Introdução
A REURB - Regularização Fundiária Urbana em áreas de domínio da União representa um dos mais complexos desafios do Direito Urbanístico e patrimonial brasileiro. Embora a legislação Federal, em especial a lei 13.465/17, o decreto 9.310/18 e a portaria SPU 2.826/20, tenha estabelecido instrumentos e diretrizes para viabilizar a inclusão fundiária, a realidade prática revela entraves que ultrapassam a mera edição de normas. A conjugação de questões dominiais históricas, limitações administrativas, lacunas na articulação entre entes federativos e exigências ambientais cria um cenário no qual a efetiva implementação da REURB se torna, ao mesmo tempo, urgente e desafiadora.
Nesse contexto, compreender os obstáculos que permeiam o processo é essencial para quem atua na esfera pública, na advocacia imobiliária e na gestão de políticas urbanas. Mais do que identificar falhas estruturais, a análise desses entraves permite vislumbrar caminhos para o aperfeiçoamento da política de regularização, capaz de assegurar segurança jurídica, garantir o direito à moradia e, sobretudo, dar destino adequado ao vasto patrimônio público Federal. O presente artigo examina os principais pontos críticos dessa agenda, destacando os aspectos dominiais, institucionais e registrais que condicionam o sucesso ou o fracasso da REURB em áreas da União.
A discussão sobre a efetiva implementação da REURB - Regularização Fundiária Urbana em áreas de domínio da União revela um conjunto de desafios que se repetem em praticamente todos os Estados e que precisam ser enfrentados de forma articulada para que a política de inclusão fundiária produza os resultados esperados.
Principais desafios na implementação da Reurb em áreas da União
O primeiro ponto crítico é a delimitação e caracterização das áreas de domínio da União. Em grande parte do litoral brasileiro, a linha do preamar médio de 1831, marco legal para definição de terrenos de marinha, ainda não foi devidamente demarcada nem homologada. A ausência de matrículas em nome da União e a falta de publicidade adequada dos atos de incorporação de áreas de antigas autarquias federais, como os imóveis da extinta RFFSA, geram uma imprecisão dominial que compromete a segurança jurídica. Essa indefinição sobre quais áreas são públicas e quais pertencem a particulares cria uma assimetria informacional que trava o início de muitos processos de regularização.
Um segundo desafio está na capacidade técnica e na integração entre os entes federativos. A REURB exige elaboração de plantas, levantamentos topográficos, estudos urbanísticos e ambientais, além de forte coordenação administrativa. No entanto, muitas prefeituras não dispõem de equipes multidisciplinares qualificadas nem de comissões internas dedicadas ao processamento da REURB. A própria SPU enfrenta déficit de servidores em seus escritórios regionais. Essa carência, somada à falta de comunicação sistemática entre municípios, Estados e a União, retarda a celebração de acordos de cooperação técnica e compromete a execução da política de regularização fundiária.
O terceiro eixo de debate é a baixa efetividade da REURB-E, a modalidade de interesse específico de caráter oneroso. Apesar de já regulamentada pela lei 13.465/17 e pela portaria SPU 2.826/20, observa-se uma resistência da SPU em analisar e processar pedidos de alienação de áreas federais por venda direta. Essa postura limita a regularização dominial de particulares que desejam adquirir seus imóveis e também priva a União de uma relevante fonte de arrecadação patrimonial. Paralelamente, há restrições legais e ambientais expressivas: a lei 6.766/1979 veda o parcelamento do solo em determinadas áreas; a lei 13.240/15 impede a alienação de imóveis em faixa de fronteira de 150 km, em faixa de segurança costeira de 30 metros a partir do final da praia e em Áreas de Preservação Permanente. Como muitas áreas federais localizam-se em zonas litorâneas e ambientalmente sensíveis, a conjugação dessas vedações dificulta a alienação do domínio pleno e obriga o uso de instrumentos alternativos como a Concessão de Direito Real de Uso.
Outro ponto que merece destaque é a necessidade de maior integração com os cartórios de registro de imóveis e de harmonização normativa. A legislação Federal define as diretrizes gerais, mas a execução registral depende dos Códigos de Normas da atividade extrajudicial, editados pelas Corregedorias dos Tribunais de Justiça de cada Estado. Em muitos casos, essas normas ainda não contemplam de forma detalhada os procedimentos da REURB em áreas da União, o que resulta em exigências documentais divergentes, prazos indefinidos e insegurança no momento da abertura de matrículas em nome da União ou do registro do respectivo título. Sem a atualização desses códigos e a padronização de procedimentos, mesmo processos bem estruturados pela SPU e pelos municípios correm risco de atraso ou de interpretações conflitantes.
Também é essencial discutir o mérito das diferentes formas de titulação utilizadas na REURB em áreas da União. Hoje convivem vários caminhos titulatórios muito diversos, cada um com efeitos jurídicos distintos e que levantam questionamentos quanto à real efetividade da regularização. De um lado, temos a legitimação fundiária, forma originária de aquisição da propriedade, nos parece o instrumento mais efetivo, seguro e versátil, mas infelizmente a AGU entende não ser possível sua aplicação à Reurb de interesse específico. Por outro lado, temos ainda a transferência de domínio pleno, realizada por venda direta ou, em casos de REURB-S, por doação gratuita. Essa modalidade, assim como a legitimação fundiária, entrega ao beneficiário a propriedade plena, com matrícula individualizada em seu nome, garantindo a máxima segurança jurídica. Entretanto, nas hipóteses de doação para famílias de baixa renda a legislação impõe um período de inalienabilidade de cinco anos. A intenção é evitar a especulação e assegurar a função social da terra, mas na prática essa restrição pode limitar a autonomia do beneficiário e dificultar o acesso a crédito ou a eventual necessidade de alienação em situações de emergência. Sob essa ótica, é possível criticar a regra de inalienabilidade, pois ela desconsidera as diferentes realidades econômicas das famílias e acaba criando um título que, embora pleno, carrega uma limitação temporária relevante.
Em outro extremo está a inscrição de ocupação, ato meramente administrativo da SPU. Embora reconheça a presença do ocupante, a inscrição tem caráter precário e revogável, não constitui direito real e depende da conveniência e oportunidade da União. Na prática, não oferece a estabilidade que se espera de um processo de regularização fundiária. O ocupante inscrito permanece vulnerável, sem a plena segurança de posse, com dificuldades para obter financiamento, transferir o imóvel ou planejar investimentos de longo prazo.
Entre esses dois polos surgem instrumentos intermediários, como a Concessão de Direito Real de Uso, que confere ao beneficiário um direito real registrável e transmissível, garantindo estabilidade semelhante à da propriedade, mas preservando o domínio público. A CDRU tem se mostrado, em muitas situações, um caminho equilibrado, pois protege o interesse público e, ao mesmo tempo, dá ao ocupante condições de investir e planejar o uso do imóvel.
O mérito das titulações, portanto, não se resume a uma questão formal. Ele revela a necessidade de repensar a política de regularização: evitar que o título gratuito se transforme em um direito limitado demais e, ao mesmo tempo, superar a precariedade da inscrição de ocupação, que não cumpre a promessa de segurança jurídica. É nesse ponto que a REURB em áreas da União precisa amadurecer, para que os títulos emitidos correspondam, de fato, à expectativa de inclusão social e estabilidade dominial que justificam toda a política pública.
Conclusão
Conclui-se que a plena efetivação da REURB em áreas de domínio da União depende de um conjunto de ações coordenadas que vão muito além da edição de leis e portarias. É imprescindível enfrentar, em primeiro lugar, a indefinição dominial de vastas porções do território Federal, sobretudo no litoral, onde a ausência de demarcação da linha do preamar médio de 1831 e a falta de matrículas em nome da União comprometem a segurança jurídica de todo o processo. Sem essa base cartorial sólida, qualquer tentativa de regularização se inicia em terreno instável.
Da mesma forma, o sucesso da política passa pela ampliação da capacidade técnica e de gestão tanto da SPU quanto dos municípios, que são os protagonistas na elaboração de projetos urbanísticos e ambientais. Sem quadros qualificados e sem Acordos de Cooperação Técnica devidamente celebrados, a REURB continuará restrita a experiências pontuais e aquém de seu potencial social e econômico. A baixa adesão da modalidade de interesse específico (REURB-E) e a resistência à alienação onerosa de imóveis Federais demonstram que também é preciso uma mudança de postura institucional, que reconheça na venda direta e na titulação dominial não apenas uma fonte de arrecadação, mas um instrumento de pacificação fundiária e de inclusão.
Outro ponto crucial é a necessidade de integração efetiva com os cartórios de registro de imóveis e de harmonização dos Códigos de Normas estaduais, de modo a assegurar uniformidade, celeridade e segurança no registro dos títulos emitidos. A ausência de padronização dificulta a abertura de matrículas e gera exigências desproporcionais que atrasam ou inviabilizam regularizações já amadurecidas.
Por fim, a própria escolha do instrumento de titulação exige revisão crítica. A legitimação fundiária, embora segura e versátil, ainda encontra restrições interpretativas; as doações com cláusula de inalienabilidade de cinco anos, embora bem-intencionadas, limitam a autonomia das famílias e dificultam o acesso a crédito; e a inscrição de ocupação, ato administrativo precário, não oferece a segurança jurídica esperada. Entre esses extremos, a Concessão de Direito Real de Uso surge como alternativa equilibrada, garantindo estabilidade ao ocupante sem afastar o interesse público.
Superar esses desafios significa avançar para uma REURB que seja, ao mesmo tempo, juridicamente sólida e socialmente efetiva, capaz de dar destino adequado ao patrimônio público Federal, conferir segurança dominial a milhares de famílias e transformar a regularização fundiária em verdadeira política de inclusão e desenvolvimento urbano.