A crescente propagação do uso de ferramentas de IA - inteligência artificial em atividades humanas complexas vem suscitando importantes debates, especialmente sobre a regulamentação em determinadas atividades profissionais, a proteção de dados sensíveis e a preservação dos princípios éticos que conduzem a prática profissional. Sua aplicação em setores profissionais como psicologia, medicina, advocacia, contabilidade, engenharia ou educação, que são regulados por códigos de ética e conselhos profissionais específicos, exige uma análise cuidadosa acerca dos limites jurídicos da automação e da indispensável responsabilização humana.
No Brasil, diversas atividades têm seu exercício restrito a profissionais legalmente habilitados e registrados em conselhos de classe. A psicologia, por exemplo, é regida pela lei 4.119/1962, que reserva ao psicólogo funções como diagnóstico psicológico, aplicação de testes e a condução de intervenções clínicas. Já a advocacia é regida pela lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB), que confere exclusividade ao advogado para atos como postular em juízo e prestar consultoria jurídica.
Caso as atividades típicas dessas profissões regulamentadas sejam exercidas por ferramentas de IA de forma autônoma, sem supervisão ou validação por profissional habilitado, pode configurar-se o crime de exercício ilegal da profissão, previsto no art. 47 do decreto-lei 3.688/1941 (lei das contravenções penais). O exercício ilegal da profissão é aplicável a qualquer caso em que pessoa física ou jurídica desempenhe funções privativas sem habilitação legal para tal.
Como exemplo, podem ser citadas as ferramentas baseadas em IA que oferecem “sessões terapêuticas” simuladas e que têm atraído diversos usuários em busca de soluções acessíveis, anônimas e contínuas para questões emocionais. No entanto, quando operadas de forma autônoma e sem supervisão profissional humana, pode haver a configuração de prática ilícita.
Da mesma forma, no campo jurídico, o uso de IA para elaborar petições, pareceres ou até identificar jurisprudência aplicável deve ser supervisionado por advogado habilitado, poderá restar configurado exercício irregular da advocacia. Vale dizer que, além do exercício irregular, a falta de participação de advogado pode comprometer a defesa dos interesses da pessoa representada. Como exemplo, diversas notícias já registraram casos em que sistemas de IA foram utilizados para gerar peças processuais com precedentes inexistentes: em abril de 2025, a Justiça do Paraná rejeitou um recurso que trazia 43 referências falsas criadas por IA, e, em São Paulo, uma defesa trabalhista foi considerada litigância de má-fé após a citação de decisões fictícias atribuídas a ministros de tribunais superiores².
Esses episódios evidenciam riscos da chamada “alucinação” da IA, em que o sistema apresenta informações inventadas como se fossem verdadeiras. Soma-se a isso o fenômeno conhecido como “a bajulação na IA (sycophancy)”, comportamento no qual a IA busca sempre agradar o usuário, respondendo de forma aparentemente convincente, mas sem compromisso com a veracidade. Quando não há validação por profissional habilitado, tais tipos de resposta podem ser utilizadas de forma imprópria tanto como base para decisões como para argumentos e negociações jurídicas, acarretando graves impactos técnicos e jurídicos.
Já na medicina, o Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18) proíbe expressamente que atos diagnósticos ou terapêuticos sejam realizados por meios que não assegurem a participação ativa do médico. Algoritmos que prescrevem medicamentos ou indicam diagnósticos sem intervenção médica violam o dever de cuidado e podem trazer riscos à saúde do paciente.
Ou seja, embora a IA possa colaborar com a organização de informações, triagens ou detecção de padrões, a condução autônoma de sessões de atendimento, serviços jurídicos, indicação de diagnósticos, prescrição de medicação e outras atividades profissionais por sistemas automatizados configura exercício ilegal da profissão, além de expor o usuário a riscos de saúde, éticos, técnicos e emocionais relevantes.
Além disso, também impõe cuidados relacionados aos critérios estabelecidos na LGPD. A legislação estabelece que dados sensíveis, como informações sobre saúde, convicções religiosas, orientação sexual, dados biométricos ou genéticos, exigem consentimento específico, medidas de segurança adequadas e supervisão humana responsável. A violação desses requisitos pode gerar responsabilização administrativa, civil e até penal.
A LGPD também prevê que decisões automatizadas que afetem os interesses do titular devem garantir o direito à revisão, bem como a explicabilidade dos critérios adotados pelo sistema. Esse princípio de transparência algorítmica ganha reforço inclusive no PL 2.338/23, atualmente em tramitação no Senado Federal, que prevê a avaliação de impacto algorítmico e mecanismos de governança para sistemas de alto risco.
A incorporação da inteligência artificial em atividades profissionais é um fenômeno cada vez mais presente, que pode, de fato, trazer benefícios importantes em termos de agilidade, alcance e padronização de serviços. Seu uso como instrumento de apoio ao trabalho dos profissionais pode ser um diferencial, desde que se preserve o protagonismo e a responsabilidade integral do profissional humano. Contudo, o uso autônomo e não supervisionado da IA, especialmente em profissões regulamentadas, pode configurar não apenas o exercício ilegal da profissão, como também potencial violação à legislação de proteção de dados pessoais sensíveis.
Em síntese, a discussão que se busca promover não deve ser compreendida como uma tentativa de frear ou inibir a adoção da IA, mas sim de assegurar que seus benefícios (como eficiência, inovação e apoio à tomada de decisão) sejam alcançados de forma alinhada à proteção de direitos fundamentais, à segurança jurídica e à responsabilidade social.