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PEC 3/21: O escudo invisível de impunidade

Uma análise histórica sobre o tema conduz ao reencontro entre passado e presente, evidenciando o paradoxo de se tentar transplantar para a Constituição Cidadã um instrumento normativo ultrapassado

24/9/2025

Introdução

A proposta de emenda à Constituição 3/21 é apresentada como um instrumento de fortalecimento da independência parlamentar. No entanto, uma análise mais detida revela que seu efeito prático é ampliar barreiras à responsabilização penal de deputados e senadores, reforçando um sistema que se aproxima de um “sindicato legislativo”, voltado à proteção dos próprios membros.

Esse debate ganha contornos ainda mais relevantes diante da pressão popular registrada nas últimas semanas, quando movimentos da sociedade civil, associações de juristas e entidades de classe manifestaram preocupação com o risco de retrocessos institucionais.

A preocupação é legítima, já que ao invés de reequilibrar os Poderes, a PEC pode configurar um ato de sabotagem constitucional, um exemplo clássico de constitucionalismo abusivo - fenômeno em que o texto da Constituição é usado para minar a própria democracia, enfraquecendo os mecanismos de controle e concentrando poder em grupos políticos circunstanciais.

Uma análise histórico-reflexiva sobre o tema conduz inevitavelmente ao reencontro entre passado e presente, evidenciando o paradoxo de se tentar transplantar para a Constituição Cidadã um instrumento normativo ultrapassado.

Linha do tempo

Texto/Proposta

Conteúdo

Observação

 

Constituição de 1988 (redação original)

Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente sem prévia licença de sua Casa.

Mantinha a exigência de licença, como na tradição desde 1891.

 

PEC 2/1995 (Senado)

 

Exigia licença da Casa, mas estabelecia prazo de 120 dias para deliberação, sob pena de deferimento tácito.

 

Tentava evitar o “engavetamento” de pedidos.

 

PEC 610/1998 (Câmara)

 

Manteve a necessidade de licença para processar, mas suprimiu o prazo de 120 dias.

 

Reforçou o filtro político prévio.

 

EC 35/01 (vigente)

 

Extinguiu a exigência de licença para processar parlamentares. Mantida apenas a possibilidade de sustação do processo pelo voto da maioria absoluta da Casa.

 

Resultado de forte pressão social e pareceres que apontavam que a imunidade formal havia se tornado um ‘escudo invisível de impunidade’.

Tabela extraída do Processo Legislativo da PEC 02/1998 - anais do Senado Federal

Reflexões sobre a PEC 02/1995 e PEC 610/1998

A Proposta de Emenda à Constituição n" 2, de 1995, aprovada pelo Senado Federal estabelecia que “Deputados e Senadores não poderão ser processados criminalmente, sem licença de sua Casa, por atos praticados após a diplomação.” E que "O Supremo Tribunal Federal, recebida denúncia após defesa preliminar, solicitará à Casa respectiva licença para instaurar ação penal, tendo-se como concedida a solicitação se, no prazo de cento e vinte dias, contados do recebimento, não houver deliberação.

Já a proposta de Emenda à Constituição 610, de 1998, aprovada pela Câmara dos Deputados estabelecia que "Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Neste caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

No voto da relatoria na CCJ da PEC 610/1998, que retirou qualquer necessidade de licença, enfatizou-se que "Esta relatoria considera, entretanto, que a independência do Congresso Nacional está preservada, pois o cerne da imunidade parlamentar, que é, a nosso ver, a imunidade material, ou inviolabilidade quanto às palavras, às opiniões e aos votos, permaneceu incólume”.

Na relatoria no Senado, o parecer 1461/21 concluiu que "Do ponto de vista do mérito, a presente proposição representa, sem dúvida, uma das mais importantes hoje em tramitação no Congresso Nacional. A alteração do instituto da imunidade parlamentar é passo imprescindível para a recuperação do prestígio do Poder Legislativo, que não pode mais ser postergado." Continuou dizendo que "Ambas estabelecem que esse tipo de imunidade somente terá lugar por ação da respectiva Casa Legislativa e nunca por sua inação. Ou seja, não se elimina a possibilidade de o parlamento sustar um processo criminal contra um de seus membros quando verificar que esse está carregado de um viés exclusivamente político, mas não se permite a impunidade pelo simples fato de não haver decisão."

Aliás, esse tipo de licença, muito bem afastada em 2001, era algo que remontava as normas constitucionais à época que tínhamos recentemente superado o regime monarca. Isso estava na constituição de 1891 ao estabelecer, em seu Art. 20 , que "Os Deputados e Senadores, desde que tiverem recebido diploma até a nova eleição, não poderão ser presos nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Nesse caso, levado o processo até pronunciamento exclusivo, a autoridade processante remeterá os autos à Câmara respectiva para resolver sobre a procedência da acusação, se o acusado não optar pelo julgamento imediato.

Em parecer em 1998 é evidenciada a realidade processual nas casas legislativas acerca das licenças, ao se registrar que "Ficou amplamente demonstrado que a imunidade formal pode constituir-se em uma espécie de "escudo invisível da impunidade, assegurando uma infinita tramitação dos pedidos de licença para processar Deputados ou Senadores eventualmente acusados de práticas (estranhas à vida parlamentar) de caráter delituoso, fazendo-se mister uma solução para o interminável acúmulo de processos que se amontoam à espera de uma decisão do plenário das respectivas Casas. (Destaquei)

A toda evidência, as Casas Legislativas demonstraram, em 2001, que a impunidade era acolhida pelo direito à “licença” que, notadamente, privilegiava o corporativismo legislativo à época.

Imunidade parlamentar: sentido institucional e desvirtuamentos

A imunidade parlamentar é um dos pilares da democracia representativa, concebida para proteger o livre exercício do mandato, garantindo que parlamentares possam falar, votar e fiscalizar sem medo de retaliação. José Afonso da Silva ressalta que essas garantias têm caráter institucional - pertencem ao Parlamento como um todo, e não aos indivíduos.

Quando, porém, são invocadas para encobrir condutas ilícitas, deixam de ser escudo da democracia para se tornarem manto de impunidade. É nesse ponto que a PEC 3/21 preocupa, pois em vez de reforçar a função institucional da imunidade, cria uma barreira que dificulta a responsabilização pessoal de quem transgride a lei.

Nesse sentido, James Madison, no Federalist 57, já advertia que os representantes eleitos deveriam manter lealdade primária ao povo, não aos próprios interesses. Para Madison, um governo republicano só se sustenta se os representantes forem impedidos de capturar o poder legislativo para fins privados - risco que se agrava quando a própria Casa passa a ser a juíza de seus membros antes de qualquer controle judicial.

Daí a acusação contra a Câmara dos Representantes “que ela será tomada daquela classe de cidadãos que menos simpatizará com a massa do povo e que provavelmente buscará um sacrifício ambicioso de muitos em prol do engrandecimento de poucos.” (Madson, 1788). Por isso se enfatizou que “o objetivo de toda constituição política é, ou deveria ser, primeiro obter como governantes homens que possuam mais sabedoria para discernir e mais virtude para buscar o bem comum da sociedade; e, em segundo lugar, tomar as precauções mais eficazes para mantê-los virtuosos enquanto continuam a manter sua confiança pública.” (Madson, 1788).

Constitucionalismo abusivo e sabotagem constitucional

O fenômeno descrito como constitucionalismo abusivo se utiliza formalmente do processo de reforma constitucional para enfraquecer os mecanismos de controle democrático. A PEC 3/21, sob o pretexto de proteger o Legislativo, busca restaurar privilégios superados, criando um ambiente mais favorável à impunidade.

Pode-se antever violações patentes à Lei Fundamental de 1988, a exemplo da separação dos poderes, a independência do judiciário e, sobretudo, da clara e evidente manifestação do constitucionalismo abusivo. Dentre as principais características, a abusividade constitucional se utiliza de mecanismos legais e constitucionais para esvaziar ou enfraquecer os demais Poderes, sempre que não compactuem com seus propósitos. (MC- ADPF 622 / DF)

O constitucionalismo abusivo, portanto, é a utilização indevida dos mecanismos do direito constitucional (como mudanças legislativas ou interpretações de leis) para enfraquecer a democracia, o ambiente de direitos fundamentais e as instituições que controlam o poder. Ocorre quando se usa o próprio sistema constitucional para corroer as bases democráticas, concentrando poder e limitando a participação.

A crítica ao ativismo judicial não deve ser ignorada, considerando que há espaço legítimo para se discutir mecanismos de autocontenção, revisão de decisões e previsibilidade de julgamentos. Contudo, blindar parlamentares não corrige tais distorções, apenas transfere o problema para outra esfera, criando uma Justiça seletiva.

Acaba, assim, que líderes políticos usam os próprios mecanismos constitucionais para enfraquecer a Constituição.

Conclusão

A trajetória constitucional brasileira mostra que a exigência de licença para processar parlamentares foi superada como parte do amadurecimento democrático. Sua reintrodução representa retrocesso institucional e afasta o Parlamento de sua função republicana.

Um ponto simbólico é a prioridade dada ao tema. Em meio a uma crise de confiança nas instituições, com pressão popular crescente por maior transparência e responsabilização, a escolha do Congresso de priorizar a PEC 3/21 transmite uma mensagem que desonra o Parlamento Brasileiro, algo profundamente debatido na década de 90.

A PEC 3/21 converte o Legislativo em um sindicato legislativo, preocupado em blindar seus membros, e não em representar o povo. Não corrige excessos judiciais, não melhora o sistema de justiça e não resolve os supostos problemas de “ativismos”. O caminho para restaurar a confiança não é a blindagem - muito menos a sabotagem dos mecanismos constitucionais de controle -, mas a responsabilidade e a transparência, sem “câmaras” secretas.

Como advertiu Madison, quando os representantes deixam de ser leais ao povo e à Constituição, o edifício republicano começa a ruir.

________

Referências

SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição nº 02/1995, disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=9311414&ts=1681128631823&disposition=inline

MADSON, James. Federalista nº 57. A alegada tendência do novo plano de elevar os poucos em detrimento dos muitos, considerada em conexão com a representação. New York Packet, terça-feira, 19 de fevereiro de 1788.

Herick Feijó Mendes
Advogado, mestre em Cidadania/Direitos Humanos, especialista em Direito Público, Professor de Direito na Unama/RR

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