A recente operação da Polícia Federal revelou um esquema bilionário de descontos indevidos promovidos por associações, que, sob o pretexto de oferecer benefícios, retiravam mensalmente pequenas quantias diretamente dos benefícios previdenciários. É grave, sem dúvida. Mas, paradoxalmente, não é o maior problema que atinge os aposentados brasileiros. Esse tipo de fraude, embora bilionário, é relativamente simples de identificar, provar e reverter judicialmente (doutrina denomina de casos simples: subsunção dos fatos a norma e o substrato é o resultado jurídico).
O verdadeiro escândalo reside em algo mais profundo e mais sofisticado: a atuação predatória das instituições financeiras sobre aposentados e pensionistas, ao que parece, com a complacência do INSS, uma vez que vestem roupagem de licitude.
O crédito consignado, que deveria ser uma ferramenta de acesso facilitado a recursos, transformou-se em armadilha permanente. Idosos são induzidos a acreditar que depósitos feitos em suas contas são benefícios previdenciários, quando na realidade se tratam de empréstimos com juros abusivos. Esses contratos são sucessivamente renovados, num ciclo de endividamento sem fim, que consome silenciosamente a renda mínima destinada à sobrevivência.
O drama se agrava porque muitos desses idosos sequer compreendem as condições do contrato. Eles acreditam, de boa-fé, que abrir conta em determinado banco ou aderir a um serviço é requisito para receber o benefício do INSS. Essa indução, baseada em informação distorcida, constitui um mecanismo de captura psicológica e financeira, que explora a vulnerabilidade e transforma a aposentadoria em mercadoria.
Mais alarmante ainda é a suspeita de que instituições financeiras tenham acesso privilegiado a decisões judiciais antecipando-se até mesmo aos advogados dos beneficiários, através de automação e bancos de dados públicos usando scripts para monitorar milhares de processos para identificar quando há decisões favoráveis com a finalidade de assédio contra pessoas vulneráveis.
As instituições financeiras entram em contato com os aposentados e pensionistas assim que uma decisão lhes é favorável, induzindo-os a contratar serviços e abrir contas sob a falsa aparência de obrigação legal. Esse comportamento, além de antiético, coloca sob suspeita a integridade do próprio sistema de informações judiciais e ameaça o sigilo da relação entre cliente e advogado.
Não se pode perder de vista que os descontos indevidos - sejam oriundos de associações ou de bancos - passam pelo sistema sob gestão do INSS. Ou seja, não há fraude que se concretize sem que a autarquia autorize, registre e processe o desconto. O INSS deveria atuar como fiscalizador e guardião da legalidade, barrando operações suspeitas e exigindo autenticação robusta dos contratos.
Ao se omitir nesse dever de fiscalização, o INSS incorre em responsabilidade civil do Estado por omissão, nos termos do art. 37, §6º da CF/88. Se o Estado tem o dever de proteger e não age, responde pelos danos causados ao cidadão, de modo que não basta alegar que a fraude foi praticada por terceiro; a permissividade sistêmica é o que a torna possível.
E o que torna esse quadro ainda mais perturbador é a cortina de fumaça que encobre o tema.
Enquanto operações policiais contra associações fraudulentas ganham manchetes, o drama estrutural da exploração bancária permanece fora do debate nacional. Instituições, Congresso e até órgãos de controle fecham os olhos para o maior escândalo silencioso da Previdência. O Brasil inteiro parece mobilizado para não falar do assunto - e o silêncio é cúmplice.
O resultado é devastador. Um desconto de R$ 200 ou R$ 300, aparentemente modesto, pode significar para um idoso a impossibilidade de comprar medicamentos, pagar aluguel ou garantir alimentação básica. Não se trata apenas de fraude financeira, mas de uma violação direta à dignidade da pessoa humana e ao dever constitucional de amparo à velhice. O que era para ser um benefício de proteção social se converte em canal de espoliação financeira.
A CF/88 prometeu dignidade, segurança e proteção à velhice. O que vemos, porém, é a institucionalização do oposto: um sistema em que bancos se enriquecem às custas da miséria dos aposentados e o INSS, ao não fiscalizar, se torna conivente. O que está em curso não é apenas um crime contra consumidores vulneráveis, mas um roubo institucionalizado da velhice - talvez o maior escândalo silencioso da Previdência brasileira.
O Poder Judiciário, de onde se esperava o refrigério, sobreveio perpetuação da espoliação sob o pretexto de aguardar uma resposta estrutural.
O STF afetou em repercussão geral a discussão sobre a legalidade dos descontos em benefícios previdenciários, mas o fez a partir de uma fundamentação preocupante. A decisão determinou “a suspensão da prescrição das pretensões indenizatórias de todos os lesados” para “inibir a advocacia predatória, reconhecer os direitos dos cidadãos e proteger o patrimônio estatal, conferindo-se segurança jurídica para a sociedade brasileira”.
A decisão parte de uma lógica equivocada. Em primeiro lugar, ao criminalizar genericamente a advocacia, coloca sob suspeita milhares de profissionais sérios que atuam em defesa de aposentados lesados, deslocando o debate do foco central: o abuso das instituições financeiras. Em segundo lugar, menciona o “cidadão lesado” - mas, paradoxalmente, lhe retira a via do processo individual ao suspender todas as ações, fazendo com que o direito invocado permaneça letra morta enquanto o STF não decide. Por fim, invoca a proteção ao patrimônio estatal, invertendo valores constitucionais: o vulnerável aqui não é o Tesouro, mas o aposentado que sobrevive com um salário mínimo.
Portanto, não bastasse as premissas equivocadas da suspensão, na prática gera demora e sofrimento aos aposentados e pensionistas, pois as demandas individuais ficam paralisadas sem qualquer solução imediata.
Para bem da verdade, é mais um resultado do fenômeno que se repete no Brasil contemporâneo: sob a justificativa de evitar um número elevado de demandas, questões que envolvem o Estado ou grandes corporações, com repercussão massiva sobre a sociedade, são artificialmente concentradas no microssistema de julgamento de demandas repetitivas. Esses expedientes, que deveriam uniformizar a jurisprudência e dar eficiência a prestação jurisdicional, acabam servindo como instrumento para inibir o acesso à Justiça. O que se apresenta como racionalização processual, na prática, transforma-se em negação do direito fundamental de ação (art. 5º, XXXV, CF), perpetuando o sofrimento dos hipervulneráveis.
No fim das contas, a recente operação da Polícia Federal contra fraudes das associações não passa de um movimento que olha apenas para o suricato da savana: pequeno, barulhento, chamando atenção, mas sem ser o verdadeiro predador. O perigo real, o leão que devora silenciosamente a carne e o sangue da velhice brasileira, são os bancos - que, com a conivência do INSS e o silêncio institucional, transformaram o benefício previdenciário em pasto de lucro infinito.