1. Prefácio a uma distopia anunciada
Imagine um episódio distópico em que cada gesto seu - o cafezinho atrasado, a mensagem não respondida, o deslize na fila do banco - é convertido em pontos que determinam se você pode viajar, contratar um serviço ou matricular seu filho na escola. Se o leitor imaginou a China, errou parcialmente. Na terra do Big Tech, as notas sociais são abertamente distribuídas; por aqui, preferimos fingir que somos imunes enquanto também construímos, silenciosamente, um sistema de pontuação moral. Esta é a tese que defendo há anos: não basta criticar o crédito social chinês quando já praticamos a fishing expedition, o doping processual, pontuamos o melhor agente para ver se é merecedor dos benefícios da colaboração premiada, e a “cultura do score” em nossa rotina forense. É preciso mirar o espelho e reconhecer que nosso processo penal é um laboratório de crédito social às avessas.
O presente artigo pretende ampliar o foco, sem esgotar a matéria, para demonstrar como a lógica de pontuação moral atravessa a geopolítica (lei Magnitsky) e infiltra-se no cotidiano do Direito Penal brasileiro.
2. A vitrine chinesa e a moral ocidental
É comum associar o crédito social ao experimento chinês. Reportagens apontam que as autoridades de Pequim vêm construindo um sistema de classificação moral, atribuindo notas sociais baseadas em comportamentos financeiros, administrativos e até na “moralidade” de cada indivíduo. Segundo relatos, penalidades incluem redução da velocidade da internet, restrição de viagens e proibição de acesso a certos serviços públicos e privados1.
Critica-se a distopia alheia enquanto se ignora que, no Ocidente, parece que estamos trilhando o mesmo caminho dos comunistas, quando punimos adversários políticos com sanções seletivas.
A lei global Magnitsky, sancionada nos Estados Unidos em 2016, autorizou o presidente a congelar bens, cancelar vistos e encerrar contas bancárias de estrangeiros acusados de violações de direitos humanos ou corrupção. Trata-se de uma espécie de crédito social extraterritorial: autoridades norte-americanas criam uma lista do que eles seletivamente entendem como “inimigos da democracia” e lhes aplicam punições sem contraditório.
A inclusão do ministro Alexandre de Moraes e de sua esposa no rol de sancionados expuseram a face política do mecanismo. Conforme noticiado, a possibilidade de sanção com base na lei Magnitsky resultou na revogação do visto norte-americano não apenas de Moraes, mas também de outros ministros e autoridades brasileiras, sob a justificativa de supostas violações de direitos humanos ou corrupção. Embora não exista processo judicial no país de origem dos sancionados, o governo dos EUA decide unilateralmente quem é “pessoa do bem” ou “pessoa do mal”, determinando o acesso ou a exclusão do território e também do sistema financeiro. Trata-se de um mecanismo de pontuação moral extraterritorial: a etiqueta arbitrariamente colocada no sujeito considerado violador de direitos humanos funciona como um “score” que condiciona a liberdade de viajar e movimentar recursos, aproximando-se da lógica do crédito social chinês que o Ocidente tanto critica.
Ao mirar autoridades estrangeiras e puni-las com restrições de viagem e crédito, os Estados Unidos reproduzem, sob outro nome, uma lógica similar à do crédito social. A norma traduz julgamentos morais e políticos em restrições concretas, sem transparência ou devido processo. Assim como na China, quem está no “lado errado” do score pode ser impedido de voar, abrir contas ou acessar serviços financeiros. Esses casos mostram que o Ocidente também opera uma forma de “store social” estatal, na qual reputação e alinhamento político são determinantes para desfrutar de direitos básicos de locomoção e propriedade.
Viu-se, enfim, que o Ocidente apenas espelhou o Oriente.
3. Pontuação moral e processo penal brasileiro: A experiência interna
No Brasil, o discurso punitivista encontrou um aliado refinado: o Direito Penal negocial2. O ANPP - acordo de não persecução penal e os acordos de leniência inauguram uma lógica de reputação: empresas com programas de compliance robustos e indivíduos com a etiqueta de “colaboradores” acumulam créditos que lhes permitem negociar benefícios. Quem não exibe a certificação moral é jogado no banco dos réus, criando assimetrias e permitindo que a conveniência estatal substitua a legalidade. Observa-se, assim, a transposição do crédito social para o mundo corporativo: há bônus para os que performam boa fé e sanções para os recalcitrantes.
O art. 59 do CP determina que o juiz, ao dosar a pena, considere a conduta social, a personalidade e os antecedentes. O dispositivo, em vez de limitar a discricionariedade, legitima uma auditoria moral da vida do réu. Assim, a “pontuação negativa” se inicia muito antes do julgamento: quem é negro, pobre e periférico já traz uma marca invisível que agrava sua pena. Como afirmei em outros textos3, a criminalização antecipada de determinados grupos alimenta um crédito social às avessas, no qual a presunção de perigosidade pesa mais do que os fatos.
A prisão preventiva, é outro exemplo. Sob o pretexto de “garantir a ordem pública”, transformou-se em mecanismo de predição. Os magistrados operam uma tabela mental de risco e decretam prisões para evitar supostos delitos futuros, sem qualquer base empírica. Essa antecipação penal é endossada por jurisprudência complacente. A distância entre o texto e a prática revela um crédito social negativo: o sujeito já nasce devendo e vai preso não pelo que fez, mas pelo que se imagina que fará.
Ao final, percebe-se que as colaborações premiadas são o ápice do score no utilitarismo punitivo. Ao premiar o delator que entrega informações úteis, o Estado cria uma bolsa de pontos: não importa a culpabilidade, mas o valor do serviço prestado. Quem colabora acumula créditos que podem valer anos de liberdade; quem permanece em silêncio, ainda que inocente, arca com a pontuação negativa.
Os episódios de fishing expedition4, denunciados em nosso livro e reconhecidos pelo STJ e pelo STF, exibem outra face do crédito social. Mandados de busca genéricos, investigações baseadas em “rumores” e requisições de dados sem causa provável criam um cenário de busca de score negativo dos investigados - ou seja, a busca ilegal alcança itens fora da investigação inicial para serem utilizados como barganha na negociata penal. Além disso, conceitos como doping processual revelam o uso estratégico da acusação para vencer a qualquer custo. O ponto central é que, em vez de buscar a verdade, acumula-se um pacote de acusações para negociar acordos ou intimidar o réu. A prática lembra o score chinês: perde pontos quem se recusa a colaborar; ganha quem aceita o jogo.
Se, por um lado, Robert Alexy ensina que a legitimidade das decisões jurídicas depende de justificativas racionais e universais5; por outro lado, podemos notar que contudo, a delação premia a utilidade política e relativiza a legalidade. Ela lembra o score social: reputações variam conforme a conveniência da acusação.
4. Reflexões finais
Chegamos a um ponto em que os discursos se invertem: criticamos a vigilância chinesa enquanto aceitamos a pontuação moral nos tribunais, a seleção racial nas abordagens policiais e a diplomacia do score nas relações internacionais.
No campo externo, basta observar a global Magnitsky Act, que permitiu aos EUA congelar bens e revogar vistos de estrangeiros “indesejáveis” sem qualquer devido processo - um “crédito social” travestido de política externa.
No Brasil, a mesma lógica contamina o processo penal. Programas de compliance e acordos de leniência funcionam como certificados de boa conduta; prisões preventivas e colaborações premiadas recompensam o colaborador e punem o obstinado; e até antecedentes e “personalidade” viram moeda para graduar direitos. Empresas e pessoas passam a ostentar um “score” implícito que determina acesso a benefícios ou a sanções. Reclamamos da distopia chinesa, mas nos acostumamos a um crédito social seletivo e invisível que classifica os corpos, racializa a suspeição e naturaliza a punição antecipada.
É urgente, portanto, expor essa mutação e restituir a centralidade dos direitos fundamentais. Enquanto apontamos o dedo para Pequim, nossa prática cotidiana nega a isonomia e o devido processo. A tarefa dos juristas é arrancar o véu desse sistema de pontos, denunciar o jogo de cartas marcadas e resgatar a função garantista do processo penal, lembrando que “civilização” e “punição” são incompatíveis com listas negras e algoritmos morais.
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1 Disponível em: https://www.businessinsider.com/china-social-credit-system-punishments-and-rewards-explained-2018-4
2 Para entender mais sobre o assunto, indicamos o obra Colaboração Premiada, da doutora Luísa Walter da Rosa, Editora EMAIS.
3 Por todos, vide: “A defesa atual demanda uma desconstrução! É preciso desconstruir o imaginário social que tem contaminado o Direito com os discursos de moral da decisão! A legitimidade do Poder Judiciário não decorre da vontade da maioria, mas, sim, do caráter democrático da Constituição[3]. Por isso, é preciso desconstruir o reflexo condicionado para tornar possível que, a começar pelos procedimentos de investigação, denúncia e medidas cautelares, o processo se apresente como um “estímulo neutro” e se desenvolva no salutar ambiente republicano do Estado Democrático de Direito.
É preciso deixar de salivar com os discursos de “combate”, que contaminam e criam mapas mentais paranoicos, impossibilitando um julgamento despido de preconceitos ou julgamentos morais. Como revela Streck[4], é preciso retomar a crítica ao pensamento objetificador, rompendo-se o paradigma da subjetividade, que impede o direito de aparecer naquilo que ele tem de transformador. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-set-07/limite-penal-adocao-metafora-caes-pavlov-campo-direito-penal/
4 Silva, Viviani Ghizoni da. MELO E SILVA, Philipe Benoni. MORAIS DA ROSA, Alexandre. Fishing expedition e encontro fortuito na busca e na apreensão : um dilema oculto do processo penal. 2. ed. Florianópolis: Emais, 2022.
5 ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Madrid, 1997.