeção, sobre o "perigo de privatização da jurisdição", ignora que o modelo é de parceria institucional. Onde houver necessidade de tutela judicial (nulidades, medidas de urgência), os incidentes serão submetidos ao juiz. Trata-se de uma arquitetura de Justiça Multiportas, com fiscalização permanente do Judiciário, e não de uma substituição do magistrado, mas, sim, de compartilhamento de responsabilidades dos foros judicial e extrajudicial, no atual sistema brasileiro de justiças multiportas, coordenado, normatizado e fiscalizado pelo poder judiciário.
Por fim, a ideia de que o protesto é apenas "negativar o devedor" está ultrapassada. O ato evoluiu para um instrumento que prioriza a solução consensual, com a busca da solução negocial tanto em momento prévio quanto posterior ao protesto. Essas inovações, formalizadas em normas recentes, representam importantes ferramentas de flexibilização para a recuperação do crédito pelo credor e, ao mesmo tempo, oferecem maior facilidade e oportunidade de resolução para o devedor. Somado a isso, o ato agora interrompe a prescrição (LC 208/24), preservando o crédito e fortalecendo a posição negocial de ambas as partes (BRASIL, 2024c; CNJ, 2024a).
Recomendações de política pública e chamada à ação
A consolidação deste ecossistema de cobrança extrajudicial depende de ações coordenadas e proativas por parte das Fazendas Públicas. Diante do arcabouço normativo vigente, impõe-se uma verdadeira chamada à ação, especialmente para os gestores estaduais e municipais.
É urgente e necessário que as Fazendas Públicas busquem proativamente os IEPTB - Institutos de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil de seus respectivos estados. O objetivo é a celebração de novos convênios, ou a elaboração de aditivos aos já existentes, para que estes contemplem as novas e eficientes funcionalidades da CRA - Central de Remessas de Arquivos.
É fundamental que os gestores públicos solicitem treinamentos para a correta utilização da SNP - Solução Negocial Prévia no envio das CDAs - Certidões de Dívida Ativa. Esta medida não apenas moderniza a cobrança e amplia as chances de recuperação do crédito, mas é um passo indispensável para o cumprimento dos requisitos de procedibilidade exigidos pela resolução CNJ 547/24. A adoção dessas ferramentas assegura a validade de uma eventual e futura ação de execução fiscal no âmbito judicial, enquanto a execução fiscal no âmbito extrajudicial ainda tramita no Congresso Nacional.
Conclusão
A cobrança extrajudicial pelo tabelião de protesto já é uma política pública madura, digital e sem ônus ao erário. A SNP promove o acordo, o protesto gera efeito reputacional e interrompe a prescrição, e a renegociação abre uma via célere de adimplemento. O PL 2.488/22 oferece a moldura adequada para fechar o ciclo de baixo valor com a Execução Fiscal Extrajudicial, em uma plataforma nacional custeada pelos próprios tabeliães e com válvulas de controle jurisdicional.
Somadas, essas peças legislativas e normativas descongestionam a jurisdição, aceleram a recuperação de créditos e qualificam o gasto público, especialmente nos municípios, onde a Dívida Ativa é pulverizada e cada real poupado no contencioso se converte em serviço público para o cidadão. Trata-se de um caminho de racionalidade econômica e eficiência institucional que merece ser aprofundado.
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Referências
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LESSA DA SILVA, Marcelo. O direito humano e fundamental de acesso à justiça. Migalhas, São Paulo, 28 ago. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/438563/o-direito-humano-e-fundamental-de-acesso-a-justica. Acesso em: 4 set. 2025.
LESSA DA SILVA, Marcelo. A eficiência extrajudicial como solução para o Estado e o cidadão. Migalhas, São Paulo, 4 set. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/439244/a-eficiencia-extrajudicial-como-solucao-para-o-estado-e-o-cidadao. Acesso em: 5 set. 2025.
ANOREG/IEPTB. Cartórios em Números - 6ª ed., 2024. Brasília: ANOREG/BR, 2024.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento n. 168, de 27 maio 2024. Brasília, DF: CNJ, 2024a.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 547, de 22 fev. 2024. Brasília, DF: CNJ, 2024b.
BRASIL. Lei Complementar n. 208, de 2 de julho de 2024. Altera a Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), para prever o protesto extrajudicial como causa de interrupção da prescrição. Brasília, DF: Planalto, 2024c.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2.488, de 2022 (Substitutivo aprovado em 12 jun. 2024). Institui o procedimento de execução fiscal extrajudicial pela Fazenda Pública. Brasília, DF: Senado Federal, 2024b.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 6.204, de 2019. Dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial. Brasília, DF, 2019-2025.
CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2024. Brasília, DF: CNJ, 2024.