Há 8 anos, no dia 2/10/17, Florianópolis, a UFSC, o Brasil e o Mundo (intelectual e acadêmico) receberam, perplexos, a notícia da morte de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, em um triste e devastador episódio de suicídio. Um ponto final na vida terrena de quem se sentia sufocado pela humilhação de um processo penal espetacularizado, perseguidor e injusto.
À época, a incredulidade inicial dos fatos convergia com a revolta de quem viu sucumbir às agruras de uma condução persecutória algoz - por parte de quem deveria zelar pelas fundações Constitucionais, como a presunção de inocência, a dignidade da pessoa humana, a legalidade, o contraditório e a ampla defesa - aquele homem, professor, jurista e jornalista, pai e filho. Filho de uma costureira e um operário. Filho da UFSC. De quem viu (e se viu) na academia a razão dos seus porquês, como no livro “Em Busca de Sentido: Um psicólogo no campo de concentração”, do judeu Viktor Frankl, escritor e psiquiatra que sobreviveu ao holocausto.
Só quem experienciou algum tipo de imputação mentirosa, injusta, vil, excessiva e covarde contra si, compreende o amargor de suas palavras desacreditadas, a visão míope da sua honra sendo posta à mesa da dúvida e da surdez da revolta ao ouvir sua trajetória distorcida sendo reverberada na imprensa pelas falácias contadas por quem não detém predicados éticos. “Ouvidos moucos”? De quem?!
Falar de Cau, como carinhosamente era conhecido pelos seus, é difícil e impõe responsabilidades, respeito e zelo; como no processo penal.
Por isso, ao refletir se deveria ou não tornar a escrever sobre o doutor Cancellier, busquei aconselhamento junto a um daqueles amigos que a vida nos presenteia: um homem reto, de sábias palavras, generoso, incentivador e, obviamente, por quem nutro profunda admiração e respeito.
Assim, indaguei ao advogado doutor Ricardo José da Rosa se seria oportuno e sensato escrever um novo artigo sobre o exmo. senhor reitor Cancellier. Afinal, não queria, de forma alguma, ofender os familiares e amigos com a lembrança indesejada dessa tragédia.
Eis que, no alto de sua serenidade, graduado em Direito pela UFSC de Cancellier, no ano de 1972, escritor reconhecido e imortal fundador da venerável Academia Catarinense de Letras Jurídicas, a ACALEJ - onde Luiz Carlos Cancellier de Olivo ocupava honrosamente a cadeira 8 -, o jurista doutor Ricardo José da Rosa me disse que não havia nada mais atroz na história da humanidade do que o holocausto e, nem por isso, deveríamos esquecer o assunto. Pelo contrário! Era nosso dever lembrar, como forma de resistir e impedir que algo assim ocorresse novamente; como no caso de Cancellier.
De fato, a memória, ao longo da história, nunca foi mero registro do que já foi; é meio, é desafio e horizonte! Logo, falar do Holocausto não é celebrar a dor, mas obrigar-nos a enfrentar a prática do mal e as formas de sua banalização. De igual modo, revisitar a morte de Luiz Carlos Cancellier de Olivo - tragédia marcada por uma espetacularização penal implacável - é recusar o silêncio e afirmar, com coragem, que certas formas de violação da dignidade humana não se apagam pelo tempo! E nem devem!
Frisa-se que não se objetiva, aqui, fazer analogias irresponsáveis ou panfletárias entre magnitudes incomensuráveis: o holocausto, com sua dimensão antropológica de genocídio, e o episódio de Cancellier, com suas raízes num sistema jurídico e midiático nacional. Mas, inevitavelmente, questiona-se: que lições o holocausto - como paradigma da memória e da resistência - pode ensinar a quem deseja que o Direito Penal não repita suas liturgias cruéis?
Do holocausto, ante a lição que tive do mestre, aprendemos que o esquecimento é cúmplice da repetição. Quando guardamos silêncio sobre o horror sistemático, damos espaço para que ele se reproduza em outras formas. A memória é o antídoto contra a impunidade invisível; é um compromisso ético com o presente e com o futuro.
Sobre Cancellier, está em jogo não apenas uma vida destroçada, mas o símbolo de uma vulnerabilidade institucional: um indivíduo foi tragado por um sistema que antecipou culpa, celebrou a exposição midiática e exigiu resultado em arena pública antes que o contraditório tivesse vez... que matou!
A espetacularização penal, que tanto denunciamos em outros textos, foi a corrente subterrânea que corroeu as garantias fundamentais. No caso Cancellier, não é exagero dizer que a narrativa já estava consumada antes da verdade ser produzida. O processo já era espetáculo; o réu, peça de um tablado angustiante. Ele, que era reitor da UFSC, afastado de seu cargo e proibido de frequentar seu local de trabalho, vivia uma condição quase teatral de exposição.
Afinal, seja em âmbito nacional ou estadual, não incomum encontrarmos meros indícios (muitas vezes frágeis) ganhando "a notoriedade" de prova cabal e, inclusive, sendo expostos pela imprensa como se fossem uma "chancela de culpabilidade".
Quaisquer que sejam os elementos probantes, devem estes ser analisados com responsabilidade e tecnicidade por quem detém o nobre (e difícil) papel de indiciar, denunciar e julgar alguém.
Todavia, o intento do Estado em punir não pode ser baseado no sedento afã de incriminar alguém; como se a atribuição (de algumas instituições) fosse a míope busca pela imputação penal.
Essa busca deve ser pela verdade dos fatos, pela conseguinte responsabilização criminal baseada em provas (se houver) e, imprescindivelmente, regida pelo digno processo penal.
Indaga-se: quantos outros tiveram seu direito à presunção de inocência preterido e que, após a absolvição dos tribunais, dificilmente puderam desfrutar da liberdade plena por já terem sido "pré-condenados" nos jornais?
Outrossim, não podemos admitir que o teor de um procedimento sigiloso (como o inquérito policial) seja ofertado como pauta nas redações. Senão, estaríamos diante dos justiceiros que buscam nas reportagens, a robustez faltante nos autos sob as suas responsabilidades; e dos oportunistas que querem transformar em notícia, aquilo que a imparcialidade - que os carece -, vedaria.
Por fim, já que o Direito brasileiro guarda fortes influências do Direito romano, será que ao estudar a finalidade da pena, certos "iluminados" teriam se inspirado e optado por usar os "leões" deste chamado "Coliseu penal do Tribunal da Mídia"?
(COUTINHO, Thiago de Miranda. O Tribunal da Mídia e seu Coliseu Penal; ante a pirotecnia processual, haveria imparcialidade da imprensa à luz da Presunção de Inocência? Portal Migalhas. 2021) Acesse aqui.
Por isso, ressaltar esse horrendo episódio é resistir! É reivindicar que a tragédia de Cancellier não seja enterrada no limbo da indiferença institucional. É afirmar que, se a justiça não aprende com suas mazelas, ela se condena ao erro contínuo.
Nesta linha, o holocausto nos ensina que cabe aos sobreviventes - e aos descendentes morais - recordar e relatar para não esquecer. Que não basta dizer “nunca mais” se não enfrentamos o mal quando ele assume formas mais sutis. No paralelo mais reflexivo, quem lê hoje sob a luz de Machado de Assis e relembra Cancellier exige que o Direito retome sua humildade: não para tutelar poder ou reforçar visões maniqueístas, mas para garantir que o individual não seja sucumbido pelo espetáculo.
Não é literatura de aeroporto, tampouco enfado acadêmico: é resistência. Resistência à destruição da dignidade humana por meio de lentes sensacionalistas. Resistência à sedução egocêntrica do espetáculo funcional ao arbítrio. Resistência ao silenciamento daqueles que são torturados pelas pressões processuais. Resistência! Quantas vezes for necessário repetir.
Agora, em março de 2023, nos deparamos com mais um capítulo: a divergência aberta pelo eminente ministro Gilmar Mendes, do STF, reconhecendo a suspeição da magistrada da 1ª vara Federal de Florianópolis no caso do reitor Cancellier.
Embora o excelentíssimo relator, ministro Edison Fachin, tenha proferido voto contra a suspeição, a divergência pontuou que tamanha antecipação de culpa antes do julgamento, denotaria uma afrontosa análise parcial da magistrada de SC por meio de "excessos de linguagem e afirmações categóricas e imperativas em concordância com a tese do MP".
Nesta linha, o ministro Gilmar Mendes destacou que: "Se Cancellier não teve direito à devida investigação, munida das garantias constitucionais, a partir da presunção de inocência e do devido processo legal, neste momento cabe garantir a todos os demais acusados que somente possam ter a culpa atribuída ao final do processo, depois de efetivado o contraditório e a ampla defesa sob mediação de julgador imparcial."
Destaca-se que o reitor Cancellier foi preso preventivamente em setembro de 2017 e solto um dia depois, mas por decisão judicial ficou afastado do cargo e proibido de frequentar a UFSC.
Semanas depois, conforme relatos, Cancellier foi ao cinema assistir ao filme Polícia Federal: A Lei é para Todos, cuja história enaltecia o trabalho de uma delegada à frente da operação lava jato e, na manhã seguinte, lamentavelmente Cancellier ceifou a própria vida.
Aqui, dentre tantas obras com enredos tragicômicos em cartaz no arcabouço processual penal brasileiro, pode-se traçar um paralelo à clássica obra de Machado de Assis que, já em 1881, era eivada de metáforas, eufemismos e ironias, de modo a expor severas críticas sociais à elite da época a partir da morte do protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Mas e se ao invés de Brás Cubas, tais memórias póstumas fossem de Cancellier; o que ele narraria? Talvez, que a linha argumentativa da defesa não seja pela impunidade, mas pela observância aos fiéis e intransigentes regramentos legais que não podem ser esquecidos, flexibilizados ou tergiversados. Eis que, como na ironia pontual de Machado, hei de confessar que alguns trechos dos artigos escritos nos idos de 2019, 2021 e 2022 foram reproduzidos.
Afinal, parece nada - ou pouco - ter mudado de lá para cá como já escrevia Machado que: "Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse canto de Terra, que lhes deu algumas ilusões."
Portanto, assim como na clássica obra brasileira, que o fim de Cancellier possa, um dia, ser o início de um processo penal mais justo e responsável. Ou teremos de reler o parágrafo anterior à exaustão até a compreensão. Será?
(COUTINHO, Thiago de Miranda. De Brás Cubas a Cancelier: memórias póstumas da reminiscente parcialidade penal. Consultor Jurídico - Conjur. 2023)
Notadamente, o desejo é provocar que esse resgate seja semente de um Direito Penal menos ansioso por holofotes e mais comprometido com a justiça. Que, como num espelho perturbador, Cancellier nos ensine que nossa obrigação republicana é permanecer em vigilância para que o Direito jamais se torne, ele próprio, instrumento de extermínio simbólico.
Desta feita, se o holocausto nos confronta com o mal absoluto e nos recorda o custo da indiferença, a morte de Cancellier nos interpela sobre o preço de uma pseudojustiça que exige resultados midiáticos como chancela de competência. Lembremo-nos que, em 2023, o Tribunal de Contas da União concluiu que não houve prática de irregularidades e inocentou Cancellier.
No fim, o desejo é que a injustiça judicial nunca mais seja a letra final da narrativa humana, pois, como certa vez ouvi de um judeu dentro do Museu do Holocausto de Curitiba, a maior reflexão sobre essa tragédia humana ainda é sobre o amor. Amor à vida, à família, à justiça, ao Direito.
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AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, N° 1.400.119, SANTA CATARINA, Voto Vista do senhor ministro, Gilmar Mendes.
AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, N° 1.400.119, SANTA CATARINA, Voto Vista do senhor ministro, Gilmar Mendes.
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Moderna, 1999
BERTUOL, André. Caso Cancellier: após 7 anos, procurador de SC absolve professores por falta de provas. Jornal GGN. Disponível em: https://jornalggn.com.br/politica/caso-cancellier-apos-7-anos-procurador-de-sc-absolve-professores-por-falta-de-provas/. Acesso em: 01 out. 2025.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940.
BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 13 out. 1941.
CARTACAPITAL. TCU conclui que Luiz Carlos Cancellier não cometeu irregularidades e inocenta reitor. CartaCapital, 9 jul. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/tcu-conclui-que-luiz-carlos-cancellier-nao-cometeu-irregularidades-e-inocenta-reitor/. Acesso em: 01 out. 2025.
COUTINHO, Thiago de Miranda. O Tribunal da Mídia e seu Coliseu penal: Ante a pirotecnia processual, haveria imparcialidade da imprensa à luz da Presunção de Inocência? Migalhas, 16 nov. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/354924/o-tribunal-da-midia-e-seu-coliseu-penal. Acesso em: 01 out. 2025.
COUTINHO, Thiago de Miranda. De Brás Cubas a Cancellier: memórias póstumas da reminiscente parcialidade penal. ConJur, 14 abr. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-14/thiago-coutinho-bras-cubas-luiz-carlos-cancellier/. Acesso em: 01 out. 2025.
FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução de Carlos Cardoso Aveline e Walter O. Schlupp. 1. ed. São Paulo: Editora Sextante, 1991. ISBN 8532606261