Introdução
O princípio do ne bis in idem, consolidado no direito sancionador, estabelece que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato. Embora clássico no Direito Penal, sua incidência tem se expandido para a esfera administrativa, especialmente em setores regulados como o financeiro. A sobreposição de esferas sancionatórias - judicial e administrativa - tem gerado situações em que empresas são condenadas em juízo e, paralelamente, alvo de sanções administrativas do Bacen - Banco Central do Brasil, pelo mesmo comportamento.
O que é o SCR
O SCR - Sistema de Informações de Crédito do Banco Central é um banco de dados que reúne informações sobre operações de crédito contratadas por pessoas físicas e jurídicas junto ao sistema financeiro nacional, regulamentado pela resolução CMN 5.037/22. Sua finalidade é dupla: de um lado, fornecer às instituições financeiras subsídios para análise de risco de crédito; de outro, permitir ao Bacen supervisionar a exposição e a saúde do sistema financeiro.
As instituições financeiras são obrigadas a alimentar o SCR com informações periódicas, conforme art. 5º e 6º c/c com o § 4º da recomendação, sob pena de responsabilização administrativa. Por isso, eventuais falhas no envio ou na qualidade dos dados podem ensejar sanções pelo Bacen, além de repercussões judiciais em litígios individuais.
O caso concreto
Imagine o seguinte ciclo: autores litigam em juízo alegando que foram "negativados" ou que a informação prestada no SCR os impediu de conseguir financiamentos para imóveis ou outros bens. De um lado, existem estes litígios judiciais. Do outro, em reação ao alto volume de processos, a instituição financeira, por precaução, deixa de prestar as informações devidas ao Bacen. Em consequência, o Bacen instaura um processo administrativo para sancionar a instituição exatamente por essa omissão. Assim, o mesmo fato - a informação sobre a operação de crédito - gera duas penalidades distintas: uma na esfera judicial e outra na administrativa.
O problema do duplo sancionamento
A sobreposição de sanções afronta a lógica do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88), da proporcionalidade e da própria segurança jurídica. A empresa é compelida a responder e a sofrer punições em esferas diversas por um mesmo ato, configurando o bis in idem. Essa duplicidade fragiliza a segurança jurídica e a previsibilidade do sistema.
SCR na jurisprudência: A superação do entendimento de 2014
Em 2014, o STJ proferiu um acórdão no REsp 1.365.284/SC que, embora reconhecesse que o SCR não podia ser equiparado aos cadastros de inadimplentes como o SPC e o Serasa, também indicou que ele "tem a natureza de cadastro restritivo de crédito". Esse julgado de 2014 tem sido citado, sem a devida contextualização, em petições iniciais de ações que discutem a inclusão de dados no SCR.
A peculiaridade do banco de dados SCR é que ele armazena informações positivas e negativas, tornando-o um sistema múltiplo. Seu objetivo primário é o monitoramento e fiscalização do sistema financeiro, e não a restrição de crédito. O resultado do perfil de crédito do consumidor é fruto de suas próprias ações, refletindo a cada momento a realidade dos dados e informações sobre suas operações de crédito. Diversos Tribunais de Justiça, por meio de seus Núcleos de Gerenciamento de Precedentes e Centros de Inteligência, têm emitido notas técnicas para esclarecer a real natureza do SCR e combater a "litigância anômala, possivelmente abusiva".
Intersecção entre Judiciário e Bacen: Uma análise estratégica
A discussão sobre o bis in idem na regulação bancária exige mais do que uma leitura principiológica. É preciso encarar a realidade institucional, onde a sobreposição de sanções entre o Banco Central e o Poder Judiciário não é apenas possível - é recorrente. E isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas a própria racionalidade do sistema sancionador.
A forma como o SCR é atualizado gera um ponto de atrito. Conforme orientação do Bacen, o SCR - Relatório de Empréstimos e Financiamentos não é atualizado imediatamente após o pagamento da dívida. Os bancos enviam as informações uma única vez por mês. Para ver se a dívida foi paga, o consumidor pode consultar o relatório no final do mês seguinte ao pagamento.
É crucial notar que, conforme o próprio Bacen explica em seu site, "O sistema não limpa o histórico e a dívida continuam aparecendo nas datas em que ficou atrasada". Caso o relatório do mês do pagamento já esteja disponível, mas os dados não tenham sido atualizados, pode ser que o banco ainda não tenha enviado as informações do SCR para o Banco Central.
A necessidade de uniformização de entendimentos sobre o SCR no Judiciário encontra respaldo na nota técnica 17 da presidência do TJ/TO, elaborada pelo NUGEPAC. O documento reforça que a atuação do Judiciário deve ser voltada a combater a "litigiosidade anômala, possivelmente abusiva" constatada em relação ao SCR. O CIJEBA - Centro de Inteligência da Justiça Estadual da Bahia publicou a nota técnica 03/25 que relata a atuação conjunta de advogados que ajuizaram mais de 700 ações contra a Serasa S.A., utilizando documentos adulterados e narrativas padronizadas. O documento alerta magistrados para a necessidade de cautela no exame das iniciais, com verificação rigorosa dos comprovantes de inscrição em cadastros restritivos e adoção de medidas de repressão à litigância de má-fé.
Trata-se de um alerta: a duplicidade sancionadora não é apenas injusta - é institucionalmente disfuncional. Quando o mesmo fato gera punições em duplicidade, o sistema deixa de proteger o interesse público e passa a sufocar a atividade econômica.
Esse tipo de orientação demonstra que o Poder Judiciário já reconhece os riscos de multiplicação artificial de litígios e a importância de evitar tanto a fraude quanto a aplicação de sanções em duplicidade, reforçando o princípio do ne bis in idem como baliza para um sistema regulatório mais equilibrado.
O Judiciário, por sua vez, precisa reconhecer os limites da atuação administrativa. Decisões judiciais que replicam sanções já aplicadas pelo Banco Central não apenas violam garantias fundamentais, como também corroem a credibilidade da regulação. A separação entre as esferas não é decorativa - é um pilar da legalidade.
Caminhos possíveis
A regulação bancária exige precisão técnica, mas também maturidade institucional. O enfrentamento do bis in idem não se resolve com ajustes pontuais - exige compromisso com a coerência normativa e respeito à lógica sancionadora. A fim de uniformizar o entendimento de que o SCR não é um cadastro de inadimplentes, é fundamental que haja mais publicidade em sites como o Consumidor.org e, inclusive, campanhas informativas em TV aberta e redes sociais.
Para uniformizar o entendimento de que as discussões sobre o tema, realizados em 2014, já foram superados, a nota técnica 17 do TJ/TO sugere a instauração de um IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Este mecanismo, previsto no CPC, tem por objetivo uniformizar o entendimento de um tribunal sobre uma questão de direito que se repete em múltiplos processos, evitando decisões conflitantes e aumentando a segurança jurídica. O respeito ao princípio do ne bis in idem deve ser reafirmado em regulação, jurisprudência e prática institucional.
Conclusão
O combate a irregularidades no setor financeiro é essencial, mas não pode ser feito às custas de uma duplicação sancionatória. O bis in idem compromete a previsibilidade do sistema, fragiliza a confiança no Bacen e coloca em risco a própria integridade do ambiente regulatório. A resposta do Estado deve ser firme, mas única e proporcional, preservando tanto a disciplina do mercado quanto os direitos fundamentais dos regulados.