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Regras, linguagem e imputação: Wittgenstein além do psicologismo penal

Neste artigo trato da prática de seguir regras como fundamento objetivo da responsabilidade penal.

30/9/2025

Se quisermos reconstruir a dogmática penal com base racional e constitucional, é preciso abandonar a ideia de que a imputação pode se sustentar em estados mentais presumidos ou em ficções psicológicas. A partir da filosofia de Ludwig Wittgenstein, especialmente em sua segunda fase, defendo que o conceito de seguir regras é a chave para uma teoria da imputação penal que se funda na objetividade e na linguagem, e não na introspecção.

Nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein sustenta que “seguir uma regra” não é algo que se possa fazer em isolamento. A regra é sempre social. Ela só faz sentido em um contexto compartilhado. Esse é o primeiro ponto fundamental para o Direito Penal: não há imputação legítima fora do espaço público da linguagem e da normatividade.

A consequência é clara: imputar uma conduta dolosa ou imprudente não é identificar uma vontade interna, mas reconhecer se o agente, dentro de uma forma de vida, praticou uma ação com sentido típico. E esse sentido não se constrói por introspecção judicial, mas pela análise objetiva das regras do jogo de linguagem jurídica.

Wittgenstein desmonta o mito de uma linguagem privada, e com isso desmonta também a ideia de que podemos conhecer com certeza os estados interiores de outra pessoa. Isso nos obriga a repensar radicalmente a teoria do dolo. A vontade, que sempre foi tratada como essência do dolo, não pode ser presumida ou intuída, ela deve ser manifestada em conduta. Isso significa que a imputação dolosa exige prova da ação significativa, e não da suposta aceitação interna do risco.

Essa perspectiva elimina qualquer base legítima para o “dolo eventual”, tal como concebido na dogmática penal contemporânea. Dizer que o agente “assumiu o risco” é afirmar que ele seguiu uma regra, a regra que define a tipicidade dolosa, mesmo sem praticar os atos que essa regra exige. Trata-se de uma contradição. Como já afirmou Wittgenstein: “Acreditar que se está seguindo uma regra não é o mesmo que segui-la”. O dolo eventual é a crença do juiz de que o agente agiu com dolo, sem que ele tenha, objetivamente, praticado a ação dolosa. Isso compromete toda a legitimidade da imputação.

Na teoria significativa da imputação, proponho outra via: reconstruir o dolo como prática de linguagem. Isso significa que o dolo deve ser reconhecido quando, no contexto das regras do jogo penal, a ação do agente expressa, com clareza, a vontade de alcançar o resultado típico. Nada além disso. O que não for vontade manifesta, mesmo se previsto, mesmo se tolerado, será imprudência consciente, e deverá ser classificada com base na previsibilidade e na gravidade da omissão.

A ideia de seguir uma regra tem, portanto, implicações profundas para o conceito de responsabilidade penal. Seguir uma regra, como bem observa Wittgenstein, é praticar uma conduta conforme um padrão público, verificável, interpretável por outros. Esse é o ponto central: o Direito Penal é uma prática pública, e a imputação deve ser compreendida como descrição de condutas dentro das regras desse jogo.

É nesse sentido que a filosofia de Wittgenstein dialoga com as ideias de Tomás Salvador Vives Antón, autor que compreendeu com profundidade a fusão entre linguagem e ação. Para Vives, ação e linguagem não seguem mais caminhos paralelos, elas coincidem. A ação penalmente relevante é, portanto, uma ação com sentido normativo, interpretável nos termos do jogo de linguagem jurídico. Essa perspectiva nos permite abandonar as categorias psicológicas que contaminam a dogmática tradicional e avançar para uma imputação penal verdadeiramente objetiva.

A imputação, nesse modelo, não é um juízo sobre o “interior” do agente, mas uma reconstrução de sua ação com base nos critérios públicos do Direito. Isso exige que a conduta seja descrita a partir de seus caracteres significativos e confrontada com os quesitos significativos estabelecidos pelas normas. A partir desse confronto, é possível identificar se houve ou não dolo, ou, se ausente a vontade manifesta, qual foi o grau de imprudência presente.

Essa proposta tem uma consequência adicional: fortalece o Estado de Direito. Ao substituir presunções por critérios normativos objetivos, afasta-se o arbítrio judicial e reforça-se o papel das regras como limites à imputação. O juiz não pode presumir a vontade, ele deve demonstrar, com base na ação significativa do agente, que a regra foi seguida. Do contrário, estará projetando sobre o réu uma ficção incompatível com os princípios constitucionais.

Portanto, o conceito de “seguir uma regra”, em Wittgenstein, não é apenas uma reflexão filosófica abstrata. É um fundamento normativo concreto para uma nova teoria da imputação. Regras são práticas, e práticas são formas de vida. A conduta penalmente relevante deve ser interpretada como parte de uma dessas formas, como um jogo normativo em que os sentidos são públicos, verificáveis, e jamais ocultos.

No Direito Penal, a linguagem não é apenas meio de expressão. É o próprio campo onde se joga o sentido da ação. Por isso, qualquer teoria da imputação que ignore a filosofia da linguagem incorre em erro epistemológico. E qualquer sistema de responsabilidade que aceite o dolo eventual, sem manifestação da vontade típica, incorre em erro dogmático, e, mais grave, em injustiça constitucional.

Concluir que uma pessoa agiu com dolo exige, portanto, que ela tenha efetivamente seguido a regra do dolo. E isso não se presume. Isso se demonstra, com base na linguagem da ação, nas regras do jogo, e nos critérios da imputação significativa.

Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá
Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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