Quando falamos em precatórios, muitas vezes pensamos apenas em cifras bilionárias e em debates fiscais de alto nível. Mas é preciso lembrar que, por trás desses números, existem pessoas reais: idosos que aguardam há décadas pelo recebimento, trabalhadores que venceram causas trabalhistas e pessoas com deficiência que dependem desse recurso para custear tratamentos e qualidade de vida. Para esses credores, cada adiamento, cada mudança de regra, não é apenas uma questão contábil, mas uma ameaça concreta à dignidade.
Antes, os credores tinham expectativa de pagamento em cronogramas estabelecidos pela CF, e havia prioridade garantida para idosos e pessoas com deficiência em parte dos valores. Com a PEC 66/23, que reestrutura o regime de pagamento dos precatórios, esse cenário se torna mais nebuloso. O parcelamento mais extenso, a flexibilização dos limites anuais e a possibilidade de compensações tributárias abrem espaço para que o governo alivie a pressão fiscal, mas transfere o custo da incerteza para quem já espera há anos.
Na prática, quem mais sofre com essas mudanças são justamente os grupos mais vulneráveis. O idoso que esperava usar o recurso para complementar sua aposentadoria pode ver o dinheiro se diluir em correções insuficientes diante da inflação. A pessoa com deficiência, que precisa de liquidez imediata para custear medicamentos e terapias, se depara com a postergação indefinida de algo que já deveria ser certo. E o trabalhador que venceu uma disputa contra o Estado corre o risco de não ver, em vida, o resultado de uma longa batalha judicial.
Esse quadro também gera um efeito perverso sobre o valor dos créditos. Quanto mais distante e incerto o pagamento, maior sua desvalorização. Para quem precisa vender o precatório, o desconto aplicado cresce, ampliando a perda para o credor original. Em outras palavras: a vulnerabilidade desses grupos se converte em fragilidade financeira, e a conta do ajuste fiscal recai sobre quem menos pode absorvê-la.
Do ponto de vista jurídico, a tendência é de aumento na judicialização. Já se antevê um volume maior de ações questionando a constitucionalidade das alterações, bem como pedidos individuais para assegurar prioridade de pagamento. O STF será novamente chamado a arbitrar entre a urgência fiscal do Estado e a proteção de direitos fundamentais. O risco é que, enquanto essa disputa se arrasta, milhares de credores sigam à espera.
É aqui que precisamos pensar em alternativas mais responsáveis. O caminho não pode ser simplesmente adiar indefinidamente uma dívida reconhecida pela Justiça. Construir soluções que conciliem responsabilidade fiscal com justiça social. Fortalecer mecanismos de cessão de precatórios é um caminho: permitir que credores vulneráveis tenham acesso imediato a seus recursos por meio de operações seguras e reguladas, sem perdas desproporcionais. Outro instrumento é a compensação tributária, que pode beneficiar tanto credores quanto o Estado, reduzindo passivos de forma equilibrada. Políticas de maior transparência e previsibilidade nos fluxos de pagamento também ajudariam a devolver confiança ao sistema.
Minha convicção, após mais de duas décadas acompanhando esse mercado, é de que a PEC pode até trazer alívio fiscal temporário, mas às custas de um enorme custo social. Quando o Estado relativiza sua obrigação perante os mais vulneráveis, compromete não apenas a confiança no sistema de Justiça, mas também o pacto mínimo de solidariedade que sustenta uma democracia. O precatório que não chega não é apenas uma dívida contábil: é uma dívida moral.