Introdução
Imagine a cena de um Doberman: sempre alerta, imponente, pronto para reagir a qualquer ameaça. Agora compare essa imagem com a de um Poodle, dócil, amistoso e inofensivo. Essa analogia ajuda a ilustrar o comportamento seletivo dos Conselhos de Psicologia no Brasil: em alguns casos, agem como cães de guarda ferozes; em outros, como animais de companhia inofensivos.
Essa seletividade manifesta-se, sobretudo, nas redes sociais. Certa vez, um psicólogo que se apresenta como representante da “negritude na terapia” publicou declarações agressivas, chegando a afirmar que deveria reforçar seu ódio contra pessoas brancas e que “a paz é uma merda de ideia” (sic). O teor das postagens é discriminatório e incitador de violência. No entanto, nenhum Conselho de Psicologia tomou qualquer providência.
Em contraste, psicólogos cristãos, em diferentes estados da Federação, têm sido alvo de fiscalização rigorosa e, muitas vezes, desproporcional. Um deles, evangélico, foi intimado a assinar um TAC - Termo de Ajustamento de Conduta, comprometendo-se a apagar postagens que o associassem à fé cristã e a modificar sua biografia profissional no Instagram, sob pena de processo ético e cassação do registro. Uma psicóloga católica, por sua vez, foi compelida a separar sua identidade de fé do exercício profissional nas redes sociais. Diante da pressão, preferiu solicitar a baixa do registro ao Conselho Regional de Psicologia de seu estado para continuar se expressando livremente, não mais como psicóloga, mas como psicoterapeuta. É louvável prevenir a manipulação religiosa, mas temerário presumir que toda menção à religião é inadequada.
Esse contraste evidencia um problema grave: os Conselhos parecem não aplicar a mesma régua a todos. Vemos postagens associadas ao cristianismo gerar mais reação do que discursos de ódio. A mera referência à fé cristã de um profissional já é suficiente para desencadear TAC’s, processos disciplinares e restrições, enquanto discursos de ódio passam ilesos.
A legítima missão dos conselhos profissionais
A Constituição (art. 5º, XIII) assegura que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Este direito fundamental garante a liberdade de escolha de qualquer atividade laborativa, mas não é absoluto: o Estado pode, pela lei, exigir qualificações técnicas e conhecimento para o desempenho de certas profissões, visando proteger o interesse público e a segurança da sociedade.
É nesse ponto que se inserem os Conselhos Profissionais, criados como autarquias especiais pela legislação (lei 5.766/71, no caso do Conselho Federal de Psicologia e dos Conselhos Regionais), com a atribuição de fiscalizar, orientar, disciplinar e regulamentar o exercício da profissão. Essa função possui amparo constitucional e legal, garantindo a proteção da sociedade contra práticas irregulares e assegurando padrões éticos e técnicos mínimos.
Contudo, a legitimidade dos Conselhos é instrumental e limitada: decorre da lei e deve se conformar à Constituição. Isso significa que, embora possam normatizar condutas profissionais, não podem criar regras que esvaziem direitos fundamentais assegurados pelo texto constitucional, sob pena de extrapolar sua competência regulamentar.
As resoluções laicistas e seu impacto
No que tange à questão dos psicólogos cristãos, a base para essa perseguição encontra-se em normativas produzidas pelo Conselho Federal de Psicologia. A resolução n 7/23, por exemplo, é emblemática. Seu art. 3º proíbe:
V – utilizar o título de psicólogo associado a vertentes religiosas;
VI – associar conceitos, métodos e técnicas da psicologia a crenças religiosas;
IX – utilizar crenças religiosas como forma de publicidade e propaganda.
Na prática, esses dispositivos criam um cerco normativo que impede o psicólogo religioso de viver integralmente sua identidade profissional e pessoal. Antes de ser psicólogo, ele é cidadão brasileiro, com direitos assegurados pela Constituição, como: liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI e VIII), liberdade de expressão (art. 5º, IV e IX) e livre iniciativa (art. 1º, IV). Pior: isso impede o paciente religioso de ser atendido de forma integral, já que, em muitos casos, não há como dissociar a visão religiosa do paciente. Esse aspecto de sua personalidade precisa ser percebido, respeitado e acolhido.
A exigência de uma neutralidade absoluta é, além de irreal, discriminatória. Nenhum profissional é neutro: todos carregam visões de mundo, convicções políticas, filosóficas, sociais e, muitas vezes, religiosas. Exigir que apenas a dimensão religiosa seja banida configura laicismo, e não laicidade. O Estado brasileiro — e suas autarquias, como os conselhos — deve ser laico, ou seja, neutro e aberto a todas as crenças. O laicismo, por sua vez, traduz hostilidade contra a fé, incompatível com a Constituição. Do paciente, igualmente, não se pode esperar que guarde sua religiosidade em uma gaveta antes de conversar com o psicólogo, já que não faz esse recorte em seu cotidiano.
Além disso, estudos acadêmicos confirmam a relevância da espiritualidade na saúde mental. Harold G. Koenig (2012) evidenciou como a religiosidade reduz sintomas depressivos e ansiosos. Kenneth Pargament (2007) mostrou como a fé atua como recurso de enfrentamento diante do estresse. A própria OMS - Organização Mundial da Saúde reconhece a espiritualidade como dimensão integrante da saúde. Ao desconsiderar esses dados, o conselho aparenta afastar-se da própria ciência que alega defender.
A inconstitucionalidade e a ADIn 7.426
Não surpreende que a referida resolução 7/23 tenha sido questionada no STF, por meio da ADIn 7.426, ajuizada pelo IBDR - Instituto Brasileiro de Direito e Religião e pelo partido NOVO, ainda pendente de julgamento.
A ação sustenta que a norma viola princípios constitucionais estruturantes, a saber:
- Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III);
- Liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI e VIII);
- Laicidade colaborativa do Estado (art. 19, I, CF).
Um ponto essencial questionado é a natureza das resoluções: são normas infralegais, com força apenas regulamentar. Não podem restringir direitos fundamentais garantidos pela Constituição. Se o constituinte de 1988 não impôs limites à expressão da fé de psicólogos, nem de qualquer outro profissional, tampouco pode fazê-lo um conselho.
O problema da seletividade fiscalizatória
Para além da inconstitucionalidade das normas, o que salta aos olhos é a seletividade na sua aplicação. Casos de discurso de ódio explícito permanecem ignorados. Já expressões de fé cristã — ainda que moderadas e respeitosas — são perseguidas com rigor desproporcional.
Ademais, não se vê essa mesma atividade persecutória contra adeptos de outras religiões ou ideologias que, igualmente, se manifestam no espaço público e nas redes sociais. Isso gera a sensação de que os conselhos atuam não em defesa da ética profissional, mas segundo critérios ideológicos, de forma hostil ao cristianismo.
Esse problema se torna ainda mais visível quando surgem situações como a recente morte de Charlie Kirk, ativista conservador americano. Houve psicólogos que, publicamente, comemoraram o assassinato. Não há como compatibilizar tal postura com a ética profissional da psicologia, cujo Código de Ética (resolução CFP 10/05, art. 2º, alínea “a”) determina que o psicólogo deve basear seu trabalho “no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano”. Espera-se, portanto, que os conselhos ajam com a mesma firmeza nesses casos, demonstrando coerência e isonomia. A omissão apenas reforçaria a percepção de parcialidade.
Considerações finais: Um convite à reflexão
Não se defende aqui a ausência de fiscalização. Conselhos profissionais têm papel relevante na manutenção da ética e da qualidade técnica das profissões que regulam. Mas é preciso que atuem dentro dos limites da Constituição, sem perseguir um grupo específico de profissionais por sua identidade de fé, nem silenciar diante de manifestações de ódio. O que se quer é igualdade de tratamento e respeito ao sentimento religioso tanto do psicólogo quanto do paciente.
Este artigo não busca criticar por criticar, mas sim convidar os conselhos a uma necessária autocrítica. Se a psicologia é ciência da alma humana, como ignorar a espiritualidade, dimensão fundamental da vida de tantos indivíduos? Se buscamos a dignidade da pessoa, como negar ao psicólogo e ao paciente cristão o direito de se expressar de forma coerente com suas convicções mais profundas? Se a ética é universal, como tolerar que profissionais celebrem a morte de alguém?
Neutralidade não significa excluir a fé, mas permitir que todas as crenças convivam no espaço público, desde que respeitados os direitos de terceiros. O verdadeiro desafio é equilibrar liberdade, ciência e ética sem hostilizar aquilo que dá sentido à vida de milhões de brasileiros, incluindo centenas de milhares de psicólogos.
Os Conselhos de Psicologia precisam, de fato, de um exercício de autocrítica. É hora de refletir que a seletividade pode enfraquecer a legitimidade da instituição. O futuro da psicologia no Brasil depende de uma atuação que respeite a pluralidade, a Constituição e a dignidade de todos os profissionais. Torcemos para que, antes do julgamento da ação, a própria classe solucione internamente essa questão.