Um quebra-cabeça montado com peças que pertencem a jogos diferentes: elas apenas parecem encaixar. Eis, em outra linguagem, o que seria um paralogismo. Premissas verdadeiras, com uma conclusão falsa, mas sem má fé. Talvez, por outro lado, um falso silogismo aristotélico: apresenta a forma de duas premissas e uma conclusão. Contudo, apesar da aparência, a conclusão não se segue necessariamente das premissas, ou as premissas são falsas.
Qual a razão desse preâmbulo? A explicação é imprescindível. A ver.
A decisão cautelar do STF na ADIn 7.236 suspendeu a aplicação da prescrição intercorrente reduzida pela metade na nova lei de improbidade administrativa. Relembre-se o dispositivo que trata da questão (§5º do art. 23 da LIA): “Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo”.
Fundamentou-se, pretensamente, em riscos de impunidade estrutural; na morosidade média das ações; em uma suposta incoerência sistêmica e em tratados internacionais de combate à corrupção. Tudo isso para tentar justificar, no futuro, uma interpretação conforme a Constituição (do contrário nem seria a hipótese de se aventar uma ADIn).
Este artigo parte, primeiro, de uma constatação crítica: estes fundamentos, embora revestidos de aparente solidez, escondem um paralogismo (ou um falso silogismo aristotélico). É que a lógica exposta na decisão conduz, em verdade, à conclusão contrária da adotada pelo STF (ou, ao menos, dissonante desta). Se corretamente interpretados, os argumentos invocados não demonstram a inconstitucionalidade da redução da prescrição intercorrente, mas revelam sua validade e necessidade (ao menos este não é um argumento válido para sustentar o que foi disposto na decisão).
Mais que isso: quando aplicada sobre réus contemplados com 70 anos de idade aí sim, neste aspecto, há de se falar em matéria constitucional. Somente assim se justificará a intervenção da Corte Suprema, por força da dignidade da pessoa humana; da proteção constitucional ao idoso e da simetria com o regime do CP. Os outros argumentos trazem supostas e hipotéticas violações reflexas a Constituição.
O presente artigo, em segundo, propõe um deslocamento do debate: ainda que se tome como premissa verdadeira (que não o é) que a redução da prescrição compromete a efetividade da tutela da probidade, há situações em que a sua aplicação encontra fundamento robusto na própria Constituição. É o caso, como visto, dos réus com 70 anos de idade, para os quais o ordenamento jurídico já consagra tratamento diferenciado no âmbito penal.
Sem falar, ainda, que a decisão pode ser compreendida com uma terceira proposição, como expressão de uma visão distópica do STF: em nome da defesa da moralidade administrativa e do combate à corrupção, cria-se uma realidade jurídica em que a ineficiência do Estado é projetada sobre o indivíduo, que passa a ser sacrificado pela morosidade estrutural do sistema. É uma lógica que promete justiça, mas que, no fundo, esvazia direitos fundamentais. O tema é vasto e não será esgotado aqui.
2. A decisão cautelar na ADIn 7.236. É preciso compreender que prescrição é garantia fundamental, direcionada ao réu e que é necessário estabelecer um paralelo com o Direito Penal
Na decisão cautelar da ADIn 7.236, destacou-se quatro fundamentos principais para suspender a eficácia da prescrição intercorrente com prazo reduzido pela metade: (i) risco de impunidade estrutural diante da possibilidade de extinção de milhares de ações em andamento, (ii) incompatibilidade com a realidade judiciária, pois os dados do CNJ indicam que as ações de improbidade duram, em média, mais de cinco anos até o trânsito em julgado, (iii) incoerência sistêmica em relação a outros ramos do direito, nos quais a interrupção da prescrição faz o prazo reiniciar em sua integralidade, e (iv) violação de compromissos internacionais de combate à corrupção, especialmente os previstos em convenções da ONU e da OCDE.
Até aqui nada há de matéria constitucional. Não, ao menos, de modo direto (como usualmente a Suprema Corte exige para que conheça de determinada querela). Os fundamentos adotados não são absolutos e estão sujeitos à uma correção de interpretação que imporá conclusão diversa daquela até então encaminhada. O próprio voto, em uma tentativa de alçar a discussão à estatura constitucional (que naturalmente não possui) consigna que o debate é marcado pela tensão entre dois valores: a efetividade da repressão a atos de improbidade e a proteção dos direitos fundamentais do acusado.
É justamente nesse ponto que se insere o paralogismo: a decisão monocrática que suspendeu os efeitos da prescrição intercorrente pela metade dá prevalência - quase absoluta - ao interesse punitivo estatal, deixando em plano secundário a dimensão garantista da prescrição. A decisão, portanto, escolheu o que mais lhe pareceu necessário proteger. Resta saber o por que da punição guardar mais valor que o direito de responder a um processo em tempo que não seja alongado (e não se está falando, aqui, de não responder a um processo. É o direito de se defender em tempo adequado).
A discussão alcançaria a matriz constitucional se os argumentos lançados na decisão monocrática tivessem como contorno a proteção especial conferida pela Magna Carta aos indivíduos de 70 anos de idade, por exemplo, e, neste ponto, a conclusão seria diversa daquela sustentada - ainda que por decisão provisória - pelo STF. A impunidade estrutural não pode servir de fundamento para negar garantias individuais, a morosidade judicial não pode ser transferida ao réu, a suposta incoerência sistêmica encontra exceção no próprio CP, e os tratados internacionais precisam ser harmonizados com compromissos igualmente assumidos de tutela dos direitos humanos da pessoa idosa.
A prescrição, em qualquer ramo do direito sancionador, desempenha papel central de limitação ao poder punitivo estatal. Não é apenas um instituto técnico ou processual, mas um verdadeiro mecanismo de proteção da liberdade e da segurança jurídica do indivíduo. Ela evita que o Estado, por sua inércia ou morosidade, mantenha indefinidamente a espada de Dâmocles sobre a cabeça do acusado.
Sob essa ótica, a prescrição tem função garantista e neste viés (e não naquele proposto na decisão monocrática) merece a tutela constitucional: atua como instrumento de efetivação do devido processo legal material (art. 5º, LIV, CF), do direito à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF) e da segurança jurídica. No campo da improbidade administrativa, que integra o direito administrativo sancionador, a prescrição assume ainda maior relevância, pois a ação busca impor sanções gravosas - como perda da função pública e suspensão de direitos políticos - que afetam diretamente a esfera de liberdade do réu.
É nesse contexto que cabe dar destaque especial a redução da prescrição pela metade nas hipóteses em que se trate de réu com 70 (setenta) anos. Não se equivale à impunidade, mas de reforço às garantias constitucionais, reconhecendo que o tempo tem peso diferenciado quando se trata de pessoas em idade avançada. A garantia prescricional, nesse caso, cumpre função de preservar a dignidade do acusado idoso contra a eternização de um processo sancionador.
Por sua vez, o CP brasileiro, em seu art. 115, prevê expressamente a redução dos prazos prescricionais pela metade quando o réu era menor de 21 anos ao tempo do fato ou maior de 70 anos na data da sentença. Essa regra não é vista como fator de impunidade, mas como projeção constitucional de um sistema punitivo que reconhece situações de vulnerabilidade.
O caso do indivíduo de 70 anos de idade é emblemático: o legislador entendeu que não seria proporcional submeter o idoso a longos processos e sanções que, em razão de sua idade, perdem boa parte de seu sentido preventivo ou retributivo. Trata-se de norma de clemência, fundada na dignidade da pessoa humana e no reconhecimento de que a passagem do tempo tem impactos mais severos sobre os acusados idosos.
A lei de improbidade, ao afirmar em seu art. 1º, §4º que se aplicam ao regime sancionador seus princípios penais, deve ser interpretada em harmonia com essa lógica. É dizer: a redução da prescrição para réus com 70 anos não é inovação incompatível com o sistema, mas extensão coerente de um princípio já consolidado no Direito Penal. O que o STF, na decisão monocrática, identificou como incoerência sistêmica, na verdade, nestas situações, é coerência garantista, apta a assegurar proporcionalidade no âmbito do Direito Administrativo sancionador. Veja-se o paralogismo tomando corpo.
3. Rebatendo os argumentos da suspensão levada a efeito pelo STF. Paralogismo na argumentação. Distopia na conclusão
A alegação de que milhares de ações seriam fulminadas não constitui argumento jurídico, mas sim político. Toda prescrição implica, por definição, a extinção de ações, e esse efeito não pode ser tratado como anomalia, mas como expressão de sua função garantista.
A redução, em verdade, não configura impunidade, mas sim a concretização de preceitos constitucionais centrais: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e a garantia da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CF). Para quem tem 70 anos ou mais, a noção de razoabilidade temporal adquire outra dimensão: a submissão a um processo sancionador que se arrasta por quase uma década equivale a negar a própria essência dessa garantia. Aqui existe evidente matéria constitucional: a proteção especial à pessoa idosa (art. 230, CF).
Com efeito, não há segurança jurídica em manter o prazo prescricional de oito anos, uma vez que não existe qualquer garantia de que os processos se encerrarão nesse período. Ao contrário, os próprios dados mencionados na decisão monocrática revelam que a média de tramitação das ações de improbidade ultrapassa cinco anos apenas na primeira instância. Ou seja, o prazo de oito anos pode ser insuficiente para assegurar julgamento definitivo, o que reforça que a morosidade estrutural do Poder Judiciário não pode ser transferida ao réu como se fosse sua responsabilidade.
É importante notar que a decisão monocrática não apresenta evidências empíricas capazes de demonstrar que oito anos constituem, de fato, um prazo razoável para a tramitação das ações de improbidade. O que os dados confirmam é justamente o oposto: o sistema é lento, e a demora não pode servir de justificativa para restringir garantias fundamentais.
A crítica de que, nos demais ramos do Direito, a interrupção da prescrição leva ao reinício integral do prazo não é argumento que, de per si, se sustente. Primeiro porque esta mesma conclusão poderia levar à ideia de que os outros ramos estão equivocados e a prescrição intercorrente pela metade trata-se de um avanço jurídico. Para além disso, quando aplicada à situação a pessoas com 70 (setenta) anos, o próprio sistema penal brasileiro, que é o paradigma expresso da improbidade administrativa, admite exceção pela idade do réu no art. 115 do CP.
Assim, a redução da prescrição em favor dos que possuem 70 anos de idade não é incoerência, mas expressão da simetria entre os regimes penal e administrativo sancionador, conforme manda o art. 1º, §4º da nova lei de improbidade.
No particular, trata-se de medida que preserva a isonomia material (art. 5º, caput, CF), ao reconhecer que pessoas com 70 (setenta) anos não podem ser equiparados a indivíduos mais jovens quanto ao tempo suportável de um processo sancionador. A chamada incoerência é apenas aparente: no campo sancionatório, a redução tem plena coerência sistêmica e respaldo constitucional.
Outrossim, a invocação de tratados internacionais anticorrupção (ONU e OCDE) merece ser relativizada. É verdade que essas convenções recomendam a fixação de prazos amplos para evitar impunidade sistêmica. Contudo, não se pode esquecer que o Brasil também assumiu compromissos internacionais de proteção dos direitos da pessoa idosa, como o Protocolo de San Salvador (OEA, art. 17) e diretrizes da ONU sobre envelhecimento.
A CF/88 reforça essa obrigação ao dispor, no art. 230, que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar os idosos, assegurando sua dignidade. Nessa perspectiva, não há violação, mas sim harmonização de compromissos internacionais: o combate à corrupção permanece robusto, enquanto a proteção etária garante que o processo não se transforme em pena antecipada para os que possuem 70 anos ou mais de idade.
Portanto, a aplicação da redução da prescrição e, notadamente, voltadas a pessoas com 70 (setenta) anos de idade concilia os tratados anticorrupção com os tratados de direitos humanos, cumprindo o princípio da proporcionalidade e da interpretação conforme a CF/88.
4. Conclusão
A decisão monocrática do STF na ADIn 7.236 expôs argumentos relevantes contra a aplicação da prescrição intercorrente pela metade. Nada obstante, a análise revela um paralogismo: as mesmas premissas invocadas para afastar a norma sustentam, quando corretamente aplicadas, a sua inteira validade e sem que se vilipendie qualquer norma constitucional, sobretudo (mas não apenas a estes casos) nas situações de réus com 70 (setenta) anos.
Nessa última hipótese, o instituto encontra respaldo no art. 230 da CF, no art. 115 do CP e no art. 1º, §4º da LIA. A decisão monocrática do STF incorreu em um equívoco argumentativo: ao invocar fundamentos de proporcionalidade, razoabilidade e compromissos internacionais, deixou de perceber que eles, corretamente compreendidos, reforçam a constitucionalidade da redução da prescrição pela metade na improbidade, especialmente (mas não de maneira excludente) quando destinada a proteger pessoas com 70 (setenta) anos.
A narrativa construída pelo voto se aproxima de uma distopia jurídica: uma realidade em que a aparência de coerência lógica legitima a supressão de garantias fundamentais. Cuida-se de um discurso que promete combater a impunidade, mas que, na prática, reforça a opressão e transfere ao indivíduo o ônus da ineficiência estatal.