Na primeira metade dos anos 1970, na esteira do milagre econômico brasileiro, o mercado de capitais e especialmente os fundos de investimentos experimentaram o seu primeiro florescimento em larga escala. Naquele contexto milhares de investidores iniciantes, na expectativa de obterem lucros alardeados por instituições financeiras da época, direcionaram suas poupanças para o setor e sofreram perdas consideráveis.
Apesar do episódio, esse segmento da economia ainda era incipiente, carente de informações qualificadas e de um marco regulatório adequado. Então os fundos de investimentos eram supervisionados pelo Banco Central do Brasil que, diante daquele quadro, foi invadido por uma enorme avalanche de reclamações por parte daqueles que acreditaram, investiram e perderam.
Talvez também por isso, logo adiante, em 1976, foi criada a Comissão de Valores Mobiliários e a competência para exercer a fiscalização dos fundos de investimentos foi deslocada para o novo regulador, adotando-se assim a supervisão por especialidade ou em função do produto.
Durante largo período a CVM cuidou com eficiência do seu poder de polícia administrativa de supervisão tanto prudencial e preventiva como repressiva e punitiva. Mas o ambiente de negócios com valores mobiliários cresceu exponencialmente e surgiram novas modalidades de investimentos, como os mercados futuros, particularmente o mercado de opções, os derivativos e tantos outros. A indústria de fundos de investimentos se multiplicou e hoje existem milhares de instituições da espécie operando com inúmeras modalidades e com uma gama enorme de gestores.
Atualmente a CVM reclama e com razão da insuficiência de recursos tecnológicos e humanos para cumprir a sua missão e isso tem se refletido em sérios problemas, como exemplificam recentes casos.
Pelo lado do mercado financeiro, o Bacen em um passado já distante conviveu com graves problemas de resolução bancária que levaram à decretação de regimes especiais envolvendo bancos privados e bancos estaduais. No entanto, o Bacen veio se qualificando ao longo do tempo, seja no treinamento aqui e no exterior de seus servidores e alocando recursos tecnológicos que lhe permitiram ter um monitoramento eficiente dos supervisionados.
O mercado financeiro não passa por uma crise individual ou sistêmica importante há mais de 25 anos No entanto, os recursos disponibilizados para o Bacen estão se tornando também escassos e começam a se tornar necessários o aumento de seu quadro de funcionários e a continuidade do processo de atualização do seu aparato tecnológico para fiscalização à distância. O perímetro de atuação do Bacen só vem se alargando, a começar pela atividade dos consórcios e pelas cooperativas de crédito que também se multiplicaram e que representam considerável fatia do mercado.
O mercado também vem se transformando e inovando com formatos digitais de transações e com o surgimento já há algum tempo das fintechs que se espalham e apresentam um universo de centenas de instituições. Essas plataformas de negócios, ao lado das instituições de pagamento e dos arranjos de pagamento, autorizados, regulamentados e supervisionados pelo Bacen estão a requerer um acompanhamento mais constante.
O mercado de ativos virtuais ou criptoativos, disciplinado, ao menos no que se refere às PSAV - prestadoras de serviços de ativos virtuais, pela lei 14.478/22 aguarda regulamentação pelo Bacen. Mas um expressivo número de investidores opera diretamente na plataforma, acessível universalmente por meio eletrônico e sem regulador, bastando apenas uma chave alfa numérica, o que afasta a possibilidade de identificação e rastreamento das transações.
Nesse cenário de transformações em ambos os mercados, o de capitais e o financeiro, é inevitável a pergunta: existe a possibilidade de os reguladores tomarem o pulso dos segmentos que supervisionam, exercendo a adequada e oportuna supervisão?
Sim, é possível! Essa possibilidade é confirmada pelo trabalho da Receita Federal do Brasil e a comparação se justifica na medida em que o Órgão exerce o acompanhamento e fiscalização de todos os contribuintes nacionais e, obviamente, o faz de modo digital, preponderantemente, trabalhando dados e informações que ordinariamente lhe são prestados pelos próprios contribuintes ou por outros entes públicos ou privados. A propósito, a Receita, já se preparando para a implementação da reforma tributária, está construindo uma plataforma tecnológica 150 vezes maior que a do Pix a fim de viabilizar o recolhimento de tributo sobre o valor agregado.
Na mesma linha é o excelente trabalho desenvolvido pela Polícia Federal, cujo poder se espraia para inúmeros campos de atuação e que, poucos dias atrás, realizou com sucesso uma operação pontual englobando, inclusive, fundos de investimentos e fintechs. Evidentemente, esse movimento foi precedido de intensas investigações com base em dados informatizados.
No momento e com a pretensão de adotar outro modelo de supervisão de mercados, supostamente mais eficiente, estuda-se no Ministério da Fazenda a adoção por aqui do sistema denominado Twin Peaks, em tradução literal “picos gêmeos”, adotado em um número reduzido de países, notadamente no Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia. Nesse formato, o Bacen e a CVM assumiriam o status de super reguladores, um tratando da supervisão prudencial e outro da supervisão de conduta. Aos dois seriam incorporados outros reguladores de segmentos diversos como a Previc e a Susep.
Nosso sistema financeiro, genericamente considerado, é extremamente sofisticado e reconhecido por outros países e organismos internacionais como modelo de referência. Os mercados financeiro e de capitais são extremamente sensíveis e o funcionamento não adequado de qualquer deles contamina a própria economia e, por isso, é provável que seria mais eficiente manter a especialização de ambos, qualificando-os e dotando-os de recursos.
Encontra-se em tramitação no Senado a PEC 65/23, que estabelece a autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira do Bacen e seria oportuno, justo e desejável incluir na proposta o mesmo tratamento para a CVM.
Há um descompasso entre a regulação prudencial e o monitoramento de sua aplicação (enforcement). É disso que se trata! Vale aqui repetir a conhecida frase de Arquimedes: “dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e eu moverei o mundo”.