Migalhas de Peso

ECA digital e responsabilidade dos pais

ECA digital: Avanço legislativo que exige mudança comportamental dos pais.

22/9/2025

A CF/88 é clara ao mencionar o dever da família, da sociedade e do Estado para assegurar à criança e ao adolescente a proteção integral, com absoluta prioridade, em nome do superior interesse que envolve o seu desenvolvimento físico, moral e intelectual (art. 227). O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, igualmente, logo no art. 1º, a proteção integral à criança e ao adolescente. Nesse cenário, edita-se, no Brasil, a lei 15.211/25, denominada Estatuto Digital da Criança e do Adolescente, baseada em projeto de lei que se encontrava em trâmite pelo Parlamento há algum tempo, mas foi acelerado por conta de eventos notificados por um influencer de rede social (ou youtuber), ao denunciar fatos relevantes, envolvendo a denominada adultização infantojuvenil. Essa comunicação pública de determinado evento não cuida de fato inédito e desconhecido da sociedade; ao contrário, faz parte do cotidiano - infelizmente - de várias crianças e adolescentes, muitos deles incentivados à precoce aparição pública e até mesmo à erotização prematura pelos próprios pais ou responsáveis.

O quadro exposto na referida denúncia envolve diversos aspectos importantes, que contribuem para expor infantes e jovens no ambiente da internet, tais como a exploração da imagem, mediante a exposição sexualizada, de adolescentes, muitas situações ocorridas com o conhecimento dos pais, a monetização de plataformas, com o crescimento dos chamados “empresários mirins” e perfis de crianças e adolescentes com discursos “coach” ou “religioso”, ávidos por enriquecimento célere, ocupando o tempo e prejudicando a sua formação. O incremento da exposição estimula, cada vez mais, a atuação dos pedófilos, facilitando a busca por material sexualizado de menores de 18 anos, por meio de simbologia própria. A adultização propicia falhas e deficiências na formação infantojuvenil, capazes de gerar vários transtornos psicológicos, como depressão, ansiedade, estresse, dentre outros. 

Nessa linha, a lei 15.211/25 impõe diversas regras às empresas administradoras de serviços na internet, que distribuem produtos tecnológicos informativos e comunicativos ao alcance de crianças e adolescentes (art. 3º). Em particular, há de se ressaltar o conteúdo do parágrafo único desse artigo, em que se menciona ser direito dos infantes e jovens a orientação, educação e acompanhamento dos pais ou responsáveis legais quanto ao uso da internet e sua experiência digital. Cabe-lhes o exercício do cuidado ativo e contínuo, em permanente supervisão parental. Determina-se que os fornecedores de produtos e serviços acessíveis a crianças e adolescentes atuem para permitir maior segurança e controle de acesso, possibilitando à família prevenir o uso inadequado. As áreas de risco são especificamente enumeradas no art. 6º: exploração e abuso sexual, violência física, intimidação sistemática virtual e assédio, indução, incitação, instigação ou auxílio a comportamento que leve a danos físicos ou psíquicos, comercialização e promoção de jogos de azar, propaganda predatória, injusta ou enganosa e conteúdo pornográfico. Deve-se destacar o disposto no § 1º do art. 6º da referida lei: o disposto neste artigo não exime os pais e responsáveis legais de atuarem para impedir sua exposição às situações violadoras descritas no caput

Vislumbra-se um avanço inequívoco nesse campo, mas é essencial debater paralelamente à obrigação de empresas tecnológicas, que viabilizam acesso à rede mundial de computadores, a responsabilidade dos pais. Em primeiro plano, é fundamental apontar a exposição da vida, muitas vezes íntima, e o cotidiano de crianças e adolescentes, pelos próprios genitores, em redes sociais (Facebook, Instagram etc.), com fotos e vídeos, que podem ser acessados não apenas pelos “contatos” do expositor, mas também por hackers, invasores aptos a captar o material, repassando a pedófilos e outros exploradores. Não é à toa que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê o crime de simulação da participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual, incluindo quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga esse material e, obviamente, quem o adquire, possui ou armazena (art. 241-C). O retrato fiel de infantes e jovens, por meio de fotos e vídeos, pode servir de base para a produção desse material criminoso. Aliás, o menor de 18 anos não pode opinar - ou não é ouvido - em relação à exposição da sua intimidade na rede mundial de computadores, justamente por quem deve protegê-lo. Registre-se que o art. 241-E busca conceituar o que seja “cena de sexo explícito ou pornográfica”, indicando “qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais” (grifamos). Embora muitos responsáveis não postem fotos ou vídeos explícitos ou reais, o perigo reside na adulteração desse material, simulando a pornografia e distribuindo-a com a imagem da criança ou adolescente. Além disso, os arts. 240, 241, 241-A e 241-B do ECA criminalizam praticamente todas as condutas que possam contextualizar, em cenário sexual ou pornográfico, infantes e jovens, devendo-se ressaltar que a denominada erotização precoce abrange, também, as cenas tidas por sensuais (lascivas, voluptuosas, aptas a gerar algum tipo de prazer sexual), exatamente o contexto denunciado pelo influencer, gerador da prisão dos autores da situação. Convém, sempre, lembrar a atuação de muitos genitores, aquiescendo a essa vivência de seus filhos menores de 18 anos, mantendo-se aberta a indagação: serão responsabilizados? 

A criança e o adolescente, no ambiente virtual, são alvos fáceis aos predadores sexuais - e similares -, pois até mesmo nos inocentes jogos eletrônicos há os canais de comunicação entre os jogadores e ali surge o adulto, passando-se por criança, formando laço de amizade com o incauto jovem. Disso pode resultar - o que já tivemos oportunidade de julgar no Tribunal de Justiça - crimes graves, como o estupro de vulnerável (art. 217-A). A situação concreta concerne a um garoto de 10 anos, que manteve amizade com um adulto (passando-se por criança), em cenário de jogo eletrônico. Conquistada a confiança, passaram a se comunicar por um aplicativo, destacando-se que esse menino tinha um smartphone próprio, dado pelos próprios pais, com viabilidade de se trancar no quarto e comunicar-se com quem bem quisesse, sem qualquer fiscalização. Nesse aplicativo, tempos depois, houve uma videochamada e, em tempo real, o adulto satisfez a sua lascívia, quando o garoto se despiu na sua frente. Para a configuração do estupro (inclusive de vulnerável) não se exige o toque físico, bastando a prática da libidinagem, mediante emprego de violência ou grave ameaça, requisitos dispensáveis no estupro de vulnerável, pois se trata de vulnerabilidade absoluta. Abre-se, novamente, a questão: os pais desse menino devem ser responsabilizados?

Durante a pandemia da Covid-19, lamentavelmente, inúmeras crianças e adolescentes ficaram presos em suas casas com suas famílias e muitos deles ganharam dispositivo informático de livre acesso à internet, como uma das formas de compensar a situação de isolamento. Houve o crescimento exponencial de smartphones e tablets individuais, entregues nas mãos de crianças e jovens, algo que contribuiu para elevar o número de perturbações durante o período de aulas, afinal, no retorno à vida presencial, todos levaram seus aparelhos para dentro das escolas. Em boa hora, surgiu a lei para vedar aparelhos eletrônicos e celulares em estabelecimentos de ensino (lei 15.100/25). A propósito, mesmo os pais responsáveis, que não entregaram celulares individuais a seus filhos, sofriam com a situação porque estes terminavam acessando a internet por meio dos aparelhos dos colegas e tinham entrada para material impróprio. Acompanhando o incômodo gerado durante as aulas, é preciso lembrar que o celular, em mãos infantojuvenis, sem controle parental, pode transformar-se em fonte de outros delitos, tais como perseguição (art. 147-A, CP), cyberbullying (art. 146-A, parágrafo único, CP) e ameaça (art. 147, CP). A carência de orientação e fiscalização dos pais pode permitir que seus filhos não somente sofram perseguições, intimidações e ameaças, mas igualmente as pratiquem, vitimizando outras crianças e adolescentes. A experiência na magistratura criminal nos mostra, infelizmente, dados trágicos, porque quando os genitores percebem o que se passa, o crime (ou ato infracional) já se concretizou. Se os incapazes de compreender exatamente o alcance do que fazem não forem acompanhados e fiscalizados, para serem orientados, podem lesar terceiros - colegas ou amigos, visto terem a livre disposição de aparelhos eletrônicos. Emerge a questão: os pais devem ser responsabilizados?

A lei 13.968/19, baseada em eventos fatais, trouxe modificação ao art. 122 do CP, que cuida do crime de induzimento, instigação e auxílio ao suicídio ou à automutilação. Esta última foi introduzida por conta de casos lamentáveis, envolvendo a autolesão, praticada por jovens, induzidos e instigados por desafios, lançados na rede mundial de computadores, tais como a “baleia azul” e “apagão”. Em síntese, os referidos desafios conclamam crianças e adolescentes, preferencialmente os que possuem livre acesso à internet, a passar por provas, que se iniciam com provocações leves, tal como assistir um filme de horror ou dormir com a luz apagada, até atingir os problemáticos desafios de automutilação, muitos dos quais terminam em suicídio. Se a criança ou adolescente estiver sozinha em seu aposento, acessando livremente a internet, sem qualquer acompanhamento parental, terá tempo para caminhar e progredir nesses desafios até chegar a resultados fatais, atentando contra a própria vida. Coloca-se a questão: os pais devem ser responsabilizados de algum modo?

Um dos pontos abordados pela lei 15.211/25 liga-se à obrigação dos fornecedores de produtos e serviços de tecnologia de informação de adotar medidas eficientes para impedir o acesso de menores de 18 anos a conteúdo inadequado e, para isso, precisam ter mecanismos confiáveis de verificação de idade a cada acesso do usuário, quando a navegação se der em sites inapropriados, tais como os de pornografia. Acrescente-se a vedação à criação de contas ou perfis por crianças ou jovens aos referidos sites. Impõe-se a obrigação de adotar medidas seguras para aferir a idade ou a faixa etária dos usuários e permitir aos pais ou responsáveis legais que configurem mecanismos de supervisão parental, de forma ativa, em prol dos filhos. Em suma, o conjunto de normas parece eficiente e disposto a sanar o problema atual de livre acesso de crianças e adolescentes à rede mundial de computadores e outras formas de comunicação digital. 

O ECA digital é passo relevante, mas há alguns pontos a ressaltar. Em primeiro lugar, a implementação de todas essas medidas depende de tempo e não se sabe ao certo se haverá efetividade, afinal, o disposto em lei nem sempre é concretizado. Em segundo - e mais importante - diz respeito à conduta dos pais e responsáveis legais de crianças e adolescentes. Se o controle parental não for exercido, várias medidas previstas nessa lei serão inócuas. Se os pais não acompanharem a vida de seus filhos, nos variados aspectos, dando-lhes atenção e permanente orientação, não saberão quando eles forem vítimas de atitudes lesivas ou agentes de atos infracionais. A proteção integral, na seara infantojuvenil, é mais eficaz no ambiente familiar do que em qualquer outro, razão pela qual impõe-se aos pais o dever de tutela do acesso à rede mundial de computadores, na medida do possível, sabendo-se que, mesmo com atuação contínua, os problemas podem surgir. Contudo, o acompanhamento parental permanente tende a contornar várias situações danosas e, junto com o ECA digital, se bem implementado, é possível reduzir as chances de vitimização de crianças e adolescentes.

Guilherme de Souza Nucci
Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor Associado da PUC-SP, atuando nos cursos de graduação e pós-graduação. Desembargador do TJ/SP.

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