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Compra e venda de imóveis: STJ garante devolução mínima de 75% em caso de distrato

STJ define que, em distratos, a retenção não pode ultrapassar 25%, garantindo ao comprador a devolução mínima de 75% dos valores pagos.

2/10/2025

O STJ estabeleceu um novo marco para os contratos imobiliários no Brasil. Em setembro de 2025, a 3ª turma decidiu que, quando houver relação de consumo, as normas do CDC devem prevalecer sobre a lei do distrato (lei 13.786/18). O ponto central é a fixação de um teto global de 25%: ainda que o contrato preveja múltiplos descontos, tais como cláusula penal, despesas administrativas, comissão de corretagem, tributos e até taxa de fruição, a soma de todas essas rubricas não pode ultrapassar esse percentual do que foi pago pelo comprador.

A situação levada ao julgamento do STJ retrata, de forma concreta, a problemática que se repete no mercado imobiliário: Um consumidor, após firmar contrato de compra e venda, desistiu do negócio por não conseguir mais arcar com as parcelas. O juiz de primeira instância determinou a devolução de 80% dos valores já pagos. Em grau de recurso, o TJ/SP reformou a sentença e aplicou a lei do distrato em sua literalidade, permitindo deduções sucessivas que poderiam esvaziar quase por completo a restituição. O STJ, ao apreciar o recurso especial, restabeleceu o equilíbrio, entendendo que a lei setorial não pode afastar a proteção mínima assegurada pelo CDC.

A decisão do STJ põe fim a uma divergência que há anos gerava insegurança nas rescisões de contratos imobiliários. Enquanto parte da jurisprudência aplicava a lei do distrato de forma literal, admitindo retenções sucessivas que favoreciam as incorporadoras, outra parcela dos tribunais recorria ao CDC para limitar esses descontos e resguardar o consumidor. Ao firmar seu entendimento, o tribunal superior não afastou a validade da lei do distrato, mas determinou que ela deve ser interpretada em conformidade com a lógica protetiva do CDC. O efeito prático é a consolidação de um parâmetro uniforme, que oferece maior previsibilidade tanto para os adquirentes quanto para as empresas do setor.

O voto da relatora e as divergências 

A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, delimitou com precisão o alcance da decisão. Em seu voto, registrou:

“Os descontos previstos no art. 32-A da lei 13.786/18 devem ser observados como regra geral. Todavia, quando se tratar de relação de consumo, a soma dos descontos deve respeitar o limite máximo de retenção de 25% dos valores pagos, sob pena de redução.”

O trecho sintetiza a essência do julgamento: a lei do distrato permanece como baliza, mas não pode suprimir a garantia mínima prevista no art. 53 do CDC, que veda a perda integral das parcelas quitadas.

A relatora também afastou a incidência da taxa de fruição no caso concreto, porque se tratava de lote sem edificação, inexistindo qualquer utilização do bem que pudesse justificar essa cobrança. Essa observação reforça que encargos adicionais não podem ser aplicados de forma automática, devendo guardar relação direta com o uso efetivo do imóvel. A decisão, portanto, não apenas fixa um limite numérico, mas também estabelece critérios qualitativos para aferição de retenções legítimas.

A maioria acompanhou o voto da relatora, mas houve divergências. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva entendeu que a lei do distrato, por ser norma especial voltada ao setor imobiliário, deveria prevalecer integralmente sobre o CDC. Na sua visão, a cláusula penal de até 10% não poderia ser considerada abusiva quando expressamente prevista em lei. Já o ministro Moura Ribeiro adotou posição intermediária: reconheceu que a cláusula penal deve respeitar o limite de 25%, mas defendeu a aplicação irrestrita dos demais descontos previstos no art. 32-A.

Embora as divergências revelem que o tema ainda suscita interpretações distintas, o entendimento consolidado estabelece um norte jurídico inequívoco: em relações de consumo, o teto de 25% deve ser observado como limite absoluto, ainda que a legislação setorial autorize outras deduções.

Impactos práticos e institucionais 

Do ponto de vista do consumidor, a decisão representa uma vitória significativa. Ao desistir do negócio, o comprador não ficará mais sujeito a perder praticamente tudo o que investiu, como ocorria em muitos casos sob a aplicação literal da lei do distrato. A previsibilidade de que ao menos 75% das parcelas serão devolvidas dá maior confiança a quem ingressa no mercado imobiliário e reduz a sensação de vulnerabilidade que antes marcava esse tipo de litígio.

Para as construtoras e incorporadoras, a decisão é um convite à revisão contratual. Cláusulas que estabeleçam retenções superiores a 25% em cenários de relação de consumo estão sujeitas à nulidade judicial. Isso não significa inviabilizar os empreendimentos, mas sim adequar práticas à realidade do novo precedente. Contratos mais claros e equilibrados reduzem litígios e fortalecem a imagem de solidez e transparência das empresas diante do público.

A decisão do STJ traz reflexos imediatos para a advocacia, pois estabelece um precedente robusto capaz de orientar a formulação de ações de distrato em diferentes frentes: de um lado, fortalece a defesa dos consumidores que buscam a restituição de valores, e de outro, oferece parâmetros para que as incorporadoras adequem suas teses e práticas processuais ao novo entendimento. Ao mesmo tempo, amplia-se o espaço da advocacia preventiva, que passa a exigir a revisão criteriosa de contratos, a redação de cláusulas compatíveis com a orientação jurisprudencial e a elaboração de estratégias negociais que já considerem o teto de retenção de 25% fixado pelo tribunal. Forma-se, assim, um cenário em que a atuação do advogado não se limita à solução de conflitos, mas assume papel estratégico na antecipação de riscos e na construção de relações contratuais mais equilibradas e seguras.

No plano institucional e econômico, o julgamento fortalece a coerência do sistema jurídico. A lei do distrato buscava dar previsibilidade ao setor, mas sua aplicação literal gerava distorções incompatíveis com a proteção ao consumidor. O STJ, ao harmonizar a legislação setorial com o CDC, confere maior segurança jurídica ao mercado e melhora o ambiente para investidores, fundos e instituições financeiras. A previsibilidade nas rescisões reduz riscos e facilita a circulação de crédito e investimentos no setor imobiliário.

Conclusão

O precedente firmado pelo STJ não extingue a possibilidade de retenções em distratos, mas estabelece um limite objetivo que reposiciona o equilíbrio das relações contratuais no mercado imobiliário. Ao fixar o teto de 25%, o Tribunal assegura ao consumidor a devolução de parcela significativa dos valores pagos, afastando a prática de retenções abusivas, e, ao mesmo tempo, garante às incorporadoras a recomposição de custos efetivamente incorridos, preservando a continuidade da atividade econômica.

Esse entendimento marca um avanço na consolidação de parâmetros mais claros e previsíveis: a liberdade contratual continua reconhecida, mas encontra freio na vedação de cláusulas que imponham ônus desproporcionais ao adquirente. Para os consumidores, traduz-se em proteção concreta; para as incorporadoras, em maior segurança jurídica; e, para a advocacia, em instrumento sólido de atuação tanto no contencioso quanto na esfera consultiva.

Mais do que a solução de um caso específico, o julgamento projeta um novo patamar de maturidade institucional, no qual equilíbrio, transparência e boa-fé devem orientar a redação dos contratos e a condução das negociações. O desafio que se coloca, doravante, é a internalização dessa diretriz por todos os agentes envolvidos, de modo a transformar a jurisprudência em prática efetiva, contribuindo para um ambiente imobiliário mais estável, confiável e juridicamente seguro.

Werberty A. Mariano
Advogado, Servidor Público, Especialista em Direito e Economia pela UNICAMP, atuante em Direito Condominial, Imobiliário e Direito Administrativo.

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