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O social antissocial: Reflexões a partir do caso Nardoni

O paradoxo da conduta social demonstra como determinados comportamentos, ainda que revestidos de aparência de normalidade, podem assumir natureza antissocial e comprometer a vida coletiva.

23/9/2025

Introdução

caso Nardoni marcou a história criminal brasileira, por meio da ação penal 0002241-66.2008.8.26.0001 (TJ/SP). Em 2008, o assassinato brutal da pequena Isabella Nardoni, jogada do sexto andar do edifício London, localizado na zona norte de São Paulo, comoveu o país. Quase duas décadas depois, quando Alexandre Alves Nardoni e Anna Carolina Trota Peixoto Jatobá conquistaram benefícios da execução penal e puderam regressar à “vida em sociedade”, surgiram novos conflitos, especialmente no condomínio em que passara a residir.

A reação imediata dos condôminos foi de revolta e repúdio. Muitos condôminos não aceitam dividir os mesmos espaços comuns com os responsáveis por um crime tão bárbaro. Esse fenômeno evidencia o paradoxo do social antissocial: no espaço condominial, o casal, até então, pode aparentar normalidade de comportamento frente a normas condominiais (social), mas na essência de sua conduta - marcada pelo homicídio qualificado (antissocial) - representam ruptura absoluta da vida em comunidade e rejeição por aquela microssociedade condominial.

O crime cometido e a pena aplicada evidenciaram, de maneira incontornável, a incompatibilidade dos réus com a vida em sociedade num todo. A lei penal, ao reconhecer a gravidade extrema do homicídio praticado contra a própria filha, os classificou, na prática, como agentes de conduta antissocial, impondo-lhes a sanção de mais de 30 anos de reclusão. A pena estatal, nesse contexto, teve dupla finalidade: a retribuição pela barbaridade do ato e a proteção da coletividade, mediante o afastamento dos condenados do convívio social.

Entretanto, a condenação formal não se esgota no aspecto penal. Existe uma pena que vai daquela aplicada, que é a pena natural, que se traduz nas consequências extrajurídicas que decorrem do crime e da reprovação social. Ainda que a lei tenha fixado um limite temporal de 30 anos de prisão, a sociedade, diante da brutalidade praticada, impõe uma condenação simbólica e permanenteo estigma social. Esse rótulo de inaceitabilidade coletiva acompanha o indivíduo mesmo após o cumprimento da pena, tornando sua reinserção social praticamente inviável.

Casos paradigmáticos, como o de Suzane von Richthofen, Gil Rugai, Eugenio Chipkevitch, Pimenta Neves, Juiz Nicolau (TRT) e outros de grande repercussão nacional, demonstram que a memória do crime permanece viva na consciência coletiva, perpetuando a rejeição. Nesses termos, ainda que juridicamente se reconheça o término da sanção penal, persiste um exílio social perpétuo, fruto da repulsa comunitária e do rompimento definitivo do pacto de confiança que sustenta a vida em sociedade.

E agora que eles se comportam dentro do condomínio de forma social, cumprindo as regras previstas na convenção, regimento interno e as decisões assembleares, mas a sociedade condominial, reprovando sua conduta antissocial na sociedade os torna associal, como lidar com o social que é antissocial e recebe a imposição para ser associal, passando a ser visto como antissocial perante a sociedade condominial.

A revolta dos condôminos e a insuportabilidade da convivência

A volta do casal ao condomínio não foi recebida com indiferença. Pelo contrário, moradores organizaram protestos, abaixo assinados, exigiram assembleias e manifestaram sua insatisfação. O temor e o desconforto passaram a ser constantes, revelando que a simples presença dos condenados era suficiente para tornar insuportável a convivência no ambiente condominial.

Esse cenário demonstra que a vida em condomínio não se limita ao cumprimento formal de regras de urbanidade. A sociabilidade verdadeira exige confiança mínima entre vizinhos. Quando um condômino carrega consigo o estigma de um crime hediondo contra a própria filha, a comunidade passa a se sentir vulnerável, insegura e violentada em seus valores e tendo seu patrimônio desvalorizado.

Então, surge a dúvida, eles devem ser aceitos na sociedade condominial diante dos inúmeros prejuízos diretos e indiretos, quando pela sociedade convencional os rejeita?

Essa dúvida que permeia a cabeça de diversos especialistas em direito condominial, quero partilhar meu entendimento, já que faço parte da seleta camada de especialistas em direito condominial.

O condômino antissocial no CC

Ao nos referirmos ao indivíduo antissocial, tratamos daquele que, embora inserido no convívio coletivo, adota condutas ativamente contrárias às normas jurídicas e sociais. Seu comportamento não decorre de mera dificuldade de interação, mas de uma postura deliberada de afronta à ordem estabelecida. O antissocial, nesse sentido, compromete a paz e a estabilidade da vida em comunidade, tornando-se um agente de ruptura dos pactos mínimos que sustentam a convivência social.

Em contraste, o indivíduo associal caracteriza-se pela dificuldade - ou até mesmo pela ausência de interesse - em integrar-se à coletividade. Se trata de um comportamento neurológico, intrínseco da pessoa.

Diferentemente do antissocial, o associal não busca transgredir regras ou provocar desordem; sua postura é de retraimento, distanciamento ou indiferença em relação à vida em grupo. Assim, o associal não ameaça diretamente a ordem social, mas revela uma incapacidade ou recusa de participar plenamente das dinâmicas comunitárias.

O comportamento antissocial ele é externo e o associal interno, ou seja, a própria pessoa detém essa condição neurológica, porém, no caso Nardoni, a sociedade condominial, como um todo, impôs o comportamento associal, para que assim se comportem, não restando alternativa senão se tornarem associais obrigatoriamente.

Inclusive, em termos neurológicos, o associal, a medicina reconhece como transtorno da personalidade esquizoide classificada como DSM-5-TR, algo interno, nato da pessoa.

O CC, em seu art. 1.336, IV, estabelece o dever de todo condômino de não prejudicar a saúde, o sossego e a segurança dos demais. Já o art. 1.337 prevê sanções para o chamado condômino antissocial, incluindo multa de até dez vezes o valor da contribuição condominial, quando suas condutas tornam impossível a convivência.

Embora a expulsão não esteja expressamente prevista em lei, a doutrina e parte da jurisprudência têm admitido essa possibilidade em caráter excepcional, quando todas as medidas menos gravosas se mostram ineficazes.

Destaco o entendimento do TJ/SP, que reconhece a inexistência de lei que determine a exclusão, mas demonstra que a função social da propriedade deve ceder a proteção da coletividade, por mais que pareça um aparente conflito de normas constitucionais, mas não é, confira:

CONDOMÍNIO. EXCLUSÃO DE CONDÔMINO E OBRIGAÇÃO DE FAZER PARA COMPELIR À ALIENAÇÃO BEM. Sentença de improcedência ao fundamento de que a pretensão carece de previsão legal. Reforma de rigor. Sanções pecuniárias do art. 1.337 do CC não que esgotam as providências que podem ser adotadas para cessar a conduta ilícita do condômino. Comportamento antissocial do réu, de caráter grave e reiterado, que autorizam o acolhimento parcial do pedido. Agressão, intimidação, destruição de patrimônio, perturbação, furto, invasão, ameaça, injúria, entre outros ilícitos. Fatos não controvertidos. Perda do direito de uso da unidade. Medida que, por si só, se revela suficiente para coibir os males provocados pela convivência com o réu. Alienação forçada do imóvel que, nesse contexto, se revela desnecessária. (TJ/SP. Apelação 1001406-13.2020.8.26.0366. 36ª Câmara de Direito Privado. Rel. Milton Carvalho. j. 22/4/21. v.u.)

Ao final do julgado, o relator Milton Carvalho, destaca:

“Destaque-se que essa medida se revela, por si só, suficiente e eficaz para pôr fim aos males de que padecem os demais condôminos em virtude do convívio com o réu.”

Na Comarca da Praia Grande, cidade do litoral Sul do Estado de São Paulo, o magistrado Sergio Castresi de Souza Castro, no processo 1018463-65.2021.8.26.0477 (TJ/SP)assim constou na sentença, transitada em julgado:

[...]

Sabe-se que o direito de propriedade não é absoluto, conforme preconiza a Constituição Federal ao dizer que ela cumprirá sua função social no art. 5º.

Prova disso, é que o §2º do art. 1.228 do CC impõe clara limitação ao direito de propriedade, ao afirmar que "São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem."

A norma do indigitado artigo disciplina que não é verdadeiro, o entendimento, infelizmente difundido na população e equivocado, de que o proprietário/possuidor pode utilizar do seu bem imóvel (casa ou apartamento)como bem entender, sem limites, pelo simples motivo de o seu direito esbarrar no direito dos vizinhos próximos, confrontantes ou não, que também possuem o direito de usufruírem de modo regular seus próprios bens imóveis, sem serem incomodados por atos de terceiro antissocial, que prejudiquem de modo indevido o seu bem-estar.

É a prevalência do bom senso.

Inviável a vida em condomínio, os acontecimentos que justificam a exclusão do demandado não são pontuais, mas frequentes, colocando em risco a convivência com os demais moradores.

A permanência do réu no condomínio pode acarretar uma tragédia, conforme bem ponderado pelo autor na exordial.

Não é outro o sentido do art. 1.277 do CC: Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. (grifo nosso)

Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.

[...]

Observe-se que a conduta antissocial, em regra, associa-se a uma postura dolosa, marcada pela intenção de violar normas e gerar desequilíbrio no convívio coletivo. Contudo, pode também manifestar-se de forma indireta, ou culposa, quando o indivíduo, embora aparente sociabilidade em determinados contextos, carrega consigo o estigma de um crime bárbaro que repercute continuamente na vida comunitária. Nesse caso, ainda que não haja uma ação deliberada e atual de afronta às regras, sua mera presença passa a produzir violação da intimidade, vida privada, perturbação do sossego e sensação de insegurança, tornando inviável a aceitação desse convívio. O resultado é a instalação de um estado permanente de insegurança coletiva, renovado dia após dia.

Na defesa de sua dissertação de Mestrado na Escola de Direito FADISP/SP, Wagner Gomes da Costa1, sob a orientação da Magistrada Federal da 5ª região, prof.ª dra. Cintia Menezes Brunetta, com o tema: O Condômino Abusivo e a tutela da coletividade: Limites da propriedade no regime de condomínio, defende o seguinte:

Do ponto de vista teórico, a concepção do ato ilícito no direito civil remonta à sistematização desenvolvida por Beviláqua39, segundo a qual a antijuridicidade é compreendida como a infração de um dever jurídico, seja pela intenção deliberada de lesar (dolo), seja pela ausência de diligência devida (culpa). A distinção entre essas duas espécies de comportamento recai sobre o elemento volitivo: o dolo traduz a consciência e a vontade direcionada à prática do resultado lesivo, enquanto a culpa se refere à inobservância de uma conduta exigível segundo critérios objetivos de cuidado.

Não se pode desconsiderar, ainda, os impactos econômicos decorrentes da presença de indivíduos marcados por forte rejeição social. Se, por um lado, a valorização imobiliária pode ser impulsionada pela notoriedade positiva de uma personalidade reconhecida e honrada pela coletividade, por outro, verifica-se o efeito inverso quando o imóvel está associado a pessoas estigmatizadas. A presença de condenados por crimes de grande repercussão pública gera um estigma permanente, capaz de afastar potenciais compradores e investidores, resultando em significativa desvalorização patrimonial e comprometendo a atratividade do empreendimento.

Esses precedentes mostram que, embora a exclusão seja medida extrema, ela é admitida em hipóteses de gravidade incomum, quando a presença do condômino compromete a ordem, a tranquilidade, a moralidade da vida coletiva e gera a desvalorização do patrimônio.

Wagner Gomes da Costa, assevera:

O condômino antissocial deve ser compreendido como um desvio classificável, não apenas como um problema jurídico, mas como uma disfunção no convívio humano.2

Constituído esse paradoxo, o caso Nardoni materializa de forma exemplar a figura do social antissocial: um indivíduo que, no microcosmo do condomínio, pode aparentar ser apenas mais um vizinho, ainda que o clima de rejeição local o obrigue a assumir um comportamento associal. Contudo, sua trajetória demonstra-se absolutamente incompatível com a vida em sociedade, na medida em que sua presença representa risco à segurança, abala a tranquilidade coletiva, perturba o sossego e contribui para a desvalorização patrimonial do ambiente condominial.

A revolta dos condôminos configura expressão legítima desse paradoxo. Ainda que os condenados cumpram formalmente suas obrigações condominiais, sua simples presença mina a confiança, a paz e a segurança da comunidade, além de gerar significativa desvalorização patrimonial. Nesse sentido, a deliberação assemblear que aprova sua exclusão encontra fundamento na prova robusta dos impactos concretos: a intranquilidade instaurada, a perturbação do sossego e a insegurança coletiva potencializada pela constante exposição midiática do condomínio, amplamente reconhecido no bairro como o “prédio dos Nardonis”.

A provocação do Poder Judiciário revela-se, portanto, medida de rigor, sustentada na proteção da coletividade. À vista de tais elementos, e considerando a incompatibilidade objetiva entre a presença dos condenados e a vida em comunidade, impõe-se o reconhecimento de sua inaptidão para permanecer naquele ambiente condominial, em razão dos riscos jurídicos, sociais e econômicos que sua permanência acarreta.

Conclusão

A experiência revela que a sociabilidade condominial não se mede apenas pela observância interna das regras, mas pela confiança mínima necessária à vida em sociedade num todo, que são as regras externas, ambas devem se harmonizar.

O retorno de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá a vida em condomínio, embora não seja o do local do crime, mas está a pouco mais de 4 quilômetros, evidencia que são condôminos antissociais, pela elevada quantidade de prejuízos que geram e gerarão para aquela comunidade, pois rompeu esse pacto implícito de convivência.

Assim, juridicamente, é possível qualificá-los como condôminos antissociais, passíveis de sanções do art. 1.337 do CC e, até mesmo a exclusão pela via judicial, nos moldes admitidos pelo TJ/SP.

O episódio serve de alerta: na vida condominial, o social e o antissocial não se distinguem apenas pelas aparências, mas pela coerência entre conduta individual e valores coletivos, ou seja, não deve apenas cumprir os deveres da sociedade condominial, mas na sociedade num todo.

________

Bibliografia

First. Michael b. Manual de Diagnóstico Diferencial do DSM-5-TR. 2025. Ed. Artmed.

TJ/SP Ap. 1018463-65.2021.8.26.0477 (TJ/SP)

TJ/SP 1ª Instância. 1018463-65.2021.8.26.0477 (TJ/SP)

FADISP 2025. Costa. Wagner Gomes da. Dissertação: O Condômino abusivo e a tutela da coletividade: Limites da propriedade no regime de condomínio. Orientadora Prof. Dra. Cintia Menezes Brunetta.

https://www.migalhas.com.br/depeso/436006/a-antissocialidade-no-condominio-edilicio

Código Civil. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

1 FADISP 2025. Costa. Wagner Gomes da. O Condômino abusivo e a tutela da coletividade: Limites da propriedade no regime de condomínio. Orientadora Prof. Dra. Cintia Menezes Brunetta.

2 https://www.migalhas.com.br/depeso/436006/a-antissocialidade-no-condominio-edilicio

Wagner Gomes da Costa
Sócio da Gomes da Costa Advogados. Doutorando e Mestre pela FADISP. MBA Gestão e Direito Condominial -FSA. Prof. convidado da ESA/SP e Cursos de Síndicos Profissionais. Palestrante. @wagnercostaadv

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