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Prisões no Brasil hoje são contra a Constituição - E quem disse foi o STF

ADPF 347 e o Plano Pena Justa - Impactos na advocacia criminal: O enfrentamento do estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro e as ações correlatas no STF.

7/10/2025

Introdução

O sistema carcerário brasileiro representa uma das mais graves e persistentes crises humanitárias do país. Com uma população prisional que já ultrapassa 839 mil pessoas1, para um déficit de mais de 350 mil vagas, a realidade das prisões é marcada pela superlotação, por condições insalubres e pela violação sistemática de direitos fundamentais. Além disso, a criação de penas mais duras e a criminalização são pilares que sustentam o escalonamento dos índices de encarceramento no país. Nesse cenário, a ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 emerge como um marco jurídico, cujo julgamento pelo STF em 2023 reconheceu o ECI - Estado de Coisas Inconstitucional e impulsionou a criação de um plano nacional para seu enfrentamento. Este artigo analisa a decisão da ADPF 347, detalha o Plano Pena Justa2 e explora as ações correlatas em andamento no STF, oferecendo um panorama robusto para a comunidade jurídica sobre os avanços e desafios na busca pela dignidade no cárcere.

O Estado de Coisas Inconstitucional: Origem e aplicação no Brasil

O conceito de Estado de Coisas Inconstitucional, originário da jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia, é um instrumento jurídico utilizado para lidar com violações de direitos fundamentais que são massivas, generalizadas e persistentes, decorrentes de falhas estruturais dos Poderes Públicos. Sua aplicação pressupõe um quadro em que as soluções judiciais tradicionais (individuais ou coletivas) se mostram ineficazes para reverter a situação de inconstitucionalidade.

Ao julgar a ADPF 347, o STF aplicou pela primeira vez, de forma definitiva, este instituto ao sistema prisional brasileiro, reconhecendo que a crise carcerária não é um conjunto de incidentes isolados, mas uma falha estrutural que atinge a todos os entes da federação e exige uma resposta coordenada e de longo prazo.

A ADPF 347: A decisão histórica de 2023

Ajuizada em 2015 pelo PSOL - Partido Socialismo e Liberdade, a ADPF 347 culminou em uma decisão histórica em outubro de 2023. O plenário do STF, por unanimidade, declarou o ECI e determinou que a União, os Estados e o Distrito Federal, em colaboração com o CNJ, elaborassem, no prazo de seis meses, um plano nacional e planos locais para a superação da crise2.

"Espero que este seja um passo relevante para melhorar, minimamente que seja, as condições degradantes do sistema prisional brasileiro. Os presos são privados da liberdade, mas não de dignidade." - ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF2

Principais pontos da decisão:

  1. Há um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos. Esse estado de coisas demanda a atuação cooperativa das diversas autoridades, instituições e comunidade para a construção de uma solução satisfatória. Reconhecer este estado é dar vazão para questões estruturantes do encarceramento em massa e iniciar de maneira eficaz a reconstrução do sistema de justiça criminal brasileiro.
  2. Diante disso, União, Estados e Distrito Federal, em conjunto com o DMF/CNJ - Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça, deverão elaborar planos a serem submetidos à homologação do STF, no prazo de seis meses, especialmente voltados para o controle da superlotação carcerária, da má qualidade das vagas existentes e da entrada e saída dos presos. O Plano Pena Justa faz parte dessas medidas. 
  3. O CNJ realizará estudo e regulará a criação de número de varas de execução penal proporcional ao número de varas criminais e ao quantitativo de presos. Otimizar a fiscalização por parte da sociedade e dos atores que atuam no âmbito da justiça criminal. 

O cenário crítico do sistema prisional brasileiro

O Brasil enfrenta um quadro alarmante em seu sistema carcerário, sendo detentor da terceira maior população prisional do mundo. As condições de encarceramento são marcadas por uma série de violações de direitos, que configuram um tratamento desumano e degradante aos detentos. A tabela abaixo sintetiza os principais indicadores dessa crise:

Indicador

Dados

Fonte

População Carcerária

839.672 (Dezembro de 2023)

6

Vagas no Sistema

488.030 (Dezembro de 2023)

6

Presos Provisórios

41% da população carcerária

6

Perfil Racial

68,2% da população prisional é negra (2022)

6

Risco de Tuberculose

30 vezes maior que na população em geral

6

Risco de Morte por Caquexia

1.350% maior que na população em geral

6

"A superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana."6

O Plano Pena Justa: A resposta institucional

Em resposta direta à determinação do STF, o CNJ, em parceria com o Poder Executivo, lançou o Plano Nacional para o enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras - pena justa. Com um horizonte de implementação até 2027, o plano é um ambicioso instrumento de política pública que se estrutura em quatro eixos principais, desdobrados em 51 ações e mais de 300 metas3.

Eixo Estruturante

Foco Principal

1. Controle da Entrada e Vagas

Racionalizar o ingresso no sistema, gerir vagas e ampliar o uso de alternativas penais.

2. Qualidade dos Serviços

Assegurar condições dignas de saúde, alimentação, trabalho, educação e segurança.

3. Saída da Prisão e Inserção Social

Fortalecer os processos de progressão de regime e as políticas de atenção a egressos.

4. Governança e Dados

Integrar sistemas, qualificar a produção de dados e garantir transparência.

Plano Pena Justa atualmente

O CNJ publicou em seu site (https://www.cnj.jus.br/pena-justa-estados-e-distrito-federal-entregam-planos-locais-ao-stf/) um levantamento atual de como o Plano Pena Justa tem sido implementado nos estados federativos:

Entregaram os respectivos planos Acre, Alagoas, Amazonas, Amapá, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, Sergipe, São Paulo e Tocantins. Estados que não entregaram o plano e que pediram mais prazo são Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Mato Grosso do Sul e Paraná entregaram planos com pendências e pediram prazo para solucioná-las. A íntegra dos planos, assim como documentos e justificativas enviados pelas unidades da federação, podem ser conferidos no andamento das peças da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 disponível no site do STF.

A elaboração dos planos estaduais e distrital, espelhando o processo nacional, foi realizada de forma conjunta entre o Poder Executivo, o Poder Judiciário e diversos atores com atuação no campo penal que compõem os CPP - Comitês de Políticas Penais. Além disso, contou com etapas para participação social que incluíram consultas públicas, audiências públicas e oficinas com pessoas presas, egressas e familiares.

Participação social

A participação social para a construção do Plano Pena Justa foi fundamental para garantir um plano alinhado ao interesse público e garantir escuta atenta a particularidades locais, além de maior legitimidade para sua implantação. Em pelo menos 22 unidades da federação, foi registrada a realização de consulta pública, audiência pública ou outras formas de participação social.

Na Paraíba, por exemplo, foram realizadas 55 oficinas com pessoas privadas de liberdade na construção do plano, com mais de 1.650 pessoas. O Estado também ouviu pessoas egressas do sistema e familiares, organizando oficinas para coletar sugestões nos escritórios sociais de João Pessoa e Campina Grande. Essas oficinas resultaram em 171 contribuições ao plano estadual. Entre os meses de abril e maio, o texto do plano estadual ficou disponível para consulta pública on-line, com 123 contribuições nesse período.

Já no Amazonas, maior Estado do Brasil em extensão, foram realizadas sete audiências públicas em diferentes regiões do estado entre os meses de junho e agosto. Em São Gabriel da Cachoeira, distante 858 quilômetros da capital Manaus, a audiência pública contou inclusive com o apoio de tradutores das línguas nheengatu e tukano, apoio que se repetiu nos outros eventos para garantir participação social ampla.

Câmaras temáticas

Ao reconhecer a situação inconstitucional nas prisões brasileiras, o STF apontou o necessário enfrentamento ao racismo estrutural, eixo estruturante do pena justa. Uma das ações previstas no nível local é a criação de Câmaras Técnicas de Justiça Racial nos Comitês de Políticas Penais. Atualmente, elas estão presentes em 12 Estados - Acre, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraíba, Rio Grande do Norte, Roraima e Tocantins.

Outros assuntos centrais no pena justa que já motivaram criação de câmeras temáticas nas unidades da federação são acesso ao trabalho e à formação profissional (Ceará, Maranhão e Paraíba) e prevenção e combate à tortura e aos maus-tratos (Amazonas, Bahia, Ceará e Paraíba).

Ações correlatas em andamento no STF

A ADPF 347 não é uma iniciativa isolada. Ela dialoga e se fortalece com outras ações de controle de constitucionalidade e remédios constitucionais que tramitam na Corte, formando um ecossistema jurisprudencial voltado à garantia de direitos no sistema de justiça criminal.

HC 143.641: A proteção de gestantes e mães

Em 2018, a 2ª turma do STF, no julgamento do habeas corpus coletivo 143.641, determinou a substituição da prisão preventiva por domiciliar para todas as mulheres presas gestantes, puérperas ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência4. A decisão, que também se fundamentou no ECI, representou um avanço crucial na proteção da primeira infância e na aplicação do princípio de que a pena não pode transcender a pessoa do condenado.

ADIns 7.663, 7.664 e 7.665: O debate sobre as saídas temporárias

Mais recentemente, em 2024, a proibição das saídas temporárias pela lei 14.843/24 foi imediatamente contestada no STF por meio de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade. As ações, ajuizadas pela Anacrim - Associação Nacional da Advocacia Criminal, pela OAB - Ordem dos Advogados do Brasil e pela AGU - Advocacia-Geral da União, argumentam que a vedação total do benefício viola a dignidade da pessoa humana, o princípio da individualização da pena e a progressividade do regime, além de pactos internacionais de direitos humanos 5. O julgamento, a ser realizado diretamente no plenário, será decisivo para o futuro da política de ressocialização no país

Análise crítica: Avanços, desafios e perspectivas

O reconhecimento do ECI e a elaboração do Plano Pena Justa são, inegavelmente, avanços civilizatórios. Contudo, a transição do papel para a prática enfrenta desafios monumentais. A superação da crise depende não apenas do monitoramento pelo Judiciário, mas de um compromisso orçamentário e político robusto dos Poderes Executivo e Legislativo em todas as esferas da federação. O federalismo, muitas vezes invocado como obstáculo, deve ser visto como arena de cooperação, conforme delineado pelo próprio STF.

O papel da Corte, agora, transcende o de mero julgador para o de um indutor e garantidor de políticas públicas, uma função complexa e que suscita debates sobre a separação dos poderes, mas que se justifica pela inércia dos demais atores estatais em face de uma barbárie constitucionalizada.

Relevância para a advocacia criminal

A atuação na defesa criminal é árdua, seja qual for a área. É imperioso que nós, criminalistas, nos debrucemos na temática da ADPF 347 de forma estratégica e utilizemos o que foi estabelecido nela como argumentos de teses e de prequestionamentos.

Expor e elaborar argumentos sob à luz do que o próprio Supremo reconheceu como um Estado de Coisas Inconstitucional, ainda que pareça um horizonte distante de vitórias em nossos processos, é a garantia de que o debate não se encerrou. 

Além disso, é nosso dever auxiliar na fiscalização da implementação dessas medidas, sobretudo quando tais aspectos abarcam os temas em que nossos processos e casos são impactados. 

Conclusão

A ADPF 347 e o Plano Pena Justa inauguram um novo capítulo na história do sistema prisional brasileiro. Eles representam a esperança de que o "depósito de seres humanos", como já classificado pelo STF, possa dar lugar a um sistema que, de fato, cumpra sua função ressocializadora e respeite a dignidade inerente a toda pessoa. O sucesso dessa empreitada dependerá da vigilância contínua da sociedade civil, da atuação firme do sistema de justiça e, fundamentalmente, da vontade política de transformar a letra da Constituição e dos planos em realidade concreta. A comunidade jurídica tem o dever de acompanhar de perto não apenas a implementação do Plano Pena Justa, mas também os desfechos das ações correlatas, que, em conjunto, moldarão o futuro da execução penal no Brasil.

______________________________

1 Galvão, D. de S. S., & Alves, I. F. (2025). O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI) NAS PRISÕES BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DOS EFEITOS DA ADPF 347. Revista FT, 29(150).

2 Plano Pena Justa. Disponível em> https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/plano-pena-justa/ 

2 Supremo Tribunal Federal. (2023, 4 de outubro). STF reconhece violação massiva de direitos no sistema carcerário brasileiro. Recuperado de https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=515220&ori=1

3 Conselho Nacional de Justiça. (2024). Plano Nacional para o Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras. (resumo-adpf-7.pdf)

4 Supremo Tribunal Federal. (2018, 20 de fevereiro). 2ª Turma concede HC coletivo a gestantes e mães de filhos com até doze anos presas preventivamente. Recuperado de https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=370152

5 Supremo Tribunal Federal. (2024, 10 de junho). STF julgará diretamente no Plenário ação contra proibição das “saidinhas” de presos. Recuperado de https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=547058&ori=1

6 Galvão, D. de S. S., & Alves, I. F. (2025). O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL (ECI) NAS PRISÕES BRASILEIRAS: UMA ANÁLISE DOS EFEITOS DA ADPF 347. Revista FT, 29(150). Recuperado de https://revistaft.com.br/o-estado-de-coisas-inconstitucional-eci-nas-prisoes-brasileiras-uma-analise-dos-efeitos-da-adpf-347/

Nathaly Munarini
Advogada criminalista especializada em Processo Penal, Execução Penal, Violência Doméstica e atuação nos Tribunais Superiores (STJ e STF). Atuação com Contratos em geral.

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