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Lei dos distratos: O STJ virou o jogo em favor do consumidor?

O STJ reinterpretou a lei dos distratos à luz do CDC, reafirmando o equilíbrio contratual e a proteção do consumidor como pilares do novo paradigma do Direito Imobiliário.

8/10/2025

1. Introdução

A promulgação da lei 13.786/18, popularmente conhecida como lei dos distratos, inaugurou um novo capítulo na regulação das resoluções de contratos de promessa de compra e venda de imóveis no Brasil. Com o objetivo declarado de conferir maior segurança jurídica e previsibilidade ao mercado imobiliário, o legislador estabeleceu parâmetros objetivos para as penalidades aplicáveis aos adquirentes em caso de desistência. Contudo, a aplicação literal da norma acendeu um intenso debate jurídico sobre seu potencial conflito com os princípios e regras do CDC, diploma de ordem pública e interesse social.

O cerne da controvérsia reside na aparente colisão entre uma norma setorial específica e o microssistema de proteção ao vulnerável. De um lado, a lei dos distratos fixou percentuais de retenção que podem chegar a 50% dos valores pagos em empreendimentos sob o regime de afetação. De outro, o CDC, em seu art. 53, veda a perda total das prestações pagas e estabelece um arcabouço de proteção contra cláusulas abusivas. Este artigo se propõe a analisar como o STJ tem enfrentado essa questão, com foco especial em uma recente e paradigmática decisão de sua 3ª turma, que reitera a prevalência do CDC nas relações de consumo.

2. A lei dos distratos e o desequilíbrio contratual

A lei 13.786/18 surgiu em um contexto de crise no setor imobiliário, marcado por um crescente número de distratos que, segundo as incorporadoras, geravam imprevisibilidade e risco aos empreendimentos. A lei alterou as leis 4.591/64 (incorporação imobiliária) e 6.766/79 (parcelamento do solo urbano) para, entre outras coisas, fixar as consequências do desfazimento do contrato por culpa do adquirente.

Os novos arts. 67-A da lei de incorporações e 32-A da lei de parcelamento do solo estabeleceram um regime que, na prática, se mostrou excessivamente oneroso ao consumidor. A previsão de retenção de até 25% dos valores pagos (ou 50% no regime de afetação), somada à possibilidade de devolução parcelada e somente após a conclusão da obra, acentuou a assimetria inerente a esses contratos. A norma, que visava à estabilidade, passou a ser interpretada por muitos como um aval para a imposição de condições que ignoram a hipossuficiência do consumidor e os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao enriquecimento sem causa.

3. A jurisprudência do STJ: A releitura da lei no julgamento conjunto

Foi nesse cenário de tensão normativa que a 3ª turma do STJ, em um julgamento paradigmático ocorrido em setembro de 2025, enfrentou a matéria de forma aprofundada. Ao julgar conjuntamente um grupo de quatro recursos especiais (REsp 2.106.548/SP, 2.117.412/SP, 2.107.422/SP e 2.111.681/SP), o colegiado, por maioria, estabeleceu a prevalência do CDC sobre a lei dos distratos sempre que a relação jurídica for de consumo1.

Liderado pelo voto da ministra Nancy Andrighi, o entendimento majoritário sustentou que, havendo um "conflito aparente" entre as normas, o CDC prevalece por ser a lei especial que rege as relações de consumo2. A decisão estabeleceu parâmetros claros:

Parâmetro

Definição do STJ

Limite de Retenção

A soma de todas as penalidades (multa, despesas, etc.) não pode ultrapassar 25% dos valores pagos pelo consumidor.

Taxa de Fruição

Só é devida se houver efetiva ocupação de um imóvel edificado, não bastando a mera posse do lote.

Restituição

Deve ser imediata e em parcela única, sendo abusiva qualquer cláusula que preveja a devolução parcelada ou somente ao término da obra, em linha com a Súmula 543/STJ.

É sincero notar que a decisão não foi unânime. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva apresentou voto divergente, defendendo a prevalência da lei dos distratos como norma especial posterior e mais específica para a matéria, argumento que, embora vencido, reflete uma importante corrente de pensamento no debate jurídico.

4. O diálogo das fontes como solução hermenêutica

A solução encontrada pela maioria da 3ª turma encontra forte amparo na teoria do diálogo das fontes, desenvolvida no Brasil principalmente por Cláudia Lima Marques. Essa teoria propõe que, em vez de uma revogação ou exclusão mútua, as normas de um mesmo ordenamento jurídico devem "dialogar" entre si, buscando uma aplicação coerente e que realize os mandamentos constitucionais.

No caso em tela, o diálogo se estabelece entre a lei dos distratos, uma norma setorial, e o CDC, um microssistema de proteção de um sujeito vulnerável. Conforme adverte Cláudia Lima Marques, nesse diálogo, deve-se preservar o "brilho maior" da norma que concretiza direitos fundamentais. Nas palavras da jurista:

"havendo conflito, deve prevalecer a norma de caráter mais protetivo, pois esta representa o cumprimento de mandamento constitucional".

Na mesma linha, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery afirmam que "em caso de conflito aparente de normas, prevalece o CDC sobre a lei especial posterior que o desrespeitou, porque o Código contém princípios de ordem pública e normas de caráter constitucional protetivo"3. Portanto, a decisão do STJ não ignora a lei dos distratos, mas a interpreta à luz do sistema constitucional, subordinando sua aplicação aos princípios protetivos do consumidor.

5. Posições críticas e o debate doutrinário

Apesar da consolidação do entendimento na 3ª turma, a decisão não está isenta de críticas. Parte da doutrina, representada por juristas como Alexandre Junqueira Gomide, argumenta que não haveria um conflito real entre as normas, mas uma "convivência normativa harmônica"4.

Para essa corrente, o CDC estabelece as regras gerais da relação de consumo, enquanto a lei dos distratos, por ser posterior e mais específica, detalha as consequências do inadimplemento nos contratos imobiliários. Segundo essa visão, o CDC não possui regras específicas sobre os percentuais de devolução, sendo esta uma lacuna que a lei especial veio preencher. A aplicação do CDC para afastar os percentuais da lei dos distratos, portanto, geraria insegurança jurídica e desrespeitaria a opção legítima do legislador, que visava proteger a saúde financeira dos empreendimentos imobiliários.

Essa visão crítica sustenta que a intervenção do Judiciário, ao reduzir as multas legalmente previstas, acaba por criar um desequilíbrio, incentivando o distrato e penalizando o coletivo de adquirentes em favor daquele que desiste do negócio. A controvérsia, portanto, permanece viva, opondo de um lado a proteção do consumidor como direito fundamental e, de outro, a segurança jurídica e a força obrigatória dos contratos, conforme a especialidade da lei.

6. Conclusão

A recente decisão da 3ª turma do STJ representa um marco na interpretação da lei 13.786/18, consolidando a proteção do consumidor como um pilar fundamental também no Direito Imobiliário. Ao reafirmar a prevalência do CDC, a Corte não apenas soluciona um aparente conflito de normas, mas, sobretudo, reconecta a legislação setorial ao sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais.

Longe de ser uma intervenção que gera insegurança jurídica, o posicionamento do STJ estabelece um critério claro: a liberdade contratual e a proteção dos empreendimentos imobiliários encontram seu limite na dignidade e na proteção econômica do consumidor. A aplicação da teoria do diálogo das fontes mostra-se como a ferramenta hermenêutica mais adequada para harmonizar os interesses em jogo, garantindo que a busca por segurança jurídica no mercado não se traduza em um desequilíbrio contratual desproporcional.

É provável que este precedente oriente as instâncias inferiores a reexaminar cláusulas de distrato sob o prisma da proporcionalidade e da boa-fé, consolidando um novo paradigma interpretativo. O equilíbrio econômico do setor não se sustenta na desproteção de uma das partes, mas na previsibilidade aliada à justiça contratual. Em conclusão, o STJ reafirma que o direito imobiliário, quando instrumentaliza uma relação de consumo, é, antes de tudo, direito do consumidor.

__________________________

1 SILVA, Munir Saleh; PRADO, Augusto Cézar Lukascheck. Prevalência do CDC sobre a Lei do Distrato nos contratos imobiliários. Consultor Jurídico, 29 set. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-set-29/prevalencia-do-cdc-sobre-a-lei-do-distrato-nos-contratos-imobiliarios/

2 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Lei dos Distratos, insegurança jurídica e atual jurisprudência do STJ. Migalhas Edilícias, 3 out. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/441450/lei-dos-distratos-inseguranca-juridica-e-atual-jurisprudencia-do-stj

3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 2.117.412/SP. Relatora: Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em setembro de 2025.

4 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 628-630.

5 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis Civis Comentadas e Anotadas. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 1334.

6 BRASIL. Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018. Altera as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13786.htm.

7 BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm.

1 Os dados jurisprudenciais foram extraídos do acórdão publicado no DJe de 12/09/2025.

1 SILVA, Munir Saleh; PRADO, Augusto Cézar Lukascheck. Prevalência do CDC sobre a Lei do Distrato nos contratos imobiliários. Consultor Jurídico, 29 set. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-set-29/prevalencia-do-cdc-sobre-a-lei-do-distrato-nos-contratos-imobiliarios/

2 SILVA; PRADO, op. cit.

3 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis Civis Comentadas e Anotadas. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 1334.

4 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Lei dos Distratos, insegurança jurídica e atual jurisprudência do STJ. Migalhas Edilícias, 3 out. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/441450/lei-dos-distratos-inseguranca-juridica-e-atual-jurisprudencia-do-stj

Rafael Paiva Nunes
Sócio da Paiva Nunes Direito Imobiliário, advogado no Brasil e em Portugal, atua em Direito Imobiliário, é dirigente no IBRADIM e ANACON. Especialista e Obras Retomadas e Multipropriedade/time-share.

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